“o respeito ao passado é uma atitude filial, natural em todo criador: um filho tem pelo pai amor e respeito”
Le Corbusier
À maneira de introdução
Este artigo é dedicado, em primeiro lugar, à apresentação da análise feita sobre a igreja Nossa Senhora de Fátima, a Igrejinha – como passou a ser chamada –, de autoria de Oscar Niemeyer, inaugurada em Brasília, em 1958. Apesar de ser uma obra conhecida e uma das mais representativas dentro do conjunto da obra de Oscar Niemeyer; e de ter sido inúmeras vezes citada em trabalhos acadêmicos, entendeu-se que até o momento determinados aspectos, como, por exemplo, os morfológicos, necessitavam de uma apreciação mais atenta.
O segundo objetivo é o de demonstrar um método utilizado no ensino de teoria e história da arquitetura e urbanismo. Na Uniplan DF, o autor deste artigo busca aproximar, o máximo possível, os ensinamentos teóricos das aulas de projeto. A teoria não como complemento, mas como base na formação do arquiteto. Percebe-se que quando se une a análise de projetos ao ensinamento da teoria, da história e de conceitos, os alunos tendem a interessar-se e compreendê-los de maneira mais satisfatória ao perceberem a sua aplicabilidade nos projetos.
De acordo com essa estratégia pedagógica, é dispensada a obrigação, a princípio, de memorizar informações. O objetivo a ser alcançado é o de fazer com que o aluno busque o entendimento do contexto histórico e de conceitos e assim, relacioná-los à arquitetura como forma de melhor compreendê-la de uma maneira contextualiza. Entende-se que a construção de uma memória de dados deve ser consequência do estudo sistemático e analítico. O estudante é incentivado a formar um repertório de projetos estudados e, dessa maneira, levá-lo a aprimorar o senso crítico.
Nas primeiras aulas, antes do início da abordagem do conteúdo indicado pela ementa, lança-se mão da propedêutica de áreas do conhecimento como a gestalt e da semiótica, exemplificadas através de análises de projetos em sala de aula.
Os alunos, em um segundo momento, são convidados a realizar, ao longo do semestre, a análise de obras indicadas. Como complemento do trabalho, solicita-se que sejam pesquisadas outras formas de expressão artística que possam representar ou serem identificadas com o projeto escolhido, por exemplo, pelas similaridades do ponto de vista da composição das formas. Incentiva-se assim, o estudo da arte em geral como meio fundamental para a construção do senso estético; e para a formação (lato sensu) do arquiteto.
A Igrejinha foi um dos projetos estudados. Após a avaliação dos trabalhos, a obra foi então analisada pelo professor em sala de aula. É proporcionada a oportunidade aos alunos de compreenderem as deficiências apontadas para que sejam supridas em uma próxima tarefa.
Brasília e Oscar Niemeyer
“A obra de arte não é feita de tudo – mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo é que constitui o trabalho do artista”
Cecília Meireles
As obras de Oscar Niemeyer em Brasília, em especial as do início de sua construção, representam a afirmação definitiva de sua capacidade inventiva e da demonstração de sua erudição, tão bem compostas com a interpretação de cada tema, de acordo com o que propunha Lucio Costa, na suas intenções para o projeto para o Plano-Piloto.
A Praça dos Três Poderes, por exemplo, deve ser tomada como reprodução da praça seca de São Marco, em Veneza. Oscar Niemeyer lança mão de um plano retangular que serve como elemento de ligação do Palácio do Planalto com o da sede do Supremo Tribunal Federal, o STF. A descontinuidade promovida pelas vias do Eixo Monumental, a frente do Palácio do Planalto e a que permite o acesso ao STF, são dissimuladas pela profundidade da perspectiva, quando tomado um ponto mais central no espaço da praça.
Os palácios do Planalto e do STF têm uma explícita filiação clássica apreendida na forma como os volumes são destacados do chão ou pelo ritmo das colunas – o classicismo interpretado na composição da caixa modernista trabalhada Pela decomposição ou subtração.
