As diferentes possibilidades e riscos de comentar o mais recente livro de Otília Arantes estão na proporção das frentes que abre: crítica de arquitetura, crítica social, crítica da cultura, filosofia, estética, etc. Um certo mal estar provocado por sua leitura, nos diferentes leitores, pode ser fruto da apreensão setorizada que estes têm feito. Alguns pretendem que a autora esbarra na arquitetura, mas não faz uma análise arquitetônica. Outros, que esbarra na sociologia, mas não segue seu método, e assim por diante. É verdade; num mundo de especialistas, Otília Arantes enfrenta a totalidade do processo que analisa. E não poupa recursos para essa empreitada, pois mobiliza uma extenuante linhagem de autores, que não são eleitos ao sabor do ecletismo vigente, mas pelo poder de explicação dos fenômenos em pauta. É como se o atual estado das coisas exigisse uma verificação crítica daqueles pensadores que analisaram o processo in nuce. Recuperar esse “fio de Ariadne” é evitar que o labirinto fragmentado da experiência contemporânea seja entendido a partir da fragmentação, que o simulacro seja objeto e sujeito do pensamento. Como fazer isso sem as totalizações modernas, é um exercício de clareza em meio às turbulências de hoje; porque criticar o “mundo da imagem” a partir dos paradigmas industriais da modernidade soa nostálgico e inútil. Sem “Progresso” e “Futuro”, a crítica responsável ao mundo tornado mercadoria tem certo sabor acre, inevitável se não se quer cair no entusiasmo irracionalista ou em racionalismos reprovados no teste da História. A própria forma ensaio permite que os temas sejam discutidos a partir de ênfases. Esses temas reaparecem com freqüência no decorrer dos textos, cada vez articulados a diferentes questões. Ao contrário de multiplicar o objeto, indica a sua essência, só alcançável por aproximações críticas.
Isso ajuda a explicar o porque a arquitetura – e sua ação sobre a cidade – é o ponto de partida, e não de chegada, desse pensamento. Ela aparece como referência em dois momentos, exatamente os cruciais do argumento, e aos quais se dirige a crítica:
1) a arquitetura como “câmara de decantação das vanguardas” (sucessora legítima da ação da vanguarda, por ser a possibilidade da “arte total”, e ao mesmo tempo o âmbito em que se eliminaram as contradições da arte moderna), síntese de um projeto racional iluminista, a que mais torna claros os seus impasses.
2) a arquitetura como “arte de massa”, a mais antiga, suporte privilegiado da sociedade da comunicação, da “forma-publicidade” do capitalismo atual.
Quer seja como utopia construtiva, quer seja como simulacro, a arquitetura-cidade é a esquina onde se encontram o projeto moderno e seu sucedâneo, a cultura simulada. Aí a novidade: estes movimentos não se opõem, se complementam, o último conclui o primeiro. Isso desagrada a gregos e troianos, a “modernos” e “pós modernos”. O interesse do objeto arquitetônico dentro dessa análise vai até o momento em que ficam claras essas decorrências. Como ideologia, tanto a moderna (“do plano”) como a “pós-moderna” (“do lugar”) revelam, ao serem concretizadas, construídas, o outro lado da “utopia” (da vanguarda) ou “resistência” (dos anos 60): seu vínculo de origem com o processo capitalista em mutação. Se na arquitetura – e arte – moderna o funcional era também o “funcionalismo sistêmico”, nas últimas décadas (até os anos 80) o elogio da “diferença” na cidade também vai ao encontro da fragmentação da vida contemporânea, da absolutização da Cultura resfriada, agora parceira do capitalismo do final do século. Quando esse processo fica claro – quando os projetos de “requalificação” vão sendo implementados, ao mesmo tempo se consolidando a nova feição da “globalização” – não existe mais vestígio de ideologia na arquitetura. Esta passa, nos 90, a tradução, sem mediação, do “mundo econômico”, portanto, coincidente com ele, e não tem mais o interesse das análises das ambigüidades do passado, que apontavam possibilidades.
Para uma crítica à modernidade e seu projeto, e à contemporaneidade, a arquitetura é uma necessidade e não uma especialidade crítica ou aptidão. E é por isso também que neste último livro não existe mais uma análise de arquitetura propriamente dita, à maneira de “Arquitetura Simulada”. A arquitetura, como disciplina, é hoje coadjuvante na formação da imagem da cidade, ou melhor da cidade como imagem. Seu percurso ideológico se exauriu já nos anos 30, tendo conseguido nos anos 70 uma retomada, em retaguarda, de sua “função” social, agora desalienadora. Se no livro anterior (1) ainda se podia preservar uma experiência contemporânea empenhada, de uma arquitetura desenvolvida criticamente a partir do contexto e distinta da produção mais geral, historicista ou pop, neste último livro esta possibilidade está descartada.
