Em 2006, Fernando Serapião publica um artigo na revista Projeto Design em que faz relações entre os trabalhos dos arquitetos italianos Daniele Calabi e Carlo Scarpa (2). Ilustra o artigo uma cópia amarelada do projeto da Casa Sadun, desenvolvida por Calabi no bairro do Pacaembu em 1950, projeto este que, até então, jamais tinha sido publicado.
A imagem amarelada e inédita que Serapião resgatada dos atuais proprietários sugere a necessidade de documentar melhor as obras produzidas pelo arquiteto durante a sua estadia no Brasil. Onde estão as obras produzidas por ele? Em que estado de conservação se encontram? Como seria a seqüência de casas independentes, implantadas uma ao lado da outra, que Serapião menciona ao analisar a Casa Sadun? Anônimas na paisagem, o que é (ou foi) projeto de Calabi passa despercebido.
Diante disso, este artigo procura analisar e documentar, com maquetes virtuais, o conjunto das três casas que Calabi projeta na antiga Rua Itaguassú: a casa De Benedetti, projetada em 1945 para seu cunhado, esposo de sua irmã Emma; a casa Fabio Calabi, construída para seu irmão em 1945-46; e a casa Sadun, projetada em 1950-51 para o casal Giuseppe Sadun e Anna Funaro, prima da mulher de Fabio Calabi. Este conjunto de casas, quase um núcleo familiar, tem relevância porque negam o arranjo da tipologia em pátio, que consagrou o arquiteto no Brasil.
Casas paulistas: vistas para o Pacaembú
Antes de vir para o Brasil, em 1940, Calabi se dedicou quase que exclusivamente a projetos institucionais. Sua única experiência em projetos residenciais foi de um conjunto de casas populares, desenvolvidas durante o período de 1923 a 1933 em que trabalhou na França.
Em sentido contrário a sua experiência européia, no Brasil, Calabi se dedicou a um significativo número de edifícios residenciais. Como marco inicial, destaca-se o Pavilhão Médici, construído em 1945, que obedecia a um rígido sistema de pátios e que atribuiu ao arquiteto a fama de ter “introduzido” o esquema pátio nas casas modernas paulistas (3).
Pelo conjunto, também tem destaque seis casas que o arquiteto construiu no Pacaembu (4). Três configuram o conjunto discutido anteriormente. Outras duas estão em lotes lindeiros na Rua Traipú – a casa Calabi, projetada para si mesmo em 1945-46, e a Casa Foá, projetada para os seus sogros em 1948-49. Construídas em lotes íngremes, as casas criam no subsolo um setor de serviço, que serve de “plataforma” para a disposição dos demais setores da casa. Sobre a plataforma, a sala de estar ou o pátio se abre para a visual da paisagem urbana de São Paulo. Hoje, as duas casas encontram-se absolutamente descaracterizadas e se perderam no desenho do bairro.
Isolada na Rua Bragança, está a casa Cremisini (1947), que mais tarde foi vendida para a família Torok. Nela, novamente o arquiteto utiliza uma “plataforma” para assentar a casa. Desenha um pátio entre o setor íntimo e o social e o volta para a paisagem. A casa encontra-se em ótimo estado de conservação, graças à sensibilidade de sua proprietária.
Vizinhança familiar: três casas da rua Itaguassú
Assim como na casa Sadun, uma documentação parcial da casa Fabio Calabi foi obtida com a atual proprietária, Flávia Calabi, que é sobrinha do arquiteto. Alguns desenhos originais de uma reforma evidenciam a proposta de configurar um volume com duas garagens entre as Casas De Sebastiane e Fabio Calabi. Como os dados da Casa De Sebastiane não foram encontrados no acervo do arquiteto na IUAV – Itália, estes desenhos originais – planta esquemáticas e fachadas - se tornaram valiosos para a reconfiguração volumétrica do conjunto das três casas.
Todos três lotes são estreitos e possuem maior extensão em direção ao declive acentuado. Calabi então dispôs as casas com suas maiores dimensões paralelas à testada do terreno, diminuindo suas profundidades e o enfrentamento da topografia do terreno. A partir da rua, as casas se apresentam térreas e, vistas da parte posterior, apresentam de dois a três pavimentos. Os edifícios compactos e verticalizados negam assim o arranjo dos pátios, como ocorre nas casas Médici (1945-46), Calabi (1945-46) e Cremisini (1947).
