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PORTAL VITRUVIUS. Congresso Nacional de Iniciação Científica em Arquitetura e Urbanismo – CICAU 2002. Projetos, São Paulo, ano 02, n. 024.01, Vitruvius, jan. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/02.024/2197>.


Estudo de habitações populares planejadas e construídas a partir da parceria arquiteto/morador. A Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo
1. Introdução

Este é um trabalho que aborda três tipos de moradia: Conjunto Habitacional, Favela, e uma Associação de Moradores, especificamente a Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST).

Quanto à participação do morador no projeto e construção de sua própria residência, Conjunto Habitacional e Favelas têm características opostas: no primeiro, o projeto e a execução são etapas distantes do morador; no segundo, o morador habita uma casa por ele mesmo projetada, muitas vezes em constante processo de construção.

Também existe diferença entre os dois nos aspectos técnicos, construtivos e legais: no Conjunto Habitacional, há o conhecimento técnico daqueles que o projetaram (apesar de tantos erros que já foram cometidos); na Favela, não há auxílio técnico. Há, portanto, sempre algum desequilíbrio: se por um lado o conjunto consegue oferecer uma habitação tecnicamente boa, por outro sua padronização não dá ânimos a relações de identidade entre morador e moradia; se por um lado na favela essa identidade pode ser animada pela proximidade entre a construção e o morador, por outro a precariedade dessas habitações apequena a primeira qualidade.

Uma característica comum nestes dois tipos de habitação é a distância ou inexistência de um arquiteto. Mas não seria exatamente o arquiteto a figura responsável por trazer a justa-medida, ou seja, minimizar este desequilíbrio? Um arquiteto, trabalhando junto a uma família, não poderia auxiliá-la em um projeto próprio, que obedecesse aos aspectos técnico construtivos e até mesmo legais, e projetar uma habitação condizente às suas necessidades, possibilidades e sonhos?

Foi este o questionamento, somado à observação de que a ATST oferece o auxílio de um arquiteto tanto para as casas a serem construídas quanto para aquelas que estão em processo de construção, o motivador deste trabalho. A análise dos Conjuntos Habitacionais e da Favela tem um intuito comparativo.

2. Os objetos de estudo

2.1 A Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo

A ATST é um dos maiores e mais antigos movimentos de moradia da cidade de São Paulo, com atuação predominantemente nas áreas Noroeste e Oeste da Capital.

Uma das principais características da ATST é o autofinanciamento das casas e dos terrenos por parte dos moradores.

O autofinanciamento teve sua importância multiplicada na década de 90, quando o Estado se ausentou diante de vários setores da questão habitacional, após a crise e falência do Sistema Financeiro da Habitação. As cooperativas cresceram e tiveram fundamental importância para que o autofinanciamento fosse possibilitado. Além disso, mudanças na legislação, flexibilizando-a para casos de Empreendimentos Habitacionais de Interesse Social (EHIS), contribuíram para que o financiamento pelos consumidores acontecesse.

 O intermédio da associação é necessário para que exista concentração de capital de diferentes pessoas, afim de possibilitar a compra de uma grande gleba, em geral afastada do centro. Os terrenos são comprados sem nenhuma infra-estrutura, ainda não loteados. A instalação de infra-estrutura ocorre em momento posterior à compra, o que impossibilita o incremento do preço da terra pelo antigo proprietário – ocorre o sentido inverso àquele normalmente imposto pela especulação imobiliária.

 É importante notar que, no caso da ATST, a antecipação de recursos dos futuros proprietários ocorre apenas com o objetivo de compra do terreno, e não abrange a construção da casa propriamente dita. Isso possibilita que o novo proprietário tenha independência no processo de construção, que poderá demorar o tempo que for necessário. À luz da realidade econômica da população de baixa renda – instável e limitada, passível a endividamentos em financiamentos – podemos perceber a importância dessa forma de independência, pois o morador pode construir a casa conforme a sua realidade econômica de cada momento. Isso evita o corriqueiro problema da inadimplência, que tanto atordoou companhias habitacionais, como as COHABs.

2.2 Favela São Remo e Conjuntos Habitacionais

Foram estudados a Favela São Remo e os seguintes Conjuntos Habitacionais: COHAB Educandário, Cingapura Zaki Narchi, e CDHU Jova Rural.

A favela São Remo localiza-se na Zona Oeste da cidade, junto à cidade universitária da USP, a qual antes servia como principal local de lazer dos moradores – que hoje precisam gastar cerca de R$ 3,00 e muito tempo para ir ao Ibirapuera, segundo entrevistados.

