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TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. A cidade real versus a cidade imaginária: uma aproximação possível? Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 094.04, Vitruvius, out. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.094/3018>.


O que tem a ciência ficção a nos dizer para uma melhor compreensão da cidade? Em que medida ela mantém ou pode manter alguma relação com as ciências sociais, em particular com a sociologia urbana? Pode a ciência ficção ascender ao status de uma disciplina científica, fazer uso dos mesmos instrumentos metodológicos de análise e ajudar a desvendar o nosso conhecimento das cidades do presente, a partir de um olhar para o futuro? Estas são apenas algumas das perguntas intrigantes e provocadoras que o geógrafo, escritor e eminente especialista da América Latina, o professor Alain Musset (EHESS, Paris) tenta responder no seu mais novo e, com certeza, polêmico livro, ¿Geohistoria o geoficción? Ciudades vulnerables y justicia espacial.

Já na introdução, o autor reconhece que está pisando num terreno delicado. Ao aplicar aos seus estudos de cidades, reais ou imaginárias, o mesmo instrumental e os mesmos métodos da geografia cultural e da sociologia urbana sem fazer qualquer distinção ou hierarquização entre o real e o imaginário, ele certamente perturba os espíritos mais conservadores do mundo acadêmico que, muitas vezes impregnados de certo fundamentalismo científico, tendem a ver com muita desconfiança qualquer olhar inovador sobre o fazer científico e a rechaçar o que não se enquadra estritamente nos modos consagrados da pesquisa.  Ora, como bem demonstra o autor, há muito que estudiosos se utilizam da ficção – na literatura, por exemplo – para desenvolver suas investigações, com resultados bastante promissores para a compreensão do mundo.

A geohistória e a geoficção são dois termos essenciais para a compreensão do conteúdo do livro. A geohistória poderia ser definida como a geografia que estabelece a relação dialética entre espaço e tempo, superando, assim, a visão tradicional que predominou até pelo menos o início do século XX e que encarava o espaço geográfico como estático, como um mero “marco natural”, para a ação humana. A partir de Fernand Braudel, contudo, os campos disciplinares da história e da geografia se aproximam, possibilitando o que o próprio Braudel chamava de “tempo geográfico” e Alain Musset denomina de “geografia de longa duração”. A geoficção, por sua vez, estabelece uma relação ou aproximação entre a ciência ficção e as ciências sociais. Tendo como referência trabalhos pioneiros como os do sociólogo britânico Richard Hoggart, que trabalhou com a temática da sociologia-ficção, Alain Musset percebeu, em seus estudos e pesquisas, que os fenômenos que ele analisava e os resultados a que chegava sobre sociedades e cidades latino-americanas tinham muito a ver com o que os autores de ciência ficção diziam sobre as cidades imaginárias de tempos e lugares distantes no futuro.

Todo estudo científico pressupõe alguma forma de representação da realidade, mais do que a apreensão da realidade em si, pois a percepção que temos desta é sempre incompleta e imperfeita. Nesse sentido, mais do que o objeto estudado, são as perguntas que fazemos sobre este objeto e os meios que colocamos à nossa disposição para compreendê-lo que contam efetivamente como método científico.  Por isso, como diz Alain Musset, “não importa que a cidade seja real ou imaginária, sempre e quando a investigação permitir colocar em avaliação nossas ferramentas de análise e iniciar uma reflexão sobre nossas civilizações”.

Os três primeiros capítulos do livro apresentam estudos realizados pelo autor durante anos a fio sobre realidades urbanas latino-americanas. Neles sobressaem os pressupostos teórico-metodólogicos da geohistória. Assim, no capítulo 1, por exemplo, ele apresenta resumidamente os resultados de seus estudos sobre o desenvolvimento histórico da cidade do México de sua fundação aos dias de hoje. No capítulo 2, ele apresenta o resultado de seus estudos, realizados ao longo de uma década, sobre os “deslocamentos” de cidades em toda a América Latina ocorridos desde o início da colonização hispânica do Novo Mundo, e no capítulo seguinte, dedicado à cidade de Léon Sutiaba, na Nicarágua, Alain Musset analisa um interessante caso de uma profunda divisão ou segregação espacial entre duas partes da cidade, uma indígena e outra espanhola. Nos três capítulos evidencia-se o fato de que a realidade atual é mais facilmente compreendida ou apreendida a partir da relação espaço-tempo, ou da “geografia da longa duração”, que permite ao autor chegar a conclusões muito pertinentes sobre essas diferentes realidades geográficas e urbanas e ajuda-nos a compreendê-las no momento presente. Em outras palavras, a geohistória nos possibilita entender a cidade atual, tanto em sua dimensão social quanto espacial, a partir de nosso olhar sobre a cidade do passado.

Os 3 capítulos seguintes adentram o campo da geoficção. No capítulo 4, “De México a Coruscant (Star Wars): vida e morte das cidades globais”, o autor se propõe a estudar a cidade imaginária de Coruscant “como se ela existisse”. No capítulo 5, ele aborda a questão da segregação sócio-espacial das mega cidades de ciência ficção e aprofunda esse tema no capítulo 6, ao tratar em particular do gueto: desde os guetos de cidades interplanetárias aos guetos de nossas cidades, cada vez mais voluntários por parte das classes médias e altas, que se enclausuram em seus condomínios fechados e gated communities com medo da violência que assola especialmente as grandes metrópoles do mundo atual. Enfim, em todos os capítulos o autor estabelece inúmeras relações e pontos de contato que existem entre essas cidades planetárias do futuro e muitas metrópoles atuais, como a cidade do México, Lima, São Paulo, Nova York ou Caracas, permitindo-nos perceber que o mundo urbano do futuro não é, afinal de contas, tão diferente assim do mundo urbano atual. Assim a geoficção também nos ajuda a entender a cidade do presente tanto em sua dimensão social quanto espacial, mas a partir de nosso olhar sobre a cidade do futuro.

Três aspectos fundamentais desse livro ainda precisam ser ressaltados. Em primeiro lugar, a questão da vulnerabilidade da cidade e da justiça (ou melhor, da injustiça) espacial - que se revelam na segregação espacial, na distribuição e apropriação desigual dos recursos e dos bens urbanos produzidos socialmente, na fragilidade ambiental - constitui um fio condutor que une todos os capítulos. Em segundo lugar, há uma correspondência temática clara, quase uma continuação, entre os 3 primeiros capítulos e os 3 seguintes: entre o capítulo 1 e o 4, entre o 2 e 5 e entre o 3 e o 6. Assim, a passagem da geohistória à geoficção não ocorre somente no interior dos 6 capítulos, e em especial nos 3 últimos, mas ao longo do trabalho como um todo, conferindo a sensação, que é evidentemente proposital por parte do autor, de que a nossa compreensão do mundo urbano pode se fundamentar facilmente tanto em análises de cidades reais como de cidades imaginárias sem divisões, hierarquizações ou passagens bruscas. Em terceiro e último lugar, mas não menos importante, o livro, que trata de inúmeras cidades, tanto reais quanto de ficção, confere uma análise rica e equilibrada, por meio de um texto de leitura extremamente clara e agradável, num verdadeiro deleite intelectual para aqueles que amam investigar a cidade sem se importar se ela existiu, existe ou existirá um dia no futuro, ainda que em algum ponto perdido desse nosso vasto universo.

sobre o autor Rubenilson Brazão Teixeira, Doutor em Estudos Urbanos (EHESS/Paris) e Mestre em Habitação (McGill University, Montreal). Professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – da mesma universidade

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