Nesta excelente pesquisa documental elaborada pela professora arquiteta Guilah Naslavsky é recorrente a expressão “arquitetura regional”, dando-nos a impressão de que, em algum momento, tal singularidade possa ser de algum modo percebida na arquitetura moderna ou contemporânea do Recife. Chega mesmo a transcrever frase sintomática de historiador francês Yves Bruand, em 1969 (ano incluso no limite temporal deste livro) afirmando que naqueles dias ainda era “cedo demais para se falar de uma verdadeira Escola do Recife homogênea e original” (p. 8). Naquele ano, Bruand estava se referindo aos projetos do português Delfim Moreira, do italiano Mario Russo e do carioca Acácio Gil Borsoi, os principais (quem sabe, únicos?) arquitetos modernos da Capital pernambucana. Precavida, ela indaga: “O que são modernidades regionais? Seriam modernidades menores ou expressões menores da arquitