Quem sabe uma das últimas esperanças – em um mundo pós que já não parecia deixar espaço para mais nenhuma – esteja na radicalidade com que o novo protagonismo chinês desafia nossa compreensão e o próprio lugar (ínfimo ocidente) a partir do qual acreditava dominar tudo. Esperança de um novo descobrimento do mundo, não mais de sua transformação progressista, obviamente; mas como não se render à expectativa de uma tal radical reescrita da narrativa histórica da humanidade?
Otilia Arantes apresenta aqui uma interpretação perspicaz das transformações em curso na China, com um ceticismo político que estimula essa curiosidade intelectual. Ela já havia sido uma das primeiras a mostrar o “planejamento estratégico” como uma miragem, álibi cultural da espoliação urbana do capitalismo financeiro. Este livro sobre a China compartilha com aqueles trabalhos a sagacidade crítica e, especialmente, a convicção de que é na dinâmica espacial, na crassa materialidade do mundo, que se hão de encontrar as chaves mais significativas do presente. Seu método para interrogá-las é aqui mais benjaminiano do que nunca: extrair as fantasmagorias do nosso tempo da dureza das cifras e dos feitos urbanos.
Trata-se de um livro de escrita precisa e inteligente – e bela – concepção: tudo nele expressa uma atitude autoral, a de uma intelectual dispondo de suas fontes para interrogá-las diante de nós, raciocinando e fazendo raciocinar com ela. Desde a própria alegoria fáustica do título, Chai-na se apresenta como um quebra-cabeças do qual vai emergindo a figura de uma “paisagem transurbana” de lógicas extremas, cuja especificidade se manifesta ao rasgar o véu do show arquitetônico que parece replicar as políticas de image-making habituais no Ocidente. De tal modo que esse jogo de formas olímpicas fabulosas pode ser pensado em parte como um passe de mágica para consumo ocidental (como, segundo se disse, o próprio discurso comunista de Mao teria sido naquele momento um produto de exportação, enquanto as alterações profundas que levava adiante se inseriam numa história interna de longa duração); mas com um efeito adicional, assinala Otília: ao mesmo tempo em que encarnam bem a exuberância com que a China se reapresenta no tabuleiro mundial, essas imagens corroem – ironicamente, como ela sublinha – os fetiches do urbanismo contemporâneo, mostrando sua profunda falsidade. Não se trata portanto de réplicas, mas de uma digestão da modernização ocidental, que aparece transfigurada diante de um espelho revelador.
sobre o autor
Adrián Gorelik é arquiteto e historiador. É autor dos livros La sombra de la vanguardia: Hannes Meyer en México, 1938-1947 (com Jorge Liernur) e La grilla y el parquet: espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Em 2003 ele foi premiado com um Guggenheim Fellowship para um projeto intitulado "The cycle of invention and critique of the Latin American City".