Nas casas Sadun e Fabio Calabi, documentadas por projetos, observa-se que os acessos são paralelos à rua e tendem a ocupar uma posição centralizada na planta. Este acesso se abre para um hall, um espaço de transição entre dentro e fora e um elemento que segrega e dá autonomia de acesso a cada um dos setores. Conectado diretamente à sala, do hall é possível ter algumas perspectivas da paisagem que se abre pela varanda.
O zoneamento é por faixas, estando de um lado do hall os setores íntimos e de outro, os sociais e serviços. Preocupação constante é posicionar o jantar e o estar voltados para os fundos do lote, abrindo-se para a paisagem do Pacaembu, que estava em construção. Da sala, por meio da varanda, o arquiteto cria uma intensa relação entre o interior e o exterior. Este arranjo condiciona que a cozinha e a copa assumam uma porção da fachada frontal, o que é bastante inovador para a época. A cozinha, assim, é entendida como uma extensão do social e não um espaço segregado da dinâmica doméstica. Já o setor de serviço localiza-se nos pavimentos inferiores - lavanderia, adega e quartos de empregada, servindo de “base” para o pavimento superior.
Nas duas casas, Calabi procura prioritariamente integrar os ambientes do setor social com o exterior. De uma sacada desvenda a paisagem, estabelece um modo de vida, em que a contemplação da transcorrer dos dias e das mudanças na paisagem urbana está incorporada como um hábito doméstico. Esta busca pode ser entendida como uma das principais características das obras do arquiteto, independente do esquema tipológico adotado, se pátio ou barra verticalizada.
Mais do que casas-pátio...
Assim, as três casinhas da antiga Rua Itaguassú são também importantes exemplares da produção do arquiteto e não só as que se consagraram com esquema pátio. Com uma escala pouco imponente na paisagem, as três casinhas sutilmente configuram um conjunto arquitetônico e enobrecem o discurso da arquitetura residencial, que nem sempre precisa proporcionar grandes impactos visuais, mas responder ao decoro que a arquitetura residencial deve ter no contexto da cidade.
notas
1
Artigo baseado em: COSTA, Ana E. A casa pátio na arquitetura moderna brasileira: da confluência entre Rino Levi e Daniele Calabi. Projeto de tese de doutorado. Porto Alegre, UFRGS- Propar, 2006.
2
SERAPIÃO, Fernando. Encontro na cidade da tristeza. Projeto Design, n. 320, São Paulo, out. 2006.
3
Ver: ANELLI, Renato. A mediterraneidade nos trópicos. In: ANELLI, Renato; GUERRA, Abilio; KON, Nelson. Rino Levi – arquitetura e cidade. São Paulo: Romano Guerra, 2001, p. 93; ANELLI, Renato. Mediterraneo ai tropici. In Casabella, n. 708, Milão, 2003, p. 86-95; SERAPIÃO, Fernando. Paralelos (e transversais) na história da casa paulista. Projeto Design, n. 276, São Paulo, jan. 2003. Disponível em: http://www.arcoweb.com.br/artigos/fernando-serapiao-paralelos-e-21-01-2004.html; ZUCCONI, Guido (Org.). Daniele Calabi: architetture e progetti 1932-1964. Veneza, Marsilio, 1992.
4
No bairro, também foram projetadas outras casas que não estão documentadas no acervo do arquiteto, disponível no Istituto Universitário di Architettura di Venezia: Villeta na Rua Itapicurú (1942); Villa Ricaldoni, na Tua Itaguassú (1945-46); Villa Paolina Segre, na Rua Traipú (1945-48).
sobre os autores
Ana Elísia da Costa, mestre e arquiteta, é doutoranda pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora e pesquisadora da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Cláudio Calovi Pereira é arquiteto, Ph.D. pelo Massachusetts Institute of Technology. É professor e pesquisador do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Natasha Oltramari é acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e desenvolve atividades de iniciação científica desde 2009.