O povo das Montanhas Negras, romance no qual o tempo se conta em séculos e milênios, é dividido em dois volumes: People of the Black Mountains: the beginning e People of the Black Mountain: the eggs of the eagle. Somente o primeiro volume foi traduzido e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 1991. O primeiro plano narrativo do livro conta a história de Glyn em busca de seu avô Elis, que não retornou de uma caminhada através das Montanhas Negras. Quando Glyn sai em busca do avô, numa noite de lua cheia, começa a ouvir vozes do passado. Essas vozes evocam a saga dos antigos habitantes daquelas montanhas cujos vestígios ainda estão presentes: cacos de cerâmica, pontas de flechas, utensílios, antigas habitações, estátuas, círculos de pedras. “Vestígios sólidos da memória!”, mas estes não são apenas vestígios soltos, fragmentos desconexos e, sim, acumulados num determinado lugar: as Montanhas Negras. Estas montanhas são tão presentes e enfáticas durante todo o romance, que funcionam como um bordão musical sustentando a narrativa. Dessa forma este bordão não permite que uma história comum seja suprimida por memórias individuais ou fragmentadas. As memórias individuais, as recordações dos personagens estão presentes em cada conto, mas invariavelmente têm como fundo o lugar.
Deste modo, abrangendo um tempo cronológico que abrange cerca de 25 mil anos, Raymond Williams constrói a história de caçadores, pastores, guerreiros e sacerdotes, entre outros, e as narrativas vão se acumulando como camadas de um sítio arqueológico tomando a forma dos mitos e das lendas. Do início ao fim o livro chama nossa atenção para a importância do lugar na vida dos personagens. A idéia do lugar, o sentimento de pertencer a um lugar é o fio condutor da narrativa. É pelo bem do lugar que um povo vive, resiste, e afirma sua identidade. É o lugar que une todas as narrativas, todos os contos e que motivou o título desta resenha.
Um lugar ocupado não apenas por reis, rainhas, príncipes e princesas, mas por pessoas simples vivendo em comunidade. Caçadores, pastores, artesãos, escravos, senhores e guerreiros tendo sua existência formada pelo lugar. Pessoas comuns, vozes esquecidas ou apagadas da história e, neste aspecto, a semelhança entre a visão de história do romance e a do já citado historiador Carlo Ginzburg são evidentes. Ginzburg, assim como Edward Thompson e vários outros, consolidou, desde a década de 1960, um novo campo de pesquisa denominado “a história vista de baixo”.
Mas a opção pelo resgate da voz dos “de baixo” mais do que uma escolha formal é uma opção política e Williams sempre fez questão de deixar claro quais eram seus posicionamentos políticos. Todos os romances de Raymond Williams têm um fundo histórico e de Border Country (1960) a O povo das Montanhas Negras (1991) o autor recria a topografia e as relações sociais da sua terra natal. As lutas, indagações e a resistência da classe operária. As transformações históricas causadas pela industrialização de Gales, a politização de uma região ao mesmo tempo agrícola e industrial, estão presentes na ficção de Williams. Em O Povo das Montanhas Negras, as lutas entre as classes, os choques culturais, a resistência de um povo às inúmeras invasões e, principalmente, as relações deste povo com o lugar são temas sempre presentes que proporcionam leituras instigantes.
O projeto inicial do romance previa a edição de três volumes, mas o trabalho foi repentinamente interrompido pela morte do autor, em 1988. O primeiro e o segundo volume foram publicados postumamente em 1989 e em 1990. No posfácio do segundo volume, Joy Williams, viúva do autor, com base nos manuscritos originais, descreve o que seria o terceiro volume, que teria como início as Guerras das Duas Rosas e a Revolta de Rebecca, seguiria para os efeitos dos Atos da União da Inglaterra e País de Gales, após a vitória da Casa Tudor, e seguiria em direção ao fim do século XVI, com o crescimento das seitas protestantes em um País de Gales principalmente católico. Por fim, se estenderia do século XVI até o século XX, e a última história enfocaria a infância de Elis, sua juventude nas montanhas e seu recrutamento para o Real Corpo de Sinalizadores.
