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my city ISSN 1982-9922

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A partir de uma proposição – vamos partir do princípio que nossas atitudes são racistas – Rogério Penna Quintanilha estabelece resoluções a serem cumpridas no próximo semestre.

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QUINTANILHA, Rogério Penna. Seis propostas para o próximo semestre. Minha Cidade, São Paulo, ano 23, n. 273.03, Vitruvius, abr. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/23.273/8769>.


Heitor dos Prazeres, Sem título , 1962. Óleo sobre tela, 60 X 50 cm
Foto divulgação [Website Catálogo das Artes]


Preciso começar dizendo quem sou, assumindo o lugar de onde falo. Meu nome é Rogério, sou homem, ex-branco, cis, hétero, sem necessidades especiais, cria da classe média-média urbana católica, filho de professores, um avô com curso superior e três sem. Digo também que sou doutor em urbanismo o que pode ser bom ou ruim, e se isso não for suficiente, vou contar sobre o dia em que descobri que sou racista. Vivi em Florianópolis e certo dia, no meu trabalho, vi uma mulher desconhecida com uma vassoura na mão, limpando o chão. Ela era jovem, loira, de olhos azuis, e eu demorei para entender o que ela estava fazendo. Quinze segundos depois eu entendi que ela era a faxineira, e essa é a medida do meu racismo. Se fosse uma mulher negra eu teria entendido imediatamente que ela era faxineira, porque fui ensinado que mulheres negras são faxineiras e aquela mulher loira devia ser no máximo uma secretária, o que me fez pensar que além de racista, eu também estava sendo machista.

Isso foi há 15 anos e sinto vergonha daquele dia. Mas sinto também orgulho porque se não fui capaz de não ser racista e machista, fui capaz de reconhecer em mim o racismo e o machismo, e se isso é ainda é pouco, já é alguma coisa. Depois daquele dia, nunca mais fui do time do “eu não”, nunca mais fui do time do “nem todo”, e o motivo é muito simples: se você tem um cão treinado para ser violento, é sua responsabilidade estar atento a ele e não importa o quanto ele seja manso hoje em dia. Sou racista e machista em potencial e posso ser, no máximo, racista e machista não-praticante, mas para isso preciso estar sempre atento, sempre vigilante, e a única forma de não me deixar levar pela maré é remar com força. Não há mais espaço para o conforto dissimulado, para o disfarce, para a acomodação da consciência. É preciso ação. É preciso ser um antimachista e um antirracista praticante. É preciso pensar, é preciso estudar, é preciso ouvir, ir atrás, apontar os dedos para as práticas, para as instituições, para si mesmo. É preciso pedir desculpas, mas é preciso não fazer de novo. É preciso parar de pensar que está tudo bem. E é preciso saber que o antirracismo não está aqui para confortar a consciência do branco, muito pelo contrário, está aqui para incomodar. Ninguém deve receber uma estrelinha por não ser uma pessoa horrível.

Reconhecer o racismo em minhas próprias práticas não foi um processo meu, nascido e criado na minha própria cabeça brilhante. Ao contrário, isso foi plantado a muito tempo pelo movimento negro, por pretos e pretas que construíram essa consciência nas veias da sociedade até que o óleo quente estourasse essa pipoca na minha cabeça meio-branca e eu decidi que não voltaria atrás. É preciso ouvir pessoas pretas, aprender, ler o que escrevem, entender o que dizem. Participei durante um ano de um coletivo negro e minha tarefa lá era sentar, calar a boca e ouvir. Eu acho que seria muito bom se os homens, os brancos, e principalmente os homens brancos, fizessem esse exercício de calar a boca e ouvir, porque a gente sempre foi educado para falar, que somos o máximo, que nossa opinião importa.

Quando um doutor vindo da França se senta na nossa frente e diz qualquer coisa sobre arquitetura, ainda que a gente não concorde, fazemos um esforço terrível para entender porque ele está certo e nós errados. Quando uma mulher preta se senta e diz algo, ela precisa se esforçar muito para provar que está certa e faremos um esforço terrível e facilmente desonesto para desacreditá-la. “Não é bem assim, que exagero…” Assim, o uso ativo do meu privilégio de fala significa dizer: ouçam o que elas estão dizendo, elas estão corretas e por elas empenho toda a pilha de diplomas que tenho em casa até o dia em que não for mais necessário.