A COHAB não poderia ser excluída desta análise, uma vez que é responsável por uma das mais significativas expansões habitacionais em termos quantitativos.

O Cingapura foi selecionado porque tem uma peculiaridade importante: os proprietários necessariamente moravam na favela que antes existia no local.

O Conjunto CDHU Jova Rural localiza-se na Zona Norte da cidade de São Paulo, há poucos quilômetros da Rodovia Fernão Dias. Foi selecionado devido à possibilidade de ampliação de suas casas; significa uma alternativa proposta pelo CDHU à adequação da casa à realidade do morador, e à possibilidade de observação de como se dá a ampliação.

3. Aspectos técnico construtivos

As seguintes características foram analisadas: iluminação e insolação, umidade e outras características como escadas.

Os resultados obtidos demonstraram que em termos de construção e seus aspectos técnicos, a ATST tem melhores resultados que o conjunto habitacional e a favela, que demonstrou as piores condições. Os conjuntos habitacionais demonstraram qualidade razoável, ficando com resultados insatisfatórios na parte de iluminação.

3.1 Insolação e Iluminação

Pergunta: Em dias claros podem executar qualquer atividade sem acender a luz?

 

Neste item torna-se nítida a diferença entre a ATST e a favela na questão da iluminação. Na São Remo dificilmente todos os cômodos tem condições de receber luz natural por meio de aberturas próximas. Frequentemente a cozinha, localizada na parte mais interior da casa, recebe muito pouca luz vinda da frente – a iluminação natural vinda das laterais e dos fundos é insuficiente devido aos recuos inexistentes ou ínfimos – e é a mais prejudicada dos cômodos.

3.2 Umidade

Pergunta: Sente problemas relacionados à umidade?

 

Fica nítido nesta tabela a dificuldade das habitações da favela obterem um ambiente ventilado e sob influência de insolação, mostrando um problema que evidencia a relação intrincada entre urbanismo e arquitetura. É notável que na ATST nenhum entrevistado tenha manifestado problemas quanto à umidade.

3.3 Escadas

As escadas eram elementos bastante deficientes nas casas da favela. Devido ao espaço limitado, o piso era muito pequeno – chegando a dificultar a subida e descida – em contraposição ao espelho grande. O problema da escada poderia ser resolvido se existisse a participação de um arquiteto no projeto da obra. Ao contrário do que podemos concluir sem uma análise mais demorada, espaços mínimos necessitam ainda mais da participação do arquiteto, pois dimensões cada vez menores significam dificuldades cada vez maiores para se encontrar as melhores soluções: a criatividade, conhecimento e experiência de um arquiteto são fundamentais para o equacionamento do problema.4. Identidade

Nos estudos relativos à identidade, duas palavras chaves, com sentidos diferentes, são frequentemente utilizadas: semelhança e diferença. Quando se tenta mostrar a identidade de alguém se procura as especificidades, aquelas que o fazem diferente dos outros.

Por outro lado, a palavra semelhança também é fundamental para a busca da identidade em um determinado conjunto de pessoas: a principal forma de uma pessoa formar laços de identidade com outra é o encontro de suas semelhanças.

É importante notarmos que qualquer pessoa, e os ambientes social e físico em que vive, estão em constantes transformações – muitas vezes resultado das próprias transformações recíprocas entre eles. A partir desta observação, podemos concluir que a identidade não é uma característica imutável, mas em constante metamorfose (ROCKENBACH, 1999).

Considerando a identidade uma qualidade metamórfica, devemos pensar o espaço da mesma forma. Portanto, o espaço age sobre a sociedade e também a reflete. Espelho e ator.

Mesmo diante da mais difícil situação, o homem com o tempo e experiência em um local inicialmente desconhecido, tende a redefinir seus valores, ao mesmo tempo em que transforma o espaço, como relata Sebastião Salgado:

“Na década de 70 passei algum tempo em Moçambique, na época dilacerada pela guerra civil. (...) centenas de milhares de refugiados estavam voltando para suas casas dos campos onde haviam sido abrigados, em Malaui e na África do Sul. Para muitos deles, contudo, aqueles campos tinham virado um ‘lar’. Haviam crescido, habituados a viver em comunidades onde, apesar da superpopulação, tinham acesso a escolas, clínicas médicas, abastecimento de água e mesmo distribuições de alimentos. Estavam urbanizados e agora, chegado o momento de voltar para Moçambique, muitos deles já não queriam viver em povoados e praticar a agricultura.”