Mesmo incompleto, O povo das Montanhas Negras é uma obra extremamente audaciosa, ainda inexplorada pela crítica, cuja extensão e detalhadas reconstruções imaginárias do passado galês indicam a realização de uma pesquisa profunda nas áreas da antropologia, arqueologia, etimologia, história econômica, história militar, bem como em temas da cultura e identidade de Gales. Dos dois volumes efetivamente publicados na Inglaterra, em 1989 e 1990, somente o primeiro foi traduzido e publicado no Brasil, em 1991. O primeiro volume inicia-se por volta de 23 mil a.C., com Marod e seu grupo de caçadores, vivendo em cavernas e tendo que lutar diariamente por sua sobrevivência, e encerra-se em 51 d.C., com a batalha de Claerion, na qual os bretões derrotam os romanos e afastam por mais um tempo o perigo da invasão. O segundo volume inicia-se com a história de Berin, que retorna como escravo romano fugido à casa do pai, em 82 d.C. e termina com o conto Oldcastle em Olchon, cerca de 1415 d.C.
O povo das Montanhas Negras é um livro que narra a história milenar de um povo e sua resistência contra inúmeros invasores. Há em toda a obra uma crítica à outremização, isto é, o processo pelo qual o discurso imperial fabrica o “outro”, o qual começa a existir pelo poder do discurso colonial.
A obra de Williams em geral e esta em particular, questionam a visão homogênea da história britânica e propõe refletirmos sobre a história do País de Gales como uma ex-colônia inglesa, cuja identidade e cultura se formou num processo de resistência contínua à ocupação e dominação inglesas, O Povo das Montanhas Negras é uma obra literária escrita por um autor cujo país de origem sofreu processos de dominação seculares e que tem como protagonista o excluído, o “povo”.
Assim, do mesmo modo que a Irlanda pertence ao grupo de países que serviram “a grande causa civilizatória do império britânico”, por que não o País de Gales? Há pelo menos três décadas, os fenômenos da etnicidade e nacionalismo têm sido objeto de preocupação e questionamento tanto dos estudos culturais como dos pós-coloniais e os escritos de Williams sobre o País de Gales e a escrita de O povo das Montanhas Negras foram norteadas pelos mesmos questionamentos.
Se em termos cronológicos O povo das Montanhas Negras não compreende a modernidade (apesar de que o projeto inicial previa que a obra deveria se estender até o século XX) ele dá voz às minorias étnicas (principalmente ao chamado “povo das pedras”), que desde a invasão celta vivem um processo contínuo de resistência. Mulheres, crianças, escravos e escravas são personagens que se contrapõem ao invasor numa dinâmica que dá forma aos ritmos nativos da fronteira.
