O corpo-andante
As idéias transportadas pelo livro Walkscapes: el andar como practica estetica de Francesco Careri (1), ainda nos chegam através de uma publicação sem tradução para o português, sendo possível alcançar apenas uma edição bilíngüe (espanhol e inglês). É justamente sobre este volume que efetivamos um percurso exploratório, um procedimento que já vem apontado pelo autor como sendo uma metodologia experimental de investigação dos territórios urbanos. Somados, estes movimentos articulados acontecem a favor da busca pelas veredas urbanas; almejam dar visibilidades a lugares que se constroem em ações performativas valorizando a escala do corpo na cidade.
Em Walkscapes, o objeto estaria na reflexão sobre o espaço liso, uma dimensão nômade do meio geográfico, prenhe de vazio: a capacidade que o corpo tem de situar espaços nômades e geografias sem ordenações rígidas através do caminhar introduz o assunto tratado (2). O percurso (el errabundeo) é considerado um ato simbólico para a transformação da paisagem. O título do estudo já nos antecipa uma abordagem inventiva e criativa que interpretamos a partir do olhar que escapa da arquitetura formal e sedimentária, dirigindo-se para a criação de metodologias e ferramentas para pesquisas urbanas.
Transformando em texto a vasta experiência de vagar pela cidade, Careri começa seu livro com uma tabela que agrupa, na primeira coluna, uma lista de verbos, na segunda coluna, uma lista de substantivos e, na terceira, outros verbos mais específicos como – por exemplo – “sumergirse”, “adentrar-se” e “ir hacia adelante”. Segundo o autor, esta lista “inclui uma série de ações que só recentemente começaram a fazer parte da história da arte, e que poderiam converter-se em um útil instrumento estético com o qual explorar e transformar os espaços nômades da cidade contemporânea” (p. 19).
Este mapa verbal que surge logo nas primeiras páginas alerta o leitor para a instigante capacidade de qualificação do espaço que nos motiva à multiplicação da linguagem. Essa qualificação vai – como poderemos conferir mais adiante – desembocar no exame de criações artísticas fortemente caracterizadas por teores geográficos.
Anteriormente, o ato de caminhar é trazido ao leitor desde suas raízes mais arqueológicas quando o homem demarcava com rochas alinhadas os caminhos e os cruzamentos dos caminhos percorridos. Estes rastros são conhecidos – como nos aponta Careri – por Menhirs: rochas intencionalmente posicionadas, pontos de orientação para os primeiros deslocamentos humanos. Nossos antepassados mais longínquos ao percorrerem a superfície terrestre deixavam seus rastros.
Anti-walk, land-walk e transurbâncias
Walkspcapes está repleto de imagens e de citações suplementares que formam um tipo de glossário que auxilia e sensibiliza o leitor. O livro está organizado em uma introdução, três capítulos e conclusão. Nestes três capítulos, o autor traçou um panorama da ação de caminhar, afastando-se de seu caráter ordinário para aproximar-se dos procedimentos artísticos das vanguardas européias. O fascínio pelo corpo-andante passa por Marcel Duchamp e sua pintura “Nu descendo a escada” (1913) e chega até as deambulações dadaístas e teorias da deriva situacionista que marcaram o caminhar como uma manifestação da anti-arte. Cabe notar nesta parte, a abundância de metáforas corpóreas na investigação que estas vanguardas fizeram no/do urbano: a cidade era percebida como um “líquido amniótico”, um labirinto inconsciente e ébrio, qual a imagem de um corpo adormecido.
No capítulo subseqüente, que se dedica ao papel do caminhar na land-art norte-americana (principalmente na trajetória de Richard Long (3), Walter de Maria, Bruce Nauman e Tony Smith), acompanhamos um notável avanço epistemológico na confluência entre arte-arquitetura. Neste ponto, em meio à discussão sobre obras definidas enquanto práticas espaciais (4), Careri insere o diagrama das expansões de campo desenvolvido pela historiadora de arte norte-americana Rosalind Krauss (5). Este diagrama vem justamente marcar a interface entre processo artístico e paisagem urbana que ocorreu a partir da década de 1960. Na conclusão do livro, este diagrama ou gráfico é revisitado no sentido de fundamentar a perspectiva do percurso, do trajeto e do caminhar como campos autônomos no universo da arte contemporânea. O conceito de transurbância atualiza uma expansão de campo, sendo então sugerido como estratégia investigativa, como prática artística, conceitual e, de certa maneira, posicionamento ecológico e político.
