O papel da arquitetura e do urbanismo na requalificação urbana
A transformação, a recuperação e a qualificação dos ambientes, tanto na escala do território como na do edifício, coloca-se dentro da nova demanda do urbanismo contemporâneo e do desenvolvimento sustentável.
Metrópoles do mundo inteiro têm despertado para esse novo paradigma, onde a nova fronteira é a própria cidade interior, e têm concentrado atenções e ações que promovam a (re)ocupação dos vazios urbanos, ou espaços sub-utilizados, e a revalorização do patrimônio edificado ou ambiental existente.
Porém, o cenário atual oferece pouco espaço para transformações territoriais que se utilizem de conceitos como o bem-comum, a preservação ambiental e cultural e a busca de soluções arquitetônico-urbanísticas adequadas e permanentes, as quais têm retorno em longo prazo. (MAHFUZ, 2009) Como sociedade, somos vergonhosamente ignorantes a respeito do impacto positivo do desenho das cidades em nossas vidas, e nesse sentido, são necessárias mudanças de grande alcance em nossa relação com o ambiente construído. (ROGERS, 2001)
Nesse contexto, é admirável a iniciativa da Zero Hora, de promover a discussão projetual de espaços da cidade e de ampliar o alcance da mesma permitindo que se torne conhecida por níveis e partes da sociedade até então excluídos dos debates meramente técnicos entre arquitetos, urbanistas, engenheiros, ambientalistas, entre outros, e que são de extrema importância para criação e manutenção da tão desejada “urbanidade”. Através de ações como essas, temos a possibilidade de rediscutirmos (e difundirmos) o papel do urbanismo e da arquitetura contemporâneos, fortalecendo-o e dotando-o de novas ferramentas para o enfrentamento dos desafios impostos pela cidade contemporânea e enriquecer a “práxis urbana”.
proposta
Como estratégia projetual propõe-se a utilização da superfície da área do Dilúvio, não apenas como área tecnicamente importante para a retificação e canalização do leito do arroio, para a execução de diques, e para a circulação de pedestres - que, com exceção dos pedintes e vendedores de sinaleira, não circulam, apenas passam. Propõe-se oferecê-la aos porto-alegrenses como mais uma área da cidade passível de ser aproveitada, desfrutada. Para isso toda a área adjacente ao leito do arroio é encarada como um solo e tem valor como tal.
Para espacialização das intenções de projeto foi selecionado um dos tantos setores disponíveis para requalificação ao longo do arroio Dilúvio: o trecho entre as Avenidas João Pessoa e Érico Veríssimo.
Este setor apresenta algumas características paisagísticas e funcionais importantes como as duas pontes com valor histórico para a cidade, a linha de Palmeiras Californianas (av. João Pessoa), o Hospital Ernesto Dorneles, além de representar uma clara linha divisória que segmenta em duas partes o bairro Santana, zona residencial consolidada no tecido urbano da cidade.
Este setor também apresenta boa densidade, com população residente, e/ou em movimento, suficientes para ocupar o espaço que está sendo criado.
Uma das estratégias mais importantes da proposta foi a criação de espaços públicos.
Nas últimas décadas e por todo o mundo o domínio público das cidades tem sido negligenciado ou dilapidado. À medida que a vitalidade dos espaços públicos diminui, perdemos o hábito de participar da vida urbana da rua. O policiamento natural ou espontâneo, aquele produzido pela própria presença das pessoas é substituído pela segurança oficial e a própria cidade torna-se menos hospitaleira e mais alienante. Richard Rogers (2001) acredita que partilhar espaços públicos derruba preconceitos e nos obriga a reconhecer responsabilidades comuns.
De acordo com Ignasi de Solà-Morales (2001) um individualismo exacerbado e uma evidente necessidade dos serviços oferecidos pelos outros parecem competir na busca de modelos que reduzam ao mínimo o compartilhar, o colaborar, o confiar.
Aqui a importância do espaço público está em ser encarado como indutor de cidadania, cultura e liberdade. A dimensão “banal” de Milton Santos, de escala local, o elo da casa à escola, das lojas ao trabalho, de caráter contíguo, articulados em redes de convívio e não hierarquizados.
Para tanto propomos trabalhar este trecho como um grande espaço público, ampliando a área em frente ao hospital (grande equipamento do bairro e da cidade), através de uma plataforma plana sobre o arroio, promovendo a transposição do leito do arroio, aproximando os dois lados da Avenida Ipiranga.
Esta plataforma configura-se como uma mega-estrutura e sua utilização se dá através de diversos usos: ora como um grande e qualificado passeio público para os moradores e usuários do bairro, ora como praça com bancos para descanso, ora servindo como zonas livres para feiras semanais, ou, servindo como suporte para pequenos cubos comerciais que sirvam de abrigo para atividades de apoio aos usuários da região e do entorno, tais como lotéricas, correios, bancas de revistas, farmácias, bibliotecas itinerantes e até lanchonetes que atendam aos funcionários e prestadores de serviços locais, trazendo animação à rua. Os sistemas infra-estruturais necessários para tais atividades, como iluminação, elétrica, hidráulica e tratamento/escoamento de esgoto são facilmente acoplados à plataforma, uma vez que são previstos em sua concepção original.
