No centro de uma mostra de arquitetura em contêineres em Lagoa Santa, submergidos entre construções, muros e árvores vemos, pelo Superiscópio e em ligação direta, a lagoa que dá o nome à cidade.
O Superiscópio é um contêiner de doze metros disposto na vertical e ativado como periscópio por dois espelhos a 45 graus, um em cima e outro em baixo. Com esta proposta, procuramos um contributo simultaneamente global e local. Global por contribuir para a recente historia da reciclagem criativa dos contêineres com uma solução que nunca vimos e que foi identificada como o maior periscópio do mundo, local por permitir que a Lagoa que dá o nome à cidade esteja presente no centro do evento, visível por cima de todas as construções através do novo contêiner-periscópio.
Arquitetura como hipertexto
O Superiscópio insere-se numa investigação que temos desenvolvido recentemente através de alguns projetos: a arquitetura como hipertexto, ou a inserção do link na promenade architecturale.
Pela sua capacidade de ligação direta entre duas realidades distintas, o periscópio permite introduzir, na ancestral narrativa com que se projeta arquitetura, a imediatez do hipertexto.
Os contributos mais recentes do mundo digital cruzam-se cada vez mais com o mundo físico: o airbnb com dormida, o uber com circulação, o instagram com paisagem. A relação dos indivíduos com os espaços altera-se inevitavelmente e é frequente sairmos-sem-sairmos de um espaço em direção a outro através de um celular e uma ligação wifi.
Acreditamos que o periscópio pode introduzir essa liberdade relacional na arquitetura, ligando luz natural a salas interiores, vistas infinitas a varandas limitadas, o fundo à frente, o ver ao não ser visto, o sair-sem-sair.
Habitação, trabalho, lazer, circulação
O Superiscópio de Lagoa Santa representou a elevação à escala urbana de uma pesquisa que temos feito sobre a hipertextualização da arquitetura através de intervenções periscópicas nas quatro dimensões da vida moderna: habitação (casa dos periscópios), trabalho (escritório ac), lazer (exposição procura arquiteto) e circulação (portaria da hípica).
Habitação (casa dos periscópios)
O periscópio é um objeto com larga tradição no golfe, esporte em que era utilizado fundamentalmente nos ano 50, para que os jogadores vissem melhor um buraco longe e mesmo para que o público visse cada jogada.
Cruzamos esse objeto e objetivo com o projeto de casa para um apaixonado de golfe, a construir em frente ao campo.
Assim este pode ver, sentado na sua varanda, o inicio e meio do circuito, num estrabismo permitido pelos dois grandes periscópios elevados diagonalmente a 6 metros de altura nos extremos da casa.
O lote menos valorizado por não ser próximo de nenhum dos pontos-chave do campo passa a ser o mais valorizado, como um lugar central num estádio de futebol.
Trabalho (escritório AC)
Num escritório de advogados, o objetivo era a valorização dos dois espaços visitados pelo público: a sala de reuniões e a sala do advogado principal. Uma requalificação que subtilmente sublinhasse a posição de poder de quem recebe e a aceitação de honorários maiores por quem é recebido.
Na pequena investigação sobre salas de lideres relevantes (Barak Obama, Bill Clinton, Donald Trump, Don Draper), o elemento-chave comum ficou claro: a grande janela com vista sobre a cidade, nas costas do líder, emoldurando a sua figura.
O escritório para onde projetamos tem uma dessas janelas, mas desaproveitada e longe das salas interiores a requalificar.
Através de um periscópio vertical embutido no forro levamos metade da janela (e luz e vista) até à sala de reuniões e, através de um periscópio horizontal no interior de um armário, levamos outra metade até à sala do advogado.
Assim se ultrapassa um paradoxo dos espaços de trabalho. As salas para recepção de publico devem ficar próximas da entrada, mas sem luz natural, ou perto das janelas mas queimando área de circulação até lá? Escolhendo o link em detrimento da promenade, podemos ter o melhor dos dois mundos.
Lazer (exposição procura arquiteto?)
Procura Arquiteto? é um diretório virtual que serve para ajudar um potencial cliente a encontrar facilmente um arquiteto.