E o que elas estão dizendo é que o racismo estrutural é tão presente em cada átomo da sociedade brasileira quanto a força da gravidade. Em um experimento de física, não é preciso provar que a gravidade existe e funciona em todo o canto, em todo lugar, da mesma maneira, pois ela já foi testada e provada tantas vezes que, por indução, é mais prático partir do princípio que ela estará presente em todos os experimentos. Do mesmo modo, o racismo por aqui já foi tão demonstrado em tantos casos e tempos que é mais proveitoso procurar as singularidades onde ele falha do que o universo em que ele atua, e esse é o meu primeiro ponto. O que proponho aqui é uma inversão de pensamento: em vez de procurar racismo em nossas atitudes, vamos partir do princípio que elas são racistas e procurar o que não é, como não é, ou como pode não ser. Em vez de a todo momento termos que provar que um pensamento, uma fala, uma instituição ou uma disciplina universitária é racista, vamos admitir logo que o racismo está em tudo até que se prove o contrário. Eu não penso mais, então: “será que estou sendo racista?” Ao invés disso, penso e proponho pensar: “será que estou sendo antirracista?” Será que estou sendo antirracista nas minhas pesquisas, nas minhas aulas, na minha atuação profissional? E como a resposta provavelmente será “não”, como posso remar, ativa e conscientemente, nessa direção?

Não posso oferecer respostas, mas posso oferecer questões. A nós todos, aos nossos cursos, à nossa universidade, à nossa profissão. Questões que são endereçadas a mim mesmo e que podem ser tomadas, discutidas, melhoradas, viabilizadas e realizadas por quem achar que deve. Chamarei este texto, então, de “Seis propostas para o próximo semestre” (1), e se alguém acha que escolho o número 6 apenas para citar Ítalo Calvino, acertou.

Primeira proposta: a defesa intransigente do que já se tem

Em 22 anos ininterruptos dentro de cinco universidades – federais, estaduais e particulares – não posso negar que muitos professores e alunos têm se esforçado em incluir temas raciais, de classe e de gênero em suas aulas e pesquisas, e isso é ótimo. Relembro sempre que quando entrei no curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Estadual de Londrina no ano 2000, havia na minha turma um único negro, que na verdade era um intercambista moçambicano. As questões de raça, gênero e classe, passavam ao largo. Anos depois, já como professor, passei a ter alunos negros e/ou vindos de escolas públicas e foi a presença deles que forçou essa mudança de postura e, portanto, a primeira coisa a se defender é essa presença que torna tudo possível via bolsas de estudo e permanência, financiamento estudantil e cotas raciais e para escola pública, tanto para a graduação quanto para a pós-graduação. Isso é muito importante e não está consolidado.

Todos aqui sabem que muitas pessoas com muito poder de decisão desejam devolver a universidade, especialmente a pública, para a classe média branca. E digo mais: A presença de pretos e trabalhadores na universidade pública corresponde ao momento de crescente criminalização e descrédito de suas atividades. Como sempre, a classe média branca está disposta a queimar o navio estando dentro dele, apenas para preservar seus privilégios. A universidade pública e gratuita tem um papel fundamental na transformação do Brasil, continuará sendo atacada e é nosso papel defendê-la de forma intransigente. Além disso, é preciso apoiar institucionalmente o que nós temos. Quando participei do Coletivo Mãos Negras, em 2018, muitas vezes nós não tínhamos uma sala para nos reunir já que a normalmente usada de um dia para o outro foi simplesmente desocupada para dar lugar a qualquer coisa, sem o menor respeito pelo grupo que se reunia lá dentro. Sempre haverá um argumento burocrático para dizer que isso não pode e aquilo não dá, mas a burocracia, como sempre, tem cor. Minha primeira proposta é, então, que a Unesp como instituição e os professores como seus representantes, reforcem ainda mais seu apoio aos movimentos que surgem organicamente dentro da universidade, do jeito que puderem, reconhecendo-os como expressão legítima da diversidade construída dentro da universidade.