Outros equipamentos que podem se estabelecer sobre a plataforma são playgrounds, floriculturas, pontos de aluguel de bicicletas compartilhadas, ciclovia, pistas de skate, percursos para corrida e caminhadas, cafés. São também previstos espaços de suporte para mídia (anúncios publicitários) e para arte (intervenções artísticas), bem como áreas de vegetação e zonas de estar destinadas majoritariamente ao lazer funcional (associado às atividades), mas também ao lazer do ócio, em especial aos finais de semana, quando da diminuição do fluxo e ruído dos automóveis.
Esta grande plataforma possui recortes pontuais com vistas ao existente (arroio), mas, apenas olhá-lo, do nível de quem se posiciona sobre este novo “solo”, não nos parece suficiente para garantir uma verdadeira reconciliação com este espaço. Sugere-se então que, através desses recortes sejam possíveis outras formas de apropriação do espaço interno ao leito do arroio quando este estiver baixo, tal como um anfiteatro, que pode se aproveitar de suas paredes internas e escadarias e de palcos palafitas desmontáveis.
A intenção, a exemplo de Carlos Leite e equipe em proposta para o Rio Thamaduatheí em São Paulo, é de fornecer a “plataforma” como infra-estrutura. Esta pode ser replicada, ampliando o espaço aberto de equipamentos às margens do Dilúvio, a cada ponto estratégico da Avenida Ipiranga, como zonas de shoppings, hospitais, universidade, grandes mercados, entre outros. Mas ela é apenas o ponto de partida. A forma como será ocupada, é especulada, sugerida, mas livre a adaptações e adequações referentes às compatibilizações de usos, de linguagem e com o entorno, de forma a garantir uma inserção menos impactante na paisagem e menos intimidadora ao público porto alegrense.
A vida moderna está mudando mais rapidamente do que os edifícios que a abrigam. Assim edifícios fáceis de serem modificados terão vida útil mais longa e representam uma gestão mais eficiente de recursos. Porém projetar tendo em vista a flexibilidade de uso dos edifícios inevitavelmente desloca a arquitetura das formas fixas e perfeitas. (ROGERS, 2001, p.74)
Ao prever a colonização dos espaços residuais da cidade existente (rótulas, viadutos, terminais de ônibus, passarelas) e a conciliação dos diferentes ritmos dos usuários (proporcionando usos para as diferentes faixas etárias) nossa proposta não pretende garantir arquiteturas confortáveis nem eficientemente planejadas e legitimadas.
De acordo com Solà-Morales (2002) a arquitetura contemporânea é a “arquitetura líquida”, aquela que não se dirige até o espetáculo ou à representação. Aquela que viria para atuar no vácuo da arquitetura atual, oferecendo instrumentos para controlar o evento espaço/tempo que é o lugar dos fluxos. Uma arquitetura baseada na intuição do futuro e como multiplicidade de experiências de tempo e espaço, onde os eventos não fixam objetos, ou limitam espaços, ou detém o tempo. Hoje podemos pensar a arquitetura através de categorias não fixas e sim cambiantes e múltiplas, capazes de congregar no mesmo lugar experiências diversas que não são exclusivas nem hierárquicas.
Alguns cuidados foram tomados como a busca por uma escala adequada ao usuário, que facilite a apropriação do espaço em bancos, linhas de vegetação localizadas de maneira estratégica e eficiente para prover sombra e ao mesmo tempo permitir visibilidade do espaço como um todo (segurança), iluminação adequada para a via de carros, para as vias de transporte alternativo e outra, com menor altura, para os pedestres.
Quanto à mobilidade, a proposta não tem o alcance de contribuir para a melhora sistêmica do trânsito em Porto Alegre, mas contribui ao prever, sobre a plataforma, a implantação de ciclovias e de linhas para um “tranvia” espécie de metrô de superfície, mas de menor velocidade, existente em grandes cidades como Barcelona e Amsterdam, fazendo a ligação leste-oeste.
considerações finais
Não julgamos necessário explicar detalhadamente que, para que o cenário proposto por nossa equipe para a área do arroio Dilúvio (ou qualquer outro que também intencione a vitalidade deste território) seja possível, é imprescindível e urgente a despoluição do Dilúvio, que urge por tratamento adequado. Consideramos esta condição fundamental, inevitável e que sua necessidade é consenso geral.
Para recuperar estes espaços, onde eles estejam desconsiderados, o cidadão deve estar envolvido com o processo de evolução das suas cidades. E isso é algo que pode ser proporcionado pelos meios de comunicação como os diversos jornais de notícias, a exemplo da Zero Hora, e como ocorre em diversas cidades.
Devem sentir que o espaço público é responsabilidade e propriedade da comunidade, é o local onde os cidadãos desempenham seus papéis. Devem ter a noção que quando não são cuidados podem ser ocupados irregularmente ou ficar abandonados. Nesses casos o que é de todos não é de ninguém.
As cidades, embora sejam lugares onde a vida pode ser bem precária, também podem nos inspirar. “Esta é a dicotomia da cidade, seu potencial para embrutecer e para refinar”. (ROGERS, 2001, p.17)
bibliografia
SOLÀ-MORALES RUBIÓ, I. Territórios. Barcelona: G. Gili, 2002
ROGERS, Richard. Cities for a Small Planet. Cambridge: MIT Press, 2001
MAHFUZ, Edson da Cunha. O Arquiteto e a Vida da Cidade. Zero Hora, ag. 2009.