Bons tempos aqueles em que um governante – em qualquer esfera de poder – podia se dar ao luxo de prometer que o seu governo avançaria “50 anos em 5”. Mais instigante ainda é pensar que o leitmotiv deste slogan, ou Plano de Metas, era a construção de uma grande cidade, fruto da obsessão e do voluntarismo de um Presidente da República, destinada a ser a nova capital do Brasil, aproximadamente 200 anos depois de o Rio de Janeiro suceder Salvador, em 1763.
Esta não teria sido, porém, a primeira tentativa de se transferir a capital do país. Há registros históricos que narram a tentativa de “descapitalizar” o Rio de Janeiro ainda no século XVIII, com o grupo de intelectuais de Vila Rica – protagonistas da Conjuração Mineira - sintonizados com o Iluminismo. No século XIX, quando já exaurido o ciclo da mineração, a idéia de transferir a capital para o interior do país ganhou um novo impulso logo após a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil em 1808. Ainda em 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Tutor de D. Pedro II até a sua maioridade e também conhecido como “O Patriarca da Independência”, afirmava em discurso: “Parece muito útil, até necessário, que se edifique uma nova capital do Império no interior do Brasil para assento da Corte (...) Essa Capital poderá chamar-se (...) Brasília.”
Se nem mesmo o nome da capital é criação própria, qual é, então, o mérito histórico deste brasileiro ambicioso e voluntarista que, no auge da Guerra Fria entre EUA e União Soviética, propunha o slogan “50 anos em 5” e como parte deste Programa de Metas a construção da nova capital brasileira? A diferença é que este governante era o Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira - o homem que, em 5 anos, fez Brasília. Independente do juízo que se faça da cidade, do Presidente e das suas idéias ambiciosas, JK só não pode ser acusado de não ter cumprido o que prometeu no início de seu governo em 1956. Em apenas 42 meses – “do cerrado bravo à inauguração” – JK fez Brasília em pleno Planalto Central do Brasil.
É, portanto, a história de um homem (JK) e de uma cidade (Brasília) o tema principal do excelente livro “Brasília Kubitschek de Oliveira” de autoria do Professor Ronaldo Costa Couto. Autor do livro “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura: 1964 – 1985” e homem talhado não apenas pela vida acadêmica (é Doutor em História pela Universidade de Paris IV - Sorbonne), mas também pela vida política (foi Ministro do Interior e do Trabalho no governo Sarney e Governador de Brasília), Couto nos revela, de maneira magistral, belas histórias de Brasília, de seu criador e de tantos outros heróis e aventureiros que fizeram com que um sonho arcaico, e de certa forma utópico, se transformasse em realidade.
Como bom mineiro – tal e qual JK –, Couto relata histórias primorosas contadas de maneira simples e bem humorada, com um tom memorialista e poético que alterna episódios de cunho social, econômico e, sobretudo, geopolítico do tempo em que imperava na sociedade brasileira uma democracia calcada em um projeto com um ideal de futuro, de progresso e prosperidade. Diante dos tempos atuais de incertezas e descrenças globalizadas, a leitura do livro nos faz reviver e ir em busca, quem sabe, de uma utopia perdida naqueles anos JK; tempo da Bossa Nova, da vitória do nosso futebol na Copa do Mundo da Suécia enfim, os Anos Dourados.
Nas suas descrições a respeito da arriscada aventura da construção de Brasília, Couto concede espaço e voz não apenas para as celebridades – Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Darcy Ribeiro, Israel Pinheiro, Burle Marx, Rodrigo Melo Franco de Andrade e muitos outros – que direta ou indiretamente estavam envolvidas na empreitada, mas também para aqueles brasileiros anônimos oriundos de diversos cantos do país que, por força da própria vontade ou do destino, também contribuíram significativamente para a materialização da Novacap.
Também de forma competente o autor traça um breve panorama a respeito das questões estéticas, urbanas e arquitetônicas que nortearam os trabalhos da dupla Costa e Niemeyer. Nas seções “Lúcido Lúcio” e “O Poeta da Arquitetura”, Couto deixa falar os idealizadores de seu plano urbanístico e de suas arquiteturas respectivamente. Na parte que cabe a Lúcio Costa, este é comparado ao próprio JK pela sua sutileza e elegância e pela impressionante capacidade de atrair e agregar, em torno de si, talentos de diversos saberes. Foi esta capacidade de Costa, nos conta o autor, que em momentos distintos incorporou as contribuições de Oscar Niemeyer e de Roberto Burle Marx.
Com efeito, o fio condutor do livro traz à memória o ensinamento do grande Historiador das Cidades Leonardo Benevolo: “As cidades não existem por uma necessidade natural, mas por uma necessidade histórica que teve um início e, qualquer dia, poderá ter um fim”. Assim, as cidades tal e qual seus criadores têm seus momentos de nascimento, crescimento, saturação, colapso e até de morte. Neste sentido, o autor, de maneira sutil, evidencia o ciclo vital de JK – que antes de ser um político bem sucedido foi um médico urologista de grande prestígio em Minas Gerais – enfatizando os seus graves problemas de saúde no final da vida. Diabetes, problemas circulatórios, gota, dores na coluna, depressão e lesão maligna na próstata tolheram de maneira irreversível a sua qualidade de vida. Curiosamente, foi no dia 22 de agosto de 1976 que o homem que trouxe a indústria automobilística para o país, morreu em um acidente no quilômetro 165 da Via Dutra, a bordo de um Chevrolet Opala.
Com quase 300 notas de rodapé, uma listagem bibliográfica importante e com dezenas de depoimentos e entrevistas de pessoas ligadas à construção da cidade, o livro tem, talvez, um único pecado que provavelmente é fruto da dupla experiência do autor tanto no meio acadêmico quanto político. Não se propõe aqui nenhuma metodologia acadêmica, mas talvez falte ao livro um posicionamento e/ou julgamento mais contundente e claro do autor a respeito da cidade, das suas premissas urbanísticas, e de seus protagonistas, JK inclusive. A sensação que se tem é que o lado político talvez tenha falado mais alto em detrimento de uma crítica e de uma análise histórica e urbana mais pessoal, haja visto a inegável capacidade que teria o autor em fazê-la.
A despeito deste senão, a Coleção Metrópoles, da qual faz parte o livro em questão, é uma iniciativa que merece aplausos pela sua originalidade e pela competência de seus autores. Dela fazem parte outros dois excelentes livros anteriormente publicados que são “O Rio de todos os Brasis” do Professor Carlos Lessa, sobre o Rio de Janeiro, e “Porto de histórias” de Moacyr Scliar sobre Porto Alegre. Outros sobre Recife, Belo Horizonte, Salvador e demais cidades ainda virão. É, sem dúvida, uma importante contribuição para a reflexão e para o debate interdisciplinar sobre o desenvolvimento urbano do Brasil.
sobre o autor
Antônio Agenor de Melo Barbosa é arquiteto, mestre em urbanismo pelo PROURB / FAU UFRJ, professor da FAU UFRJ e da Universidade Santa Úrsula