Segunda proposta: revisão e crítica bibliográfica

Todo discurso, a começar pelo nosso, tem cor, sexo, gênero e classe, e é fundamental aos leitores saber de onde esse discurso vem. No entanto, nossas referências são ainda desproporcionalmente masculinas, brancas e de países do centro do capital. Além disso, tendemos a ler esses autores como universais, enquanto os que não se encaixam nesse perfil como identitários. Quem vai contar ao Jan Ghel que o sistema urbano das capitais europeias só é possível porque, além de técnicos, eles tinham colônias? Quem vai contar a Jane Jacobs que o seu ideal de vizinhança com cafés bacanas e antiquários não tem um único negro? Quem vai dizer a Le Corbusier que seu urbanismo só pode ser ideia de um homem branco?

Eu entendo perfeitamente que é muito difícil para nós, professores, rompermos com a lógica bibliográfica em que fomos formados, pelo menos para mim é, mas precisamos corrigir ativamente esta lógica. Autores pretes, africanes, latines, mulheres, possuem outras lógicas, outras questões e outras formas de resolvê-las, mas nos exigem praticamente uma nova alfabetização. O que quero dizer é que não se trata simplesmente de colocar nomes a mais na mesma lista de sempre, mas em praticar a divergência. Assim, minha segunda proposta é que todos nós coloquemos para o próximo semestre, em nossas mesas de cabeceira e em nossas disciplinas – e se outra vez a burocracia atrapalhar, que seja pelo menos como recomendação aos alunos – no mínimo dois novos autores: um brasileiro e um da América Latina ou África. Que pelo menos um seja negre, que pelo menos um seja mulher.

Terceira proposta: modos de pensar a universidade

Incorporar novas lógicas não-brancas a nossa vida nos levará a incorporar novas lógicas no nosso cotidiano e na nossa profissão e essas novas lógicas possivelmente não se enquadrarão em um modelo de universidade, de ensino e de pesquisa criadas por uma lógica colonial. O indivíduo, a acumulação e a competição precisam dar lugar ao coletivo, a troca, a colaboração. Novamente, as dificuldades burocráticas são muitas, mas precisamos repensar nosso modelo de ensino, nossos modos de fazer, estar e ser a universidade, substituir as relações de pressão e punição por relações de entusiasmo e colaboração. Ao ano, por exemplo, os alunos que obtiveram uma nota melhor em nossas disciplinas são, como prêmio, mandados diretamente para casa enquanto aqueles que tiraram notas piores são, como punição, retidos por mais uma ou duas semanas para uma falsificação grosseira do que seria uma nova avaliação capaz de recuperar rapidamente um tempo supostamente perdido durante o semestre.

Uma vez, aplicando mais uma das intermináveis provas de exame que eu não queria aplicar e os alunos não queriam fazer, pensei em como queria usar aquelas duas semanas para dar um curso avançado, para ler e discutir coisas novas, com quem quisesse, sem precisar de provas, com os mais interessados, e não com os menos. Que estar na universidade seja um privilégio e não uma punição. Todos nós em algum momento fomos arrastados por essa lógica burocrática que nos faz odiar o lugar que na verdade amamos, mas que nos afeta, nos pressiona, consome todo o nosso tempo, nos exaure. A discussão sobre a saúde mental de professores e alunos precisa ser levada a sério e não vamos esquecer que alunes negres e mulheres são especialmente afetades. Acredito que aprender com as lógicas não-brancas, indígenas e africanas pode apontar caminhos de empatia, acolhimento, inclusão e compartilhamento. Minha terceira proposta é que durante o próximo semestre tenhamos dentro das disciplinas um espaço para discutir a saúde mental de todos e que conjuntamente possamos negociar pequenas alternativas para diminuir a pressão e a carga de trabalho.

Quarta proposta: a dissolução dos limites

Diminuir a pressão e a carga de trabalho não quer dizer, de nenhuma maneira, diminuir o aprendizado. Organizar o calendário para garantir algum tempo livre pode contribuir e muito para a formação de arquitetes, urbanistes e seres humanos. Eu costumava pedir aos alunes, especialmente ingressantes, que mantivessem seriamente alguma manifestação artística fora da arquitetura: que pudessem tocar um instrumento, dançar, cantar, pintar, fazer parte de um grupo de teatro, escrever, fotografar, e que isso não fosse um hobbie, mas que fosse levado a sério, com estudo e dedicação, como parte de sua formação profissional. O que estava pedindo, no final das contas, é que eles dissolvessem os limites entre a universidade e a vida, o trabalho e o lazer, o dentro e o fora. Muitos limites que colocamos entre o que é uma coisa e o que é outra simplesmente não existem.