A alguns que vêem de fora parece que a autora – que vinda do “discurso” filosófico encontrara vocação nas análises de arquitetura nos anos 80 – retrocede ao “discurso”, filosofando a arquitetura e a cidade. Mas é dar uma olhada em seu percurso, para ver que ele também percorreu o caminho de seu objeto.
Otília Arantes voltou-se para o estudo em detalhe da arquitetura quando esta surgiu no cenário internacional como “explosão” da contestação ao formalismo moderno. O espírito da “pós-modernidade” se alojou naquela arquitetura do final dos anos 70, fruto das discussões sobre a linguagem, o tipo, a cidade, o contexto, etc., em preparo desde o fim da guerra. Por materializar as mudanças pelas quais passava a sociedade contemporânea, a arquitetura, a partir da bienal de Veneza de 1980, monopolizou parte das discussões sobre a Pós-modernidade (Habermas, Lyotard, etc.). Tanto a formulação do funcionalismo mais moderno (“do talher à cidade”), quanto sua derrocada ideológica (o hedonismo narcisista pós-moderno), estão impressos no desenvolvimento da “arquitetura das cidades”, quer seja naquilo que se produziu (cidades novas, grandes intervenções, edifícios “obras de arte”, etc.) como na reflexão a respeito.
As práticas arquitetônicas dos anos 70 e 80 apontavam para vários caminhos, que o ensaio pioneiro sobre a Bienal de Veneza mapeava. A maioria desses caminhos consagrava a “arquitetura simulada”, em certa oposição a uma “situada”, fruto das análises dos arquitetos e pensadores italianos e ingleses durante os anos 60 e início dos 70. Depois da experiência avassaladora da “tábula-rasa” do plano moderno, esses arquitetos buscavam ancorar a produção da arquitetura em uma realidade social, cultural e histórica de um “lugar”. Da mistura, bem datada, do genius loci e espaço público tiraram a fórmula empenhada da appartenenza, arquitetura e contexto se relacionando criticamente. A cidade existente passa a ser então o objeto primeiro da análise arquitetônica, condicionando todas as hipóteses do projeto. Os anos 80 viram nascer em todo canto projetos de “contexto”, que procuravam reviver a aparente morte do espaço público dos desertos modernos nas grandes cidades. Espaço público, vida pública, desalienação, em contraposição ao individualismo, à fragmentação e ao simulacro.
Um primeiro sinal de que algo se perdera nessa retomada (uma “aura bastarda”): ficava cada vez mais difícil separar as tentativas de “enervamento” da vida pública da Gesellschaft (sociedade) das iniciativas de recriar o espírito da Gemeinschaft (comunidade), nostálgicas de uma sociabilidade pré-industrial, que ia ao encontro do intimismo, do gueto e ... da morte do espaço público! Então, do espaço público “explosivo” e revolucionário dos anos que antecederam a Revolução Francesa à segregação do espaço das metrópoles contemporâneas, um único e contraditório ciclo burguês (Sennett). Sem esquecer nem mesmo a tentativa de superação da dicotomia público-privado do projeto moderno – cuja dimensão anti-burguesa derrubava paredes, iluminava interiores e expunha a nova vida através do vidro, e cuja dimensão “funcional” criava as células mínimas de reclusão do indivíduo acuado e desertificava o espaço externo. No auge da euforia pós-moderna da cidade – que guiava a maior parte das intervenções nos anos 80 –, algo indicava que a vida pública, e não simplesmente o espaço em que esta se desenvolve, se tornara um dado do passado das cidades.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do capitalismo e as análises mais críticas – ajudadas até pelos apologistas – sobre a “mundialização” do capital, a retirada do véu (o “muro de Berlim”...) que encobria o verdadeiro conflito contemporâneo, a entrada do Brasil pela porta dos fundos nesse processo (vista daqui a situação do mundo ganha mais definição), ou seja, a realidade permitindo esclarecer – ou dando sentido a – alguns fenômenos recentes, tudo isso fez com que as experiências dos anos 80 fossem iluminadas no seu verdadeiro significado (o que não retira a força de algumas delas, como resposta coetânea à deterioração social em curso). Então essa “clarificação” do processo capitalista dos últimos anos também vai contribuir para que se relativize a “boa vontade” daqueles projetos que tinham como alvo a retomada da vida pública, e também para aproximá-los, não sem muito desconforto, daqueles exemplares mais evidentemente celebrativos do mundo “obsceno” do espetáculo. Somada às análises da arquitetura mais recente – o novo estilo internacional das torres comerciais das mega-empresas –, o diagnóstico é implacável.
