Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista de Luiz Amorim inaugura um doloroso gênero no nosso campo do conhecimento: o desafio de documentar a morte da arquitetura. Mas morte não é algo fácil de lidar, apesar de ser a única certeza que temos na vida. Morreremos, todos, de morte morrida ou morte matada. Em comum existe o pranto. Choramos copiosamente a falta que já nos faz o ente querido cujo corpo repousa, frio e duro a nossa frente, assim como choramos a nossa própria morte que sabemos inevitável. E o texto de Amorim chora cada uma destas mortes. Acontece que em meio ao pranto temos sempre a ilusão de que a memória permanecerá, como descendentes a continuar nossa sempre curta existência. Livros, desenhos e principalmente edifícios hão de permanecer como que guardando nossa presença na eternidade. Doce ilusão. Livros se rasgam, se perdem, se queimam, viram comida de traça e apoio de mesas mancas. Desenhos então nem se fala, pobres papeis enrolados como pergaminho, não duram mais que poucas gerações sem o cuidado e o investimento custoso em conservação. Digitalizados então resistem menos ainda, feitos ilegíveis pela atualização constante dos softwares ou bombardeados pelos diversos campos magnéticos que nos rodeiam normalmente.
Restaria a arquitetura, esta materialidade que vai nos moldando aos poucos pela sua presença calada e maciça, e cuja durabilidade espera-se que nos sobreviva. Mas nem as maiores e mais pesadas arquiteturas sobrevivem ao abandono ou à demolição. Se existe uma lição primeira no pequeno (15 x 15 cm) mas intenso livro de Amorim, é a idéia clara de que a arquitetura morre. Luiz Amorim registrou em detalhes 22 destas mortes, contando suas estórias, documentando em desenhos seus corpos agora inexistentes e mostrando ainda os corpos que os substituíram.
Vita Brevis, ars quoque brevis
E são tantas as mortes, morridas e matadas. Temos a morte prematura que espalha esqueletos estruturais nunca dantes ocupados pelas nossas cidades. A morte de nascença em que o processo de arruinamento é por algum motivo acelerado e o objeto arquitetônico deixa de existir pouco tempo depois de habitado. A triste morte por vaidade, tão contemporânea do silicone e do botox, em que o uso indiscriminado de intervenções superficiais ou nem tanto acaba por assassinar a essência espacial da edificação que morre pensando estar se tornando mais bela. A morte por parasitas, esta tão comum que quase passa desapercebida, tantas são os acréscimos exógenos e endógenos de que nos fala Amorin. As cruéis mortes por abandono em que a obsolescência não programada de edifícios como salas de cinema se desmontam a olhos vistos antes de serem parcialmente revividos na forma de templos ou até estacionamentos. E por fim a morte anunciada, resultado da obsolescência programada da dinâmica imobiliária que vive de decretar valores artificialmente inchados ou maldosamente esvaziados e em ambas as modalidades retirar dali o que existe de vida arquitetônica a ser substituído num ciclo sem fim e não menos perverso que a própria morte.
Nesse caso cabe perguntar o que fazer com os corpos cuja lenta decomposição infesta o nosso olhar. A presença de tantos corpos arquitetônicos espalhados pela cidade me lembra o ritual do Quarup, no qual o corpo é enterrado em cova rasa, coberto com pouco mais de um palmo de terra de forma que o cheiro da decomposição seja sentido por todos na aldeia durante semanas. Enquanto durar a fedentina a tribo inteira chora a perda de seu ilustre membro. Acabada a carne, acaba o cheiro e acaba o luto.
Seria este o mais nobre destino da arquitetura? Resistir às intempéries e se fazer ruína mesmo quando ainda construção como canta Caetano Veloso? Ou ser reciclada mais rapidamente para voltar à vida na forma de matéria prima?
O livro de Luiz Amorim inaugura uma pergunta importante para todos nós. Como é que a cultura arquitetônica deveria lidar com a morte de seus objetos, os espaços construídos? A tomar por este inovador obituário, temos lidado muito mal com nossas mortes, apesar de a história da arquitetura estar repleta de corpos sem vida.
Acontece que diferentemente da morte humana, a morte arquitetônica pode ser reversível, edifícios podem ser restaurados ou reconstruídos e assim voltar da morte para o reino dos vivos. Que o diga o Pavilhão de Barcelona de Mies, ressuscitado 50 anos após sua morte programada. Ou seria o atual edifício remontado por Bohigas e Solá-Morales apenas um clone sem alma?
De qualquer forma, Obituário Arquitetônico: Pernambuco Modernista cumpre o nobre e sempre doloroso dever de registrar a altíssima taxa de natalidade que aflige nosso patrimônio moderno. Passado o luto, a batalha da vida continua e se um edifício apenas for salvo da morte ou restaurado de volta a vida em decorrência do esforço de Luiz Amorim, terá valido a pena o pranto.
sobre o autorFernando Lara, arquiteto, doutor em arquitetura, docente da University of Michigan, EUA.