Este projeto foi a sua tradução para o meio físico, com stands individuais dos arquitetos espalhados pelo espaço.
Procurando contornar uma localização menos favorável dos stands (perdidos no meio do enorme espaço expositivo) e materializar a versão física da ligação direta permitida por um diretório virtual, construímos um periscópio que liga diretamente quem chega, ao alvo pretendido, lá no fundo.
Nos espaços dedicados ao trabalho, tendemos a lembrar de que “tempo é dinheiro” e, por esse motivo, otimizar ligações. Nos espaços dedicados ao lazer podemos assim utilizar também da melhor forma o nosso tempo, fazendo ligação direta entre o que nos interessa.
Circulação (portaria da hípica)
Esta portaria tem uma dupla condicionante: é muito vista desde cima, porque todos os lotes do condomínio estão a uma cota alta e insere-se numa zona de proteção ambiental, com fauna e flora importante.
Com a proposta de um lago para a cobertura resolvemos os dois problemas: quer a visibilidade da cobertura, quer o cuidado com o ecossistema envolvente (o lago foi projetado em coautoria com biólogos locais, de forma a que vários animais ali bebessem e se alimentassem).
No entanto, o principal cliente da estrutura, o morador, estava fora da equação e não queríamos construir mais uma portaria que faz sentir desconfortável quem está a chegar a casa (nunca vimos ninguém sorrir com o “sorria, está a ser filmado”).
Assim, com um sistema de periscópios embutido nas paredes laterais e uma janela-espelho rasgada ao nível dos olhos do condutor, conseguimos que este veja, quando parado sob a portaria, o lago e toda a vida que dele se alimenta lá em cima. Inversamente, também o reflexo da água de cima é trazido até ao teto da portaria, lembrando uma insólita passagem por baixo de uma ponte num qualquer canal ou rio.
Uma falha rodoviária, porque os filhos pedem aos pais que fiquem parados um pouco mais e assim travam o trânsito, mas um sucesso da arquitetura.
Circulação está implicitamente associada a ver em frente (por isso os cavalos de transporte têm palas nas laterais) e uma portaria está implicitamente associada a parar para ser visto. Fugir através de um periscópio em direção a um universo aquático e vegetal surpreendente faz com que não sejamos só nós a ser marcados na entrada, mas também que a entrada fique marcada em nós.
Não temos wi-fi. Falem uns com os outros
Através dos periscópios, procuramos construir espaços resultantes do cruzamento entre propriedades do universo físico e virtual, entre a narrativa e estabilidade do espaço físico e a possiblidade de saltos entre realidades permitidos pelo mundo virtual.
Há uma grande impaciência e desencanto das pessoas relativamente aos espaços que vão habitando ao longo do dia. A fuga constante, através do celular e de uma rede wifi, para realidades distantes, poderá representar uma ansiedade própria do nosso tempo, mas também um justificado gesto de desilusão e desinteresse perante espaços que falham em cativar e estimular quem os usa. Quem nunca agradeceu pela invenção do smartphone enquanto espera numa repartição pública?
Com a introdução do conceito de hipertexto na narrativa corrente das arquiteturas que encontramos, o que temos tentado é integrar essa possibilidade de fuga ou procura do que de mais interessante está perto, mas fazendo-o com um sentido coletivo e de ligação complementar entre realidades existentes.
Aumentando a sua escala e usando-o como ativador espacial, podemos elevar o periscópio da sua dimensão tradicionalmente individual para libertar os nossos espaços de narrativas unívocas e genéricas, somando a salas, casas, feiras, condomínios e cidades os links mais interessantes que estes potenciem.
Cada vez mais bares têm a placa “Não temos wifi. Falem uns com os outros”, incentivando à recuperação de uma relação com o meio que se tem perdido para a rede wifi. Os nossos periscópios procuram contribuir para esse manifesto, trazendo “os outros” para mais perto através de espelhos que servem para ver a eles, não a nós.
ficha técnica
local
Lagoa Santa, MG
evento
Mostra de Arquitetura em Conteiners
data
2015
autoria
Pedro Barata e Arquitetos Associados
construção
Apex
área
9m²
fotografias
Osvaldo Castro, Fábio Cansado