Grande parte da população que forma a periferia de São Paulo vivenciou a passagem rural-urbano articulada normalmente à migração, e tiveram seus valores redefinidos, ao mesmo tempo em que transformaram o espaço da cidade.

"– Você foi uma das primeiras moradoras?

Isso! Realmente, né, tinha poucas pessoas que moravam em barraco, porque tinha o da minha comadre que morava ali, eu que morava em alojamento, mas tinha umas seis pessoas, aí foi aumentando sabe? Foi chegando, foi chegando. (...)

– Era um terrenão aqui?

Era um terrenão. Aqui mesmo onde eu moro era uma plantação de mandioca." (moradora da Favela São Remo)

"Tudo começou assim, nós plantávamos aqui, meu marido é o primeiro, depois eu vim, nós casamos, continuamos, temos vinte anos de casados, e aí aqui era tudo plantações, onde era a escola, você olhava era tudo plantações. Aí, depois apareceu a Dona Cleusa e o Marcos comprando o terreno por causa do movimento. No começo eu falei: " Meu Deus, isso aqui dá medo", você não sabe o que está acontecendo. Aí, vendeu pro movimento. Aí, nós ficamos como arrendatários, e nós pegamos 400m2. Então onde eu construí eu tinha uma casinha de pau-a-pique, simples, casa simples, aí mudamos, construímos essa (...)

– Vocês viviam do sítio?

Vivíamos do sítio. Vivíamos do CEASA. Hoje temos o comércio." (moradora de área da ATST)

"Sabe onde tem aquele campo de futebol lá em cima? Era uma lagoa. Eu lavava roupa ali. Hoje em dia o que é? Um campo de futebol muito bonito, não é verdade? Tudo modificou.

– Como sumiu a lagoa?

Essa lagoa tinha água pra lavar roupa. Só que diz que muitas pessoas caiam ali, morria pessoas... Aí tiraram, ficou um campo. Pras pessoas joga bola, se divertir, ter uma arte pra eles fazer. Pra mim é uma vitória da São Remo." (moradora da Favela São Remo)

4.1 Manifestações culturais e a busca da identidade no espaço urbano

Os entrevistados apresentam uma série de semelhanças, como o fato de serem moradores de espaços segregados, e cidadãos socialmente segregados. Sem dúvida a segregação é fundamental para a compreensão deste grupo social, afinal podemos perceber que um mesmo conjunto de pessoas sofrem ao mesmo tempo da segregração econômica, espacial e racial -todas articuladas entre si. Um dos principais movimentos culturais atuais evidenciam essa articulação: o Hip-Hop. "O rap se transforma num veículo da construção da identidade, tendo consciência da violência praticada contra a população negra em toda a história (...) Através da denúncia da condição social dessa parcela da população negra de baixa renda e do preconceito racial de nossa sociedade, o rap rompe com a reprodução do imaginário social baseado na democracia racial e do racismo cordial, mitos de suma importância para a estabilidade da ordem."

Neste trecho fica evidente a segregação racial articulada à econômica. E isso tem relação direta com o espaço, visto que as músicas são "´a voz da favela´ ou o ´grito da periferia´ como esses poetas costumam chamar sua arte".

Em uma das entrevistas, recebi um documento de criação de uma organização de Hip-Hop (Posse), no qual entre suas 50 linhas, mais da metade era dedicada a descrever o bairro, abordando o assunto do Hip-Hop somente após essa descrição.

Os movimentos são recentes, assim como é relativamente recente o nascimento das enormes cidades brasileiras, fruto de uma urbanização que produz e reproduz de forma intensa a segregação social e espacial. Muitos movimentos culturais populares urbanos ainda estão em processo de afirmação diante da sociedade, mas já constituem importante elemento na identidade de um grupo, e na identidade com o espaço.

5. Conclusão

"– Quando você construiu essa casa aqui, vocês fizeram algum projeto?
Pobre não tem projeto, é só fazer o alicerce e...
– Foi no olho?
Foi no olho, não ficou muito bom mas dá pra morar né."(Moradora da São Remo)

Podemos falar de uma identidade individual, ou seja, a identidade do “eu”, como podemos falar sobre a identidade de um grupo social, relacionada a um “nós”. O grupo que constitui o “nós” pode variar de uma dupla, um pequeno grupo como uma família, até o mais abrangente como a humanidade.