O palácio da Alvorada é a releitura da casa da fazenda. Nele estão reproduzidas a generosidade de seus alpendres e a composição do conjunto casa-capela – referência essa tão bem interpretada pelo poeta João Cabral de Melo Neto, em seu poema “Uma mineira em Brasília”:
"No cimento de Brasília se resguardam
maneiras de casa antiga de fazenda,
de copiar, de casa-grande de engenho,
enfim, das casaronas de alma fêmea.
Com os palácios daqui (casas-grandes)
por isso a presença dela assim combina:
dela, que guarda no jeito o feminino
e o envolvimento do alpendre de Minas" (1).
Nas palavras de Oscar Niemeyer:
“agrada-me sentir que essas formas garantiram aos palácios, por modestas que sejam, características próprias e inéditas e – o que é importante para mim – uma ligação com a velha arquitetura do Brasil colonial. Não como utilização simplista dos elementos daquela época, mas exprimindo a mesma intenção plástica, o mesmo amor pela curva e pelas formas ricas e apuradas que tão bem as caracterizam” (2).
A Igrejinha, por sua vez, é, talvez, a interpretação mais evidente do barroco brasileiro de Minas, em Brasília. Algo que pode ser identificado pela presença da sinuosidade das formas que, como as igrejas de Aleijadinho, são resultantes do genius loci, ou a “a força do lugar” – enquanto as igrejas de Minas mimetizam a silhueta da composição da cadeia de montanhas, na paisagem acidentada, a Igrejinha de Oscar Niemeyer dialoga com a paisagem marcada pelo horizonte “desnudo”, desta parte do sertão brasileiro.
A Igrejinha de Oscar Niemeyer
Para o entendimento da obra da Igrejinha é necessário, primeiramente, compreender o memorial do Plano-Piloto escrito por Lucio Costa, especialmente, os dois primeiros itens:
“1. Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dêle toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz. (sic)
2. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo eqüilátero que define a área urbanizada (sic)” (3).
O Plano-Piloto nasceu, portanto, de uma subordinação ao genius loci e da intenção de harmonizar cidade com a natureza, que pode ser percebida quando considerado a importância dada ao gabarito imposto aos edifícios das quadras residenciais. Nelas, as copas das árvores atingem, invariavelmente, a altura das construções. Tomando certas distâncias, a massa de verde e os edifícios parecem fundir-se. Cidade e paisagem, portanto, confundem-se. A cidade é a paisagem. A paisagem é a cidade, que é conformada por meio dos eixos primordiais e os demais eixos secundários consonantes com a topografia.
A igrejinha, seguindo a proposta das Unidades de Vizinhança, serve como um dos equipamentos pensados para promover a socialização dos moradores das quadras residenciais mais próximas. Posicionada em um ponto mais elevado na topografia, sua fachada principal volta-se para o Leste. A forma triangular da cobertura, predominante na visão da volumetria cria uma relação com cidade e a paisagem, seguindo os eixos voltados na direção Leste-Oeste. O triângulo, forma predominante no conjunto, aponta a direção Leste – a mesma de um dos eixos principais: o Monumental. A igrejinha, portanto, anota a força do lugar.
O volume composto pelo espaço da igreja tem suas paredes externas revestidas pelos azulejos de autoria de Athos Bulcão; a cobertura alva em forma triangular e sinuosa; e os pilares que, seguindo a mesma cor da cobertura, marcam os vértices.
Os três pilares, tomando-se a planta-baixa, posicionados nos vértices do triângulo da cobertura, acentuam a relação da obra com a paisagem e a cidade. Dinamismo e tensão da volumetria são reproduzidos em planta.
Os pilares, a sua maneira, reproduzem o triângulo e a sinuosidade da cobertura, contribuindo para a unidade e o dinamismo da volumetria. Eles encontram a cobertura em sua menor dimensão, imprimindo leveza à composição. Essa leveza é potencializada pelo contraste entre a parte alva do edifício e o espaço da igreja, com seu revestimento em cerâmica, onde predomina a cor azul.
A planta-baixa do espaço da igreja propriamente dito segue a forma triangular- criou-se uma forma específica do triângulo como forma genérica. Os vértices da base sofrem uma sensível curvatura, reproduzindo a sinuosidade dos demais elementos.