A crítica contemporânea à totalidade moderna tem dois lados: a recusa àquela aliança extra-arquitetônica com “funcionalismo sistêmico” totalitário, e a atualização da cidade e do discurso à nova sociabilidade que celebra o gueto, retira da cena parte da população (os excluídos, novos personagens do neoliberalismo), e transforma a arquitetura em forma-publicitária (esta era a sua ancestral vocação?). Aparentemente nenhuma iniciativa hoje tem o poder de reverter, questionar ou passar ao largo dessa contaminação, porque um círculo se fecha e se retroalimenta. Tudo é mercadizado, não apenas a arte, mas a cultura, antagonismos e oposições; tudo ascende à mesma condição e se equivale, num amplo sistema que inclui objetos e indivíduos transformados em fluxos de informação. A espacialização da nova ordem capitalista prescinde das “cidades”, conforme se entendera o fenômeno urbano até pelo menos a segunda grande guerra, transformando-as em aglomerações urbanas informes em que convivem modos de vida pré-neolíticos com as altas performances tecnológicas. Planejamento urbano, zoneamento, regulamentação, cedem espaço ao design urbano, à intervenção pontual e às alavancas acionadas pelas novas operações urbanas, que procuram reverter a deterioração de áreas da cidade (centro ou bairros). Correções discretas aos possíveis desajustes dos mecanismos da livre iniciativa da produção das cidades, permitindo e reforçando a espontaneidade, aleatoriedade e polissemia do “grande texto”. Novamente as mais avançadas aspirações da vanguarda – e seu ressurgimento nos anos 60, depurado pelas críticas aos resultados totalitários e “extraordinários” da arte moderna – “ao se realizarem transformaram-se em seu contrário”. A degradação da vida nas cidades contemporâneas prova que as iniciativas “revolucionárias” dos anos 60 e 70 foram incorporadas à lógica geral, produzindo um único artefato, ao mesmo tempo fragmentado – “local” e “global” – e de segregação, preparando o mundo para a uma nova divisão abissal entre incluídos e excluídos.
Essa “filosofia” (sic) que tem incomodado e frustrado os arquitetos e afins, depois de uma aproximação quase amigável, é de fato a concretude do processo. Aqui uma inversão: nunca a “filosofia” (entendida na sua forma mais abstrata e separada da vida) foi tão próxima da arquitetura, mas é essa crítica materialista – e toda a relação concreta que daí se depreende – que se renega como discurso hermético e “filosófico”. O “mundo da imagem”, a “morte do sujeito”, a “desconstrução”, etc, voltaram nas últimas décadas (agora já vão passando, substituídas por um jargão empresarial) para dar suporte, a posteriori, à produção arquitetônica. Filósofos muitas vezes patrocinados pelo star system da arquitetura enchem de “filosofia” as publicações especializadas. Mas uma filosofia que a partir da experiência procura compreender o processo global aparece como “discurso” anti-arquitetônico. Talvez porque ela anuncie exatamente a abstração do processo para uma disciplina “tectônica” (cuja autonomia é a mais relativa). O percurso da autora atravessou a produção arquitetônica nos anos 80 e se volta agora cada vez mais para a análise direta do processo econômico e social, no acirramento dos entraves. A arquitetura (e a arte?) perdeu a propriedade que permitia, de forma privilegiada, usá-la como mirante para a panorâmica compreensiva e crítica da sociedade capitalista, e o “estético” se diluiu na vida-espetáculo. Talvez, como decretava Tafuri no final dos anos 60, referindo-se à derrocada da “ideologia do plano” nos anos 30, a arquitetura esteja condenada definitivamente a tarefas de suporte marginal.