A transurbância, ao atravessar territórios urbanos, poderia ser traduzida também como um modo de produzir conhecimento sobre as cidades através de cartografias afetivas e mapeamentos cognoscitivos.
Topografias e topologias
Considerando as dificuldades de acesso à obra, Walkscapes vem se difundindo em meio aos estudos urbanos brasileiros, especialmente onde existam linhas de pesquisa focadas nas relações entre artes e arquitetura. Por subsidiar modos de experimentar artisticamente as cidades, engajando corporalidade e devir (aquilo que está por vir, além do horizonte enxergado), o livro também vem sendo utilizado por coreógrafos, performers e artistas que trabalham com arte urbana (6).
Lendo Walkscapes daqui do Brasil não iríamos deixar de remeter à proposição Caminhando feita por Lygia Clark em 1964: onde a importância do ato é valorizada, topologicamente a proposta de Lygia dialoga com a de Francesco Careri: uma fita de Moebius disposta para que seja cortada por uma tesoura manuseada pelo público, compõe – em microescala – uma metáfora muito precisa do ato de deslocar-se, deslocalizar-se. Cruzando essas referências conseguimos uma compreensão mais profunda das contribuições que, localmente, estão aí no para os errantes que fruem nas cidades brasileiras.
Poderíamos ainda perceber que o caminhar – a potência movida no corpo-andante – se mistura, neste livro, entre dois campos: ética e estética. Certamente, o interesse maior de Careri é estético, pois seu texto é bastante rico em diálogos com a história da arte contemporânea para nos assegurarmos disto. No entanto, a direção de sua análise incondicionalmente leva-nos a compreender que a formação de núcleos urbanos sobre a superfície terrestre é co-dependente dos deslocamentos de seus habitantes. A configuração das cidades seria outra caso usássemos nosso corpo-andante de outro jeito. Flanar, vagar, derivar, errar. Motores para pensarmos além da arquitetura sedimentada, desviando-nos para perseguir a possibilidade de uma cidade performativa.
Finalmente, diríamos que este livro que resenhamos vincula-se a um debate que mais nos mobiliza: a corporalidade urbana: uma instância que desfaz a idéia de corpo como categoria genérica e impõe a necessária apreensão das especificidades locais. Neste contexto, nos questionamos se o corpo nômade possuiria uma corporalidade específica? Como trabalhar com a idéia de corpo-andante como um interstício da coreografia com o urbanismo? Como desconstruir a natureza do caminhar? Hoje, quando vemos multidões andando em círculos ou em linha reta praticando o mecânico cooper do fim do dia, percebemos quanto de potência existe no caminhar e quanto dela está sendo desperdiçada. Entretanto, existem as linhas de fuga e Walkscapes é material precioso para aqueles que não se adaptam em andar sempre pelas mesmas calçadas.
notas
1
O autor, Francesco Careri (1966), é professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma e membro-fundador do laboratório Stalker/Osservatorio Nomade (www.stalkerlab.org), publicou também Constant. New Babylon, una città nomade (Texto e Inmagine, 2001).
2
Uma delas seria a distinção entre espaço liso e espaço estriado que é desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari no conjunto dos Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Ed. 34).
3
A imagem que ilustra essa resenha refere-se a uma das diferentes proposições que Long realizou a partir dos rastros de seus trajetos sobre o chão.
4
Sobre a função das práticas espaciais no cotidiano urbano, vale conferir SANTOS, Milton. A Natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
5
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
6
Walkscapes constituiu referência para a performance intitulada “Paisagem de Barranco” (2006), que criei paralelamente às minhas pesquisas acadêmicas e foi apresentada – entre outras ocasiões – no Festival Internacional de Dança em Paisagens Urbanas em São Paulo. Também já encontrei com este livro nas mãos da coreógrafa carioca Claudia Muller e da pesquisadora de dança Maíra Spanghero.
sobre o autor
Thiago Costa, geógrafo e performer. Atualmente vive em Salvador/BA onde cursa o mestrado de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, integrando a linha de pesquisa “Processos Urbanos Contemporâneos”. Foi bolsista da Casa Hoffman – Centro de Estudos do Movimento (Curitiba) e do Fórum Internacional de Dança (Belo Horizonte); é membro do Instituto de Permacultura da Bahia