Tomando o corte no sentido Leste-Oeste, percebe-se como a curvatura da laje, cria, através da variação de pé-direito, um ritmo variável de percepção do espaço, desde a entrada até o interior. A entrada é marcada pela acentuada inclinação da cobertura, que tende à forma reta e mais delgada no trecho mais próximo à fachada principal, criando um efeito: o triângulo, que ao mesmo tempo aponta a direção Leste, cria um direcionamento para o céu – uma possível tentativa de inserção de uma referência ao sentido de transcendência, de acordo com o conceito temático.
A igreja está postada após o adro, que reproduz a forma da construção: um triângulo isósceles. Os dois triângulos relacionam-se e interceptam-se.
A escadaria, vencendo a topografia, cuja largura é aproximadamente metade da largura, cria um ritmo de aproximação até a entrada, servindo como ligação entre a edificação e a rua. Reproduz-se um elemento presentes em nossas igrejas antigas, como as de Minas.
Considerando as medidas da obra construída, extraídas com uso do programa Google Earth, é possível afirmar que, excetuando a escadaria, nenhuma relação matemática foi utilizada para a definição dos elementos que compõem a obra, considerando-se, por exemplo, correspondência entre o adro e a planta da igreja.
Quanto ao paisagismo, a massa de árvores, na interface entre a Igrejinha e as edificações mais próximas, envolve e, de certa maneira, emoldura a edificação, sem que seja eliminada a permeabilidade visual no sentido das quadras residenciais. As árvores servem ainda como um pano de fundo para as fachadas.
Assim como na igreja da Pampulha, novamente os azulejos são utilizados como elementos de decoração, desta feita, desenhados por Athos Bulcão. A tradição lusófona incorporada pelo modernismo é mais uma ligação com as construções barrocas brasileiras, como a Igreja e Convento de Santo Antônio, em Recife (1656-1734), projetada por Francisco José de Roscio, (imagem 21) ou a Igreja e Claustro de São Francisco, em Salvador (1723), projetada por Manuel de Quaresma.
No interior, a pintura de autoria de Volpi, destruída, sem que fosse possível recuperá-la, foi substituída pela obra do artista piauiense Francisco Galeno. Assim como Volpi, Galeno, em 2009, que, como Volpi, misturou o sagrado ao profano. As figuras estão sobre um tom de azul claro de razoável intensidade. A representação de pipas e flores, incorporando outras tonalidades, teria sido utilizada pelo artista para simbolizar a aparição de Nossa Senhora para as três crianças na cidade de Fátima, em Portugal.
Apesar da similaridade entre a linguagem de Volpi e Galeno, a obra foi motivo de grande polêmica entre os fiéis que chegaram a articular um protesto por meio de um abaixo assinado. Mas, prevaleceu o bom senso. A criação de Galeno permanece como ornamento do interior (4).
Forma e aspectos simbólicos
As obras de Oscar Niemeyer caracterizadas pelo grande apelo formalista tornam-se, em muitos casos, passíveis de interpretações equivocadas por parte do público em geral. Diz-se, por exemplo, que a da Catedral de Brasília seria a representação das mãos no ato da prece. No caso da Igrejinha, as formas seriam, no imaginário popular, a referência a uma parte das vestimentas das irmãs Vicentinas, utilizada para cobrir a cabeça.
A interpretação do autor deste artigo é a de que a referência teria sido o tema do Mistério da Santíssima Trindade, representado de forma recorrente nas pinturas da antiguidade. Como ilustração, utiliza-se a imagem que mostra uma das obras do pintor renascentista alemão Albrecht Dürer (1471-1528): A Santíssima Trindade.
À maneira de conclusão
Este artigo foi escrito com o intuito de criar mais uma fonte de consulta sobre as obras mais importantes da arquitetura brasileira no último século e, de alguma maneira, incentivar os estudantes de arquitetura para o estudo teórico e de projetos, fazendo-os compreender a sua importância como meio para se alcançar um grau de excelência nas atividades voltadas para o projeto. A leitura de uma obra de relevância, pode- se dizer, equivale à reprodução do raciocínio de quem a concebeu. Ademais, saber ler um projeto de arquitetura é um meio importante para ensinamento do que é essencial para a construção de um memorial descritivo e, desta maneira, possibilitar ao aluno o aprimoramento da maneira como se expressar ao defender o partido arquitetônico, falando ou escrevendo.
As aulas dedicadas ao projeto são, com efeito, a síntese de todas as teorias apreendidas em outras matérias da grade curricular. Entretanto, percebe-se uma tendência natural dos estudantes em considerar o estudo teórico como uma etapa de sua formação profissional a ser vencida, por assim dizer, de maneira burocrática. Há uma geral aversão à leitura, que pode ser encarada como uma conseqüência do aumento do distanciamento cada vez maior entre o aluno, de todos os níveis, e as formas tradicionais de registro de conhecimento, como os livros, periódicos e jornais.
A internet, como imperativo tecnológico, acabou por produzir o que hoje é chamado de a “geração Harry Portter” – referência à crença dos jovens de que com alguns toques no teclado, como um “passe de mágica”, utilizando os comandos copiar e colar (uso em sequência do control c seguido de control v), é possível absorver algum conhecimento apenas reproduzindo ou “colando” na página em branca uma informação extraída de algum texto disponível em algum site ou sítio. Essas informações, na maioria das vezes, são prospectadas sem que seja feita uma avaliação da qualidade do conteúdo e a aferição da confiabilidade da fonte consultada. Pensar a internet como o único meio eficaz para a obtenção do conhecimento, é o mesmo que se submeter aos riscos da crença de que para o aprendizado passou a valer a máxima da arquitetura: “menos é mais”. Toma-se como desafio, portando, fazer com que o estudante de arquitetura acostume-se à reflexão por intermédio do hábito da leitura, tanto de assuntos específicos, como também, da cultura em geral.
A Igrejinha de Oscar Niemeyer, além de ser um dos mais importantes exemplares de nosso momento modernista, do ponto de vista didático é uma obra que tão bem serve como demonstração do que se espera de uma boa arquitetura: a necessária sensibilidade do autor do projeto em relação a determinados aspectos, como a cultura local, a cidade, o sítio, e o tema. Nesse sentido, Brasília guarda um elenco de obras tão representa a dimensão da importância da contribuição de Oscar Niemeyer à arquitetura brasileira, como foi assinalado nas palavras de Lucio Costa quando afirmou que:
“A habilidade e a clareza com que organiza as linhas gerais da composição, seja na planta, no corte ou na fachada, e a segurança com que seleciona, purifica e leva à sua forma final cada parte do edifício, são os segredos da arte de Niemeyer. Apesar de ser um artista, no sentido mais estrito da palavra, Niemeyer, tanto por formação como por atitude mental, não é nem pintor nem escultor, mas cem por cento arquiteto” (5).
notas
NE1
Agradecemos Eduardo Rossetti, arquiteto do Iphan-DF, pela colaboração na pesquisa de imagens no acervo de sua instituição e pelas fotos de sua autoria, que também ilustram este artigo.
NE2
Gildaci Nóbrega, autora de uma das imagens publicadas, é aluna do autor no curso de Teoria e História da Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da Uniplan DF.
1
MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra. Uma mineira em Brasília. Série Lerelendo. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996, p. 30.
2
NIEMEYER, Oscar. Minha experiência em Brasília. 4ª edição. Rio de Janeiro, Revan, 2006, p. 29.
3
COSTA, Lucio (1957). O memorial do Plano-Piloto. In XAVIER, Alberto (org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. 2ª edição. Porto Alegre, Uniritter, 2007, p. 265.
4
O globo.com. Acesso EM 21 de abril de 2011.
5
COSTA, Lucio (1950). A obra de Oscar Niemeyer. In XAVIER, Alberto (org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. 2ª edição. Porto Alegre, Uniritter, 2007, p. 164.
sobre o autor
Francisco Lauande Jr. é arquiteto. Formado pela Universidade de Brasília (1987). Tem curso de pós-graduação em Sistemas de Construção pela Universidade Metropolitana de Tóquio. Mestre em teoria, história e crítica pela Universidade de Brasília. Professor adjunto da Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da Uniplan DF, em Brasília.