É a História da Arquitetura que deve se encarregar da especificidade desse processo na arquitetura. A arquitetura de hoje, porém, cria uma unidade com os discursos sobre a arquitetura e a cidade. Tanto das generalidades sobre a cidade à cidade, como do planejamento da cidade para um discurso sobre o urbano, temos uma elaboração contínua, que trata, em abstrato, de formas, diferenças, lugares, cultura urbana, etc. Discurso que acompanha a produção de uma mega-mercadoria (que se desmancha no ar...), que mescla num conteúdo publicidade, cultura, forma arquitetônica, relações sociais, etc. Não se trata mais de arquitetura propriamente dita (domínio em separado das outras formas artísticas ou sociais). Esse é o mais desconfortante subproduto da leitura interessada – de arquitetos – do texto. E não adianta anunciar que essa arquitetura “em fim de linha” é fruto de um processo que tem pelo menos três séculos, incluído o grande encrave nos anos 30: o impulso “construtivo” da disciplina faz com que ela se apóie, na falta da própria, em qualquer nesga de ideologia para viabilizar-se.
Nesse processo o Brasil é um contraponto. A fluência com a qual a arquitetura moderna se instalou e floresceu entre nós não é apenas mais um capítulo “regional” da história da arquitetura internacional. A vinda de Le Corbusier ao Brasil não foi apenas mais uma parada na peregrinação apostólica do mestre suíço. Primeiro em 1929, depois em 1936, suas visitas representaram a mudança de eixo de sua retórica (e uma guinada ideológica). Com a crise do capitalismo no início dos anos 30, o interlocutor prioritário de Le Corbusier, o grande industrial, não se mostrava à altura de sua tarefa (evitar a revolução social). A entropia só poderia ser revertida pela ação de um poder acima dos interesses imediatos dos capitalistas. Dos Estados Unidos (New Deal), passando pela Europa (nazi-fascismo), chegando à URSS (planos qüinqüenais), em cena o Estado. Seguindo ainda uma vez Tafuri: a partir de 1930, a “Ideologia do Plano” se transforma em “Realidade do Plano”, ou seja, a planificação da economia e da sociedade capitalista passa a ser feita diretamente pela esfera econômica através do Estado, prescindindo das mediações ideológicas.
No Brasil a revolução de 30 colocava na agenda uma modernização autoritária e centralizadora, que, apesar de sua proximidade, se diferenciava, pela especificidade da conjuntura mesma, do processo europeu. “Tábula-rasa” histórica e social, o Brasil aliava a vontade empreendedora da nova organização política com a busca de uma nova identidade nacional que o distinguisse dos outros países. Sem uma história clássica – que fez reviver na Europa um estilo fascista classicisante nostálgico dos grandes impérios – éramos a própria matéria bruta da modernidade, já bem diagnosticada e trabalhada por uma vanguarda local na década anterior. “Universal”, a arquitetura moderna se mostrou uma saída para a modernização do caso brasileiro, em particular.
Então, como ideologia operante o projeto moderno se realizaria na periferia, onde, livre de todo contexto, inclusive do impulso socializante que caracterizara seu primeiro capítulo, pôde se desenvolver cada vez mais desinibidamente de sua “função social”. Talvez isso explique nossa originalidade, que muitos hoje defendem como Regionalismo. Fruto do “atraso” – o apontado descompasso entre a forma artística da metrópole industrial e a realidade econômica brasileira dos anos 30 – a nossa desenvoltura formal nada mais é que a necessária particularização daquela universalidade. Sempre que se realizou, a arquitetura moderna adquiriu traços “locais”, que põem em cheque o formalismo dessa “universalidade”, ou como diz Otília, em se realizando foi se transformando em seu contrário, ou em sua verdade.
O caso brasileiro é exemplar para compreender as aporias do projeto moderno em dois aspectos. Primeiro, como constatação da flexibilização dos princípios modernos, necessária para por em marcha uma transformação modernizadora. Segundo, como verificação daquilo que é um dos principais argumentos do texto e que associa promessa e realização (ponto de divergência desenvolvido no debate com Roberto Schwarz: “Arquitetura Nova Antigamente: O que fazer?”). Pois por aqui de fato, mais que em qualquer outro lugar, a arquitetura moderna se realizou, quer seja com a construção de um sem número de edifícios isolados, com intervenções cirúrgicas nas cidades, ou com sua realização máxima: a construção de uma cidade inteira, a partir das regras definidas na Carta de Atenas. Se, como defende a autora, promessa e realização não podem ser dissociadas quando se trata de crítica de arquitetura, temos entre nós o material para a verificação final (o mais “moderno” e o mais injusto).
