O pequeno volume Inteligência brasileira, que acaba de ser lançado como parte da coleção Ensainhos, da Cosac Naify, traz um dos registros mais interessantes do efervescente diálogo cultural travado entre o Brasil e a Europa a partir da década de 1950. Escrito pelo filósofo e professor alemão Max Bense (1), o volume reúne um conjunto de observações recolhidas em quatro viagens feitas ao Brasil entre 1961 e 1964, que são também suas primeiras viagens à América.
O interesse de Max Bense pelo Brasil desperta em 1959, ao tomar conhecimento da produção do grupo de poetas concretos brasileiros por intermédio de Haroldo de Campos. Dali em diante, seu intercâmbio com a cultura brasileira aprofunda-se e faz com que Bense se transforme num dos principais canais de diálogo entre a produção brasileira e o ambiente alemão do pós-guerra.
Em suas viagens, Bense passa por vários estados brasileiros, visita a Bienal de São Paulo e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e vai ao encontro de escritores, artistas, arquitetos, designers, críticos e músicos. Seus registros são, antes de tudo, heterogêneos. Como num diário de viagem aparentemente desordenado, em que o rumo e o ritmo dos acontecimentos ultrapassam o planejamento da prosa do viajante, o volume mescla impressões, reflexões, críticas, narrativas e citações variadas em tamanho e gênero, mas nunca em profundidade.
Mergulhando numa realidade ao mesmo tempo intensa e desafiadora, Bense mostra uma notável abertura para o novo, que acompanha sua enorme capacidade de síntese crítica. Segundo Ana Luisa Nobre, autora do posfácio e da bibliografia selecionada do autor para esta edição, “Max Bense demonstra uma sensibilidade bastante aguçada em relação ao ambiente cultural brasileiro. Suas observações certeiras não traem a origem do autor, mas descrevem um corpo-a-corpo bem mais flexível com a realidade brasileira, ao qual não faltam momentos de puro prazer”.
Apesar destes apontamentos se revelarem em um primeiro momento fragmentários e heterogêneos, eles não se furtam a perseguir de forma decisiva uma teoria da singularidade brasileira no campo da inteligência. Trata-se, de fato, de uma das poucas obras disponíveis em língua portuguesa elaboradas por um intelectual estrangeiro de renome integralmente dedicada à construção de um panorama dessa natureza, o que caracteriza desde já uma contribuição essencial ao conjunto de registros de nossos intelectuais, brasilianistas e demiurgos.
Nas palavras de Max Bense, a inteligência brasileira é “o desenvolvimento da clareza espiritual do país na direção de uma produtividade e de uma esperança autoconfiante naquilo que diz respeito ao método e ao estilo, à alegria e à melancolia”. O espírito desses desenvolvimentos, por sua vez, vai encarnar em Brasília, que o autor visita somente um ano após a sua inauguração, animando boa parte do viés cartesiano de suas reflexões. “Incontestável proclamação brasileira de inteligência cartesiana”, “manifestação da razão pura” e "prolongamento de uma inteligência emancipada” são apenas algumas das expressões com as quais Bense se refere a Brasília.
Essa síntese multifacetada e multidisciplinar, na qual “inclinação francesa e complexidade tropical”, “espírito tropical” e “espírito cartesiano” se relacionam dialeticamente como princípios básicos da cultura brasileira, espraia-se por toda a constelação de obras e personalidades que Max Bense vai desenhando. Seja num restaurante apinhado do centro do Rio de Janeiro, na companhia de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Wladimir Murtinho; num jantar na casa de Aloísio Magalhães no Leme em companhia de Lucio Costa e novamente de Clarice; no apartamento de Bruno Giorgi em companhia de Volpi; ou nas análises das obras de Lygia Clark, Augusto e Haroldo de Campos, Bense não se furta a indicar com precisão e originalidade pontos essenciais para a interpretação das realizações de cada um, sempre tomando o cuidado de fundamentar solidamente os princípios de suas análises.
Se parece razoável supor que a experiência brasileira de Bense tenha contribuído para o acabamento dessa obra, publicada originalmente em 1965, pode restar alguma dúvida na constatação de que essa visão tão precisa, matemática e cartesiana situa-se, afinal de contas, distante da realidade brasileira. No entanto, é exatamente nessa realidade, lida de forma absolutamente original por Bense, que reside a possibilidade de realização desse “destino estético”. Como resume Ana Luisa Nobre, “livre da barbárie, da história, do conservadorismo cristão e do pessimismo hegeliano perante a arte, nossa ‘civilização tropical’, tão exuberante e desordenada quanto amoral, revelaria, de acordo com Bense, a própria ‘essência em progresso’ do homem, transmitindo uma esperança de renovação há muito perdida na Europa”.
Bense, contudo não se deixa deslumbrar inocentemente. Os últimos capítulos de Inteligência brasileira guardam reflexões inquietantes a respeito da situação social e política do país, que não tardaria em desembocar na antítese de suas promessas com a irrupção do golpe militar de 1964.
Completam a edição um breve relato de Alexandre Wollner nas orelhas, um pequeno ensaio fotográfico de Goebel Weyne feito por ocasião de um debate entre Max Bense e Euryalo Cannabrava na Escola Superior de Desenho Industrial e o poema “acompanhando max bense em sua visita a brasília”, de João Cabral de Melo Neto, que figura na contracapa.
notas 1
O filósofo e professor Max Bense (1910-90) nasceu na Alemanha. Formulou um pensamento estético de matriz semiológica e informacional, que incorporou elementos da matemática e da física moderna, presentes em seu livro Pequena estética, traduzido para o português em 1971. Estudou física e matemática nas universidades de Bonn e Colônia e foi professor de filosofia e semiótica na Hochschule für Gestaltung (1954-58 e 1966). Esteve no Brasil em várias ocasiões durante a década de 1960 para palestras, conferências e um curso sobre estética moderna na recém-fundada Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI).
sobre o autor André Stolarski é designer formado em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Dirigiu o departamento de design e museografia do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de 1998 a 2000. É sócio-diretor da Tecnopop, onde desenvolve diversos projetos nas áreas editorial, expositiva e de identidade visual. Concebeu e desenvolveu o volume Depoimentos sobre o design visual brasileiro: Alexandre Wollner e a formação do design moderno no Brasil e adaptou para o português o livro Elementos do estilo tipográfico, do poeta, ensaísta e tipógrafo canadense Robert Bringhurst, ambos editados pela Cosac Naify em 2005