 Alguns movimentos culturais populares urbanos demonstram a necessidade de se criar uma identidade de um grupo que articule as várias formas de exclusão: racial, econômica, e aquela que se dá por meio da segregação espacial.

Muito se discute, devido a revolução dos meios de comunicação, a questão da identidade em grupos menores, limitados ao espaço da cidade, da região, ou até mesmo do país. A questão da dimensão e limite de um grupo está presente também quando nos referimos à ordem.

A idéia de ordem deve sempre ser relativizada em relação ao grupo de pessoas que ela abrange. Um grupo social pode considerar seu espaço organizado, ao mesmo tempo em que outro grupo o considera extremamente desorganizado. A idéia de ordem portanto depende de uma série de valores de um grupo social, e portanto depende de limites.

É importante notar que os limites de uma ordem não necessariamente definem-se pelos limites de outra, e em um mesmo grupo social existem ordens e desordens que se articulam sobrepostas.

 “(...) comecei a pensar/ que eu me organizando posso desorganizar/ que eu desorganizando eu posso me organizar/ da lama ao caos/ do caos a lama/ um homem roubado nunca se engana.”

Percebemos nesse trecho de uma música de Chico Science, um dos principais expoentes do movimento manguebeat, a percepção da existência de duas ordens: uma ordem maior, cuja existência depende da (des)ordem dos explorados -o homem roubado.

Se o movimento Manguebeat procura conflitar duas ordens, a mais próxima formada por um “nós” limitado pelos “homens roubados”, Le Corbusier procura uma ordem formada por um “nós” que abrange a humanidade.

“A casa, a rua, a cidade, são pontos de aplicação do trabalho humano; devem estar em ordem, senão contrariam os princípios fundamentais pelos quais nos norteamos; em desordem, elas se opõe a nós, nos entravam, como nos entravava a natureza ambiente que combatíamos, que combatemos todos os dias. (...) Afirmamos que o homem, funcionalmente, pratica a ordem, que seus atos e seus pensamentos são regidos pela linha reta e pelo ângulo reto; que a reta lhe é um meio instintivo e é para seu pensamento um objetivo elevado.”

A razão para Le Corbusier é o elemento fundamental para lidar com o “nós” universal, ou seja a humanidade. Há que se notar que os princípios racionais de Le Corbusier foram fundamentais para a arquitetura moderna brasileira, na qual segundo BONDUKI (1998) alguns conjuntos habitacionais se inserem (IAPs), e outros se confundem (BNH).

FERREIRA (1999) relaciona identidade à ordem, ao mesmo tempo em que explana sobre a existência de duas ordens, existentes em um mesmo grupo social, que se articulam e formam uma relação de interdependência: 

“(...) hoje mais do que em qualquer outra época, a história e a identidade do lugar são construídas de maneira compartilhada, mas em uma correlação que tende a privilegiar as imposições desagregadoras e homogeneizantes da ordem distante (a mundialidade em constituição), em detrimento da ordem próxima (o lugar com suas especificidades)(...)”

Da Matta procura encontrar no espaço, especialmente no universo da rua e da casa, as relações entre o próximo e o distante:

“Já mencionei que tal linha semântica, onde o eixo da vida pública -do universo da rua – é englobado pelo eixo da casa, é tipo do discurso populista. O resultado é um discurso onde a pessoa, a casa e suas simpatias constituem a moldura de todo o sistema, criando uma ilusão de presença, honestidade de propósitos e, sobretudo, de bondade, generosidade e compromisso com o povo. (...) Mas é óbvio que o oposto é igualmente corriqueiro e conhecido. (...) quando a casa é englobada pela rua vivemos freqüentemente situações difíceis e em geral autoritárias. (...) Trata-se de uma lógica que conduz ao discurso do Estado que, no caso brasileiro e ibérico em geral, tem razões que a sociedade e a cultura local desconhecem! (...) Tudo isso revela gritantemente como o espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em princípio, negativo porque expressa um ponto de vista autoritário, impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora.”

Trata-se portanto, de diferenciar a ordem vivida na rua e na casa: a rua, local onde a ordem maior do Estado tem que ser seguida, e a casa, local de fuga desta ordem. Se existe uma ordem maior, tratada por Da Matta como a ordem do Estado Nacional, a reprodução de unidades habitacionais padronizadas, cuja arquitetura foi desenvolvida por órgãos estatais, abre espaço para a transferência e reprodução de valores -a partir da casa – ditados pelo Estado. Ao mesmo tempo em que existe na casa a possibilidade de fuga dessa ordem maior, seu espaço é muitas vezes foi definido exatamente pela mesma ordem.

