As estações e terminais de transportes parecem ser parte inevitável do futuro de nossas metrópoles, conectando pessoas de regiões e municípios distintos. O princípio de funcionamento dessas conexões é a eficiência: esperar o mínimo possível, acelerar a entrada e saída, facilitar o acesso, disponibilizar informações. Talvez por isso, tenham sido classificadas por Marc Augé como “não-lugares”, ao não oferecerem tradicionalmente a possibilidade de algum tipo de relacionamento com o lugar e desestimular o relacionamento entre as pessoas. “Um não lugar é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história” (1).
Nesse sentido, a notícia de um terminal que tenha criado um espaço de qualidade é muito bem vinda. Que ele crie condições de melhorar o conforto e a fruição de um local de passagem é algo que melhora a experiência da vida urbana.
Em São Paulo, são 29 terminais, sendo um intermunicipal. A visita ao terminal da Lapa mostrou que não é difícil melhorar a experiência do passageiro de ônibus, mas que um bom projeto deve vir acompanhado de mais conhecimento sobre o ponto de vista do usuário e, principalmente, de uma gestão do dia a dia.
O projeto
O projeto do terminal tem o mérito de não pretender chamar demais as atenções para si, integrando-se com graça à paisagem da cidade. A partir da praça em frente, não se mostra totalmente, em meio às árvores e construções. De perto, mostra-se funcional, prático, iluminado.
A estrutura em arcos protege os usuários da chuva e do sol, mas as aberturas iluminam e dão vazão à fumaça. Como dizem os próprios autores do projeto, arquitetos Luciano Margotto Soares, Marcelo Ursini e Sergio Salles, “os arcos metálicos leves configuram uma sensação espacial de interioridade típica das antigas gares, ao mesmo tempo em que transmitem com eficiência os esforços transversais da estrutura” (2).
O objetivo inicial de organizar as 23 linhas de ônibus foi resolvido com acessos viários diretos e uma boa área de espera. O desafio agora é continuar atendendo bem os quase 40 mil passageiros que circulam por dia. O pico é no início e no final do dia, mas a qualquer momento, há uma enorme fila na bilheteria para carregar o bilhete único.
Urbanidade
Diante das metas de mobilidade estabelecidas no Plano Diretor, promulgado há menos de um mês, as estações terão cada vez mais protagonismo na produção de espaços públicos em São Paulo. É de se esperar que elas se tornem lugares propícios ao encontro. O terminal da Lapa representa um passo nessa direção. A um quilômetro dele, por exemplo, dá para ver o contraste com um terminal “comum”, na rua Nossa Senhora da Lapa:
Dentro do terminal, há alguns serviços aos usuários, como banheiros razoavelmente limpos e caixas eletrônicos. Mas ele oferece algo muito importante, comida, que foi definida por William Whyte (3) como um dos grandes indutores do aumento da permanência de pessoas nos espaços públicos. Inicialmente fora do projeto inicial, os boxes de comida rápida ocuparam o centro da ilha mais importante, evidenciando o improviso e reduzindo o espaço para as enormes filas do horário de pico.
Os painéis eletrônicos dão as informações necessárias aos que sabem que linha pegar, mas, segundo o responsável pelo lugar, o terminal acolhe muita gente de fora da cidade, que precisa de informações melhores sobre o número da linha para cada destino. Em uma conversa de menos de quinze minutos, fomos interrompidos onze vezes para ele dar as informações: “Vila Mariana? Segunda plataforma, ônibus 875 H-10”; “Barra Funda? Saia da estação e pegue o trem da CPTM”.
Integração com a cidade
O terminal de ônibus recebe e manda passageiros para o trens da CPTM. A integração não é direta; é preciso sair de uma para entrar em outra estação, o que é complicado pelo fato de existirem duas estações de trem na vizinhança, uma que serve o centro e outra a região noroeste, até Jundiaí.