Como professor, participei de muitas boas iniciativas tentando aproximar a teoria e prática, algumas com ótimos resultados, mas o que quero pensar agora é na dissolução do que é teoria e o que é prática. Tudo pode ser uma coisa só assim como o profissional e o ser humano: quando evolui um, evolui também o outro. Universidade e sociedade, ensino e pesquisa, pesquisa e extensão, aluno e profissional; pensar a partir dessas categorias é um passo importante, mas abolir essas categorias é um passo maior ainda. Mas há um problema: é impossível pensar nessa superação sem praticar essa superação. Não há pensamento antes da ação e nem ação antes do pensamento. Minha quarta proposta, então, é que cada um de nós mantenha no semestre seguinte uma atividade artística fora da arquitetura, e que a levemos a sério, como parte da nossa formação e que este ato seja uma plataforma para que outras fronteiras sejam dissipadas dentro e fora de nós, o que também é a mesma coisa, nos próximos semestres.

Quinta proposta: o projeto arquitetônico

Eu não tenho dúvidas de que é difícil abolir fronteiras em uma profissão que, sendo uma, é duas: arquitetura e urbanismo. É muito difícil pensar em abolir fronteiras em uma profissão em que a prática, por muitos motivos, é vedada aos alunos e até, de certo modo, aos professores. Uma profissão que já nasce de uma cisão entre projeto e construção, no colo de uma burguesia que utilizará essa cisão justamente como estratégia de dominação. Por essa natureza, a disciplina de projeto arquitetônico, a nossa menina dos olhos, talvez seja a mais difícil de ser resolvida, repensada, decolonizada. Por um lado, tendo a pensar que uma maneira de fazer isso é valorizar os processos e as trocas tanto quanto ou mais do que o resultado final. Gostaria de imaginar novas relações, mais horizontais, para discutir cada projeto, aluno com aluno, trabalhando em paralelo e conjuntamente, conhecendo, explicando e entendendo o processo do outro. Que alunos de diferentes anos possam aparecer para conhecer, trocar e projetar juntos. Nem tudo precisa passar pelo professor, e é muito bom que seja assim.

É preciso perder a inocência diante dos programas e saber que eles também são um discurso. E gostaria de pensar o avesso, trabalhar com o limite, com o pouco espaço, com o pouco orçamento. Quando propomos aos nossos alunos fazer o projeto de uma casa em um terreno imenso e sem pensar no custo da construção, a que cliente estamos servindo? Uma família branca, tradicional, de condomínio? Se eu puder contar um segredo a vocês, famílias pretas quase sempre tem um orçamento bem apertadinho para construir e entender suas estratégias para baratear a construção e fazer arquitetura a partir delas seria um grande passo para uma arquitetura antirracista. Minha quinta proposta é essa, que possamos desenvolver no semestre seguinte, dentro ou fora de uma disciplina, um projeto residencial pensando que nossos clientes são uma família preta e o que isso quer dizer.

*   *   *

Essa é minha última proposta. As minhas seis propostas para o próximo semestre são cinco, e se você não concorda com isso, saiba que as do Ítalo Calvino também são. Minhas cinco propostas não são uma crítica, senão uma autocrítica, mas antes de tudo um reconhecimento de que muito já tem sido feito e é isso que dá o incômodo em saber que a gente precisa continuar fazendo, mais e melhor. É por isso que a sexta e última proposta, então, é que todos respondem: como podemos fazer uma profissão, um curso, uma disciplina antirracista, antimachista, socialmente inclusiva? Não um desafio ou provocação, mas um convite de quem quer, junto, construir algo sobre o que acredita.

notas

NA – Adaptado de texto preparado para a mesa de abertura da Semana de Arquitetura e Urbanismo da FCT Unesp de 2021.

1
Referência ao seguinte livro: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

sobre o autor

Rogério Penna Quintanilha é arquiteto (UEL, 2004), mestre (UFSC, 2008) e doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 2016). Foi bolsista Fapesp de pós-doutorado (FAU USP, 2021). Foi professor dos cursos de arquitetura e urbanismo da Universidade do Oeste Paulista e da Unesp.

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