É portanto muito difícil para uma família de baixa renda projetar e construir uma casa com suas próprias vontades, possibilidades, necessidades, ordem e identidade. Resta ao trabalhador aceitar apartamentos previamente projetados e construídos, adequar sua vida a ele, e ficar a mercê de imposições, de decisões cujos sentidos são sempre os mesmos: de cima para baixo. Ou também existem outras alternativas, como o mercado informal, que deixa o morador sujeito a problemas técnico-construtivos além de tornar-se extremamente cruel no momento em que ele perde sua casa.

Evidentemente, deixar a cargo do morador o projeto de sua própria casa, de forma que ele projete no espaço sua própria ordem, propicia que seja reproduzida uma ordem maior – mesmo em casos em que ela seja a base de sua própria exploração – pois é nessa em que se encaixam seus valores.
Um movimento cultural pode vir a influenciar uma parcela da população de baixa renda, transformando seus valores, deixando-os bastante diferentes mesmo diante dos indivíduos de mesma classe social. É provável que o desenvolvimento dessas transformações de valores atinjam transformações espaciais. O mesmo pode ocorrer com um movimento de moradia só para citar mais um exemplo. Assim como a identidade é metamórfica, a idéia de ordem também o é: as ordens estão em constante inter e intra-relacionamento, e dessa forma se transformam. Assim, a população, tendo sua opinião respeitada, pode tanto reproduzir uma ordem maior quanto transformá-la, ou até mesmo negá-la propondo uma nova. E dessa forma a sociedade se transforma.

Assim, os moradores da ATST ora desejam projetar casas que vão de acordo com aspirações da classe média, ora desejam espaços que nenhum projeto de habitação popular convencional planejaria. João dos Santos, pedreiro cuja renda mensal familiar gira em torno de R$ 500,00, optou por reservar o cômodo melhor localizado para uma biblioteca-sala de estudos para a filha. Maria Helena não hesitou em diminuir a já pequena área de serviço proposta pela planta padrão, para criar a tão sonhada copa. Margarida Kawate construiu sua casa sem muros, afinal, por meio de sua participação na ATST conhece todos os vizinhos, e sente-se segura para não erguê-los. Em sua casa ainda reservou um espaço para que o marido trabalhe na fabricação de ferragens vendidas para os moradores vizinhos que estão construindo suas casas. José Ayrton, utilizando sua experiência como construtor, ergueu em seu terreno um chalé em estilo bastante diferente da vizinhança, e deixou o pavimento inferior sem praticamente nenhuma divisão.

A participação de um arquiteto em cada habitação popular em individual pode significar a inversão do sentido de decisão, deixando-a de baixo para cima. Assim são respeitados as características individuais existentes na heterogeneidade de uma população, comumente encarada no momento do projeto como homogênea. E se, como diz Da Matta, é a casa o lugar de fuga de uma ordem maior, impositiva, ao menos ela deve estar de acordo com a ordem próxima, na qual o “nós” seja definido pelos próprios habitantes.

"Ressalte-se que para lograr maior eficiência os programas de autoconstrução devem possibilitar a participação dos interessados na idealização e construção das casas. Isso permitiria uma apropriação do espaço interno mais condizente com os valores e necessidades das classes de baixa renda, e, consequentemente, aumentaria os índices de satisfação com a residência." (AZEVEDO e ANDRADE, 1982: 116)

A participação do arquiteto no projeto e construção de cada moradia popular em individual é bem pouco difundida. Entretanto, mostra-se bastante proveitosa: ao desenhar uma planta de uma casa, projeta-se um futuro de realizações jamais conquistadas, que concretizará, em tijolos e concreto, necessidades e desejos peculiares. Se a identidade depende do tempo, o cronômetro deve ser ativado não no momento em que o morador entra em sua casa já construída, mas no momento em que inicia o projeto. Afinal, o projeto é o início da construção. Início da construção de uma casa, da identidade do morador com ela, e de uma ordem menos agressiva e impositiva. Mas é antes de mais nada o início da construção de um sonho, no qual o arquiteto pode ter o prazer de contribuir.bibliografia

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Orientadora: Profa. Dra. Cristina Meneguello, IFCH Unicamp

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