O percurso da arquitetura moderna vai conhecer, em países como o Brasil, o seu último capítulo, por exatamente colocar em perspectiva histórica, ao se construir, parte de suas promessas iniciais. Basta acompanharmos a mudança de discurso do mestre Niemeyer nos anos 50, que, após apontar os impasses de uma arquitetura moderna em um país subdesenvolvido, e por isso socialmente injusto, passa a eleger a “liberdade plástica” como objetivo acima de qualquer realidade social ou política. Nem o orador mais entusiasta poderia continuar justapondo “beleza” e “justiça”, ao defender a nossa arquitetura dos anos 50. E se, como quer Roberto Schwarz, recorrendo a Adorno, a ideologia mente não pela sua aspiração, mas “pela afirmativa de que esta tenha se realizado”, poderíamos acrescentar: que se tenha realizado plenamente, em todas as possibilidades inseridas nas ambigüidades – contraditórias – do pensamento burguês, que no início amalgamava racionalidade e liberdade. Mas sua realidade concreta está não na declaração de sua realização (nunca feita, já que nunca foi alcançada, devido às sobrecargas que apareceram no meio do caminho, segundo Habermas), mas na forma em que historicamente se desenvolveu. E esta só pôde se constituir à medida em que ia respondendo cada vez mais diretamente às necessidades funcionais do desenvolvimento capitalista, e deixando para trás as promessas de emancipação social. Estados Unidos (Mies van der Rohe) e Brasil (Le Corbusier), por motivos diametralmente diferentes, amplificaram o formalismo contido no funcionalismo das primeiras experiências, única maneira possível de sua concretização (a “maquina de morar” não era uma máquina qualquer...).
Os temas discutidos acima não são de forma nenhuma um roteiro do livro, nem pretendem ser a “crítica explicada aos arquitetos”, já que o texto tem as qualidades da clareza e concisão. São idéias que, dentre outras, podem ser recolhidas na leitura – neste caso bastante arquitetônica. Aqueles arquitetos, sociólogos, filósofos, etc., que se aventurarem poderão garimpar outras relações, porque está em foco a crise contemporânea, que é multifacetada. Isso não significa que esta não tenha unidade, pelo contrário. Se os temas se entrecruzam nos diversos ensaios, é exatamente para reforçar essa unidade. Os diversos pontos de partida se encaminham para uma direção que magnetiza todos os esforços: uma espécie de “determinismo cultural” (imagem, informação, fluxos, etc.) na nova ordem mundial. Não que tenhamos superado suas determinações econômicas, mas estas estão cada vez mais unificando o “econômico” e o “cultural” (que toma o lugar da Cultura). Outros autores, que estão presentes no texto, também analisam essa mudança do capitalismo (Jameson, Harvey, etc.). O que distingue a análise de Otília Arantes é que, a partir do exame da arquitetura e do pensamento sobre as cidades contemporâneas, logra um conjunto coeso de multirelações daquilo que até agora era entendido em separado. Isso dá ao urbanismo e à arquitetura de hoje (a partir de seu ciclo burguês) uma unidade construída, e não pré-determinada, com poder de explicar o que foi feito até agora, para além das aproximações tateantes de algumas análises pontuais. Ao contrário de tornar desnecessários os exames específicos, essa dimensão “totalizadora” da análise impele ao fato, retorno exigido pela dialética entre fenômeno e conceito, como certa vez contra-argumentou Antônio Cândido. A entrevista no apêndice do livro (“Minimalismo ou Anacronismo?”) pode muito bem exemplificar esse retorno ampliado, que a autora produz ao se deter, por provocação, em um caso específico (a obra recente de Paulo Mendes da Rocha, definida como “Minimalista” por Montaner). Uma espécie de “Dezoito Brumário”, no qual se desdobram relações de toda ordem, a partir das aparentes reduções conceituais das análises centrais do livro quase manifesto. Esse estrato mais profundo que permite aproximar idéias, movimentos e oposições aparentes, em que os nexos se esclarecem. Seus textos anteriores apontavam para uma lógica que só agora pôde ficar clara. Como num quebra-cabeças em que uma peça, apesar de familiar, não se encaixa perfeitamente. Encontrado seu lugar, uma nova área se ilumina para a resolução de novos problemas.
notas
1
Arantes, Otília. Arquitetura depois dos Modernos. São Paulo: Edusp, 1993.
NE - este ensaio foi publicado originalmente na revista Praga, São Paulo, nº8, Hucitec, p. 143-150 e depois republicado como “posfácio” da segunda edição do livro de Otília Arantes, O lugar da arquitetura depois dos modernos, Edusp, 2001. Republicação em Vitruvius autorizada pelo autor.
sobre o autor
Luiz Recamán é arquiteto, professor e doutorando na FFLCH-USP com uma pesquisa sobre a arquitetura moderna brasileira