Mas não se trata de um contraste binário entre colonizador e colonizado. No complexo processo de choques culturais não há lugar para o caloroso espírito comunitário galês versus o individualismo saxão. Entre a visão da cultura celta mais espiritualizada e a religião cristã do invasor. Enfim, não há lugar para um contraste simples entre opressor e oprimido. Na obra de Williams a questão das classes sociais é permeada pela questão cultural. A ficção deve muito à História de uma região marcada por fronteiras e limites muito tênues. No final do século VI, por exemplo, os Saxões da Bretanha do leste invadiam as terras a oeste. Como conseqüência de vários séculos de invasões e deslocamentos a composição étnica de Gales era diversificada, diferente do resto da Bretanha e sua coesão só era mantida pela resistência ao invasor. Os galeses começaram a se autodenominar Cymry que numa tradução livre significa “companheiros da terra”, enquanto os saxões os chamavam de um termo que significava "estrangeiro" ou "povo romanizado". Deste modo, O Povo das Montanhas Negras levanta questões complexas como as de relações entre classes, nacionalidade e identidade e não procura resolvê-las por contrastes binários. Um dos contos do segundo volume, A forja de Elchon ilustra bem este fato. O personagem Idwal, filho de pai galês e mãe saxã, é um ferreiro cuja forja está no meio de um campo de batalha. Enquanto reis e guerreiros estabelecem uma política baseada em classe ou nação, que invariavelmente será finalizada em um terreno definido por um dos antagonistas, Idwal e os demais moradores da região devem encontrar alternativas de sobrevivência numa difícil e tensa negociação com os exércitos em armas. Idwal é galês ou saxão dependendo das circunstâncias, mas não se ilude com nenhuma destas formas de identidade. Afinal quais os limites entre o nacionalismo emancipatório, pelo qual tantas guerras são justificadas, e a opressão? No final do conto, após esconderem-se durante dias na floresta para fugir das atrocidades comumente cometidas por qualquer dos lados em luta, Idwal e seus vizinhos retornam a suas casas para reiniciar suas vidas, quando recebem a visita de um novo senhor. A terra saxã “foi libertada”, esta é a mensagem do senhor e, por isso, o povoado deve retomar o pagamento dos tributos e jurar fidelidade. Até quando?
A leitura de O Povo das Montanhas Negras nos leva a indagar: qual é a diferença entre Gales, Irlanda, Escócia, Inglaterra e os países do sudeste da Ásia ou da África quando a luta é pela emancipação do ser humano? Por posicionar a experiência galesa dentro do contexto de resistência e das lutas pela emancipação humana, O Povo das Montanhas Negras oferece uma narrativa alternativa aos termos binários nos quais a história galesa foi escrita. Se uma determinada tradição da crítica pós-colonial alertou para o perigo de se homogeneizar o Oriente, e a obra de Said é um dos exemplos, o romance de Williams alerta para a armadilha de se homogeneizar o Ocidente. Descrever os movimentos de resistência em lugares tão diversos quanto a Argélia, Caribe, África do Sul e Indonésia é extremamente importante. Posicionar o País de Gales e sua luta como parte da resistência das minorias nacionais e étnicas na Europa oferece a oportunidade de romper com a distinção binária do Oriente versus Ocidente que Said critica em suas discussões de literatura e cultura.
Na ótica do último romance de Williams, contrastes binários do tipo colonizador versus colonizado, invasor versus invadido, dominador versus dominado, não dão conta da complexidade das relações secularmente estabelecidas. O romance afirma que a cultura do povo que vive nas Montanhas Negras foi construída no decorrer de vários séculos de dominação política e agressão à sua cultura, mas também destaca o contexto de negociação, hibridismo e multiculturalismo presentes nestes choques culturais.
O Povo das Montanhas Negras pode ser lido como contranarrativa, isto é, um texto de resistência escrito a partir de uma minoria étnica subordinada ao poder imperial britânico. Raymond Williams reconstruiu ficcionalmente a História do País de Gales dando voz aos vencidos, aos protagonistas anônimos que no seu cotidiano nos apresentam outra visão da história e da geografia britânicas. O texto desenha uma determinada geografia imaginativa cujo foco de atenção é a região das Montanhas Negras, mas não as montanhas como somente um obstáculo ao avanço dos invasores e sim como um lugar de permanência que confere identidade cultural a um povo.
sobre o autorHugo Moura Tavares, graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (1991). Especialista em Gestão da Informação pela UniFae (1999) e Mestre em Estudos Literários pela UFPR (2007). Já lecionou no ensino fundamental, médio e superior na Universidade Tuiuti e no Centro Universitário Campos de Andrade. Atuou entre 1995 e 2006, como historiador da Fundação Cultural de Curitiba e, desde 2007, é historiador do Arquivo Público do Município de Curitiba. Tem experiência na área de História, Estudos Literários e Gestão Arquivística de Documentos