A integração do terminal com o entorno também é importante. Afinal, ele é cercado por equipamentos e pontos importantes da Lapa: Estação Ciência, Mercado Municipal da Lapa, Shopping Lapa, Rua Nossa Senhora da Lapa, além das estações da CPTM. O ponto de articulação com esses locais é uma praça, fora do terminal, que foi reformada e ampliada pelo projeto.
Um pequeno adendo externo, ao longo da ferrovia, facilitou um pouco essa integração, mas o caminho tem seus obstáculos.
Apesar de público, o terminal impõe algum tipo de filtro para a entrada – e, como espaço público, não deixa de ser extemporânea a proibição de fotografias – de “indesejáveis”. O contraste entre o dentro e o fora talvez explique isso. Se o terminal é limpo e seguro, a praça, ampliada pelo projeto, parece ser seu oposto, principalmente à noite.
Os conflitos parecem ser inevitáveis nas escadas e acessos reduzidos. Presenciei uma briga de socos entre um morador de rua e um passageiro, por motivo fútil, o que, segundo o responsável, é fato corriqueiro.
Apesar disso, dentro do terminal, pessoas sentam nos bancos, checam suas mensagens, e parecem à vontade até para namorar. Diante do peso das novas e inevitáveis obras de infraestrutura na cidade, é oportuno lembrar do mote do arquiteto argentino Alberto Varas – “arquiteturizar a infraestrutura” (4) –, que ressalta a possibilidade de transformação de espaços de passagem em permanência.
notas
NE – Esse é o segundo de uma série de cinco artigos, publicados mensalmente, sobre os cinco projetos brasileiros selecionados para a primeira edição do Prêmio Rogelio Salmona, criado pela fundação leva o nome do arquiteto colombiano, morto em 2003, para reconhecer projetos latino-americanos que contemplam arquiteturas que geram espaços abertos /coletivos. Os projetos escolhidos do Brasil são os seguintes: Parque da Juventude, Terminal da Lapa, Praça Victor Civita, Escola Projeto Viver (vencedor geral), em São Paulo; e Terminal Digital do Ensino, em São Caetano. Além de focar seu interesse na criação, o prêmio prioriza projetos testados por pelo menos cinco anos, o que justifica o período temporal entre os anos 2000 e 2008 dos projetos selecionados. O júri do Prêmio Rogelio Salmona 2014 foi composto por Silvia Arango (Região Andina), Fernando Diez (Região Cone Sul), Ruth Verde Zein (Região Brasil), Louise Noelle Gras (Região México, América Central e Caribe) e Hiroshi Naito. Os artigos publicados são os seguintes:
CALLIARI, Mauro. O Parque da Juventude. O poder da ressignificação. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 162.03, Vitruvius, jun. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.162/5213>.
CALLIARI, Mauro. Terminal de ônibus da Lapa. Arquiteturizando a infraestrutura. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 163.03, Vitruvius, jul. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.163/5252>.
CALLIARI, Mauro. Espaço Viver Melhor – Projeto Viver. A criação de um espaço de uso coletivo a partir de uma escola. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 164.01, Vitruvius, ago. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.164/5265>.
CALLIARI, Mauro. Terminal Digital do Ensino, São Caetano do Sul. Um prédio que conversa com a cidade. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 164.01, Vitruvius, set. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.165/5303>.
CALLIARI, Mauro. Praça Victor Civita. Um espaço público de qualidade numa antiga área degradada. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 163.02, Vitruvius, out. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.166/5354>.
1
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo, Papirus, 1994, p. 119.
2
NÚCLEO DE ARQUITETURA. Terminal de ônibus Lapa, SP-Trans. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 163.03, Vitruvius, ago. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.163/5252>.
3
WHYTE, William. The Social Life of Small Urban Spaces. 9ª tiragem. Nova York, Project for Public Spaces, 2012.
4
VARAS, Alberto. Buenos Aires metrópolis. Buenos Aires, Harvard University/Universidad de Buenos Aires/Universidad de Palermo, 1997.
sobre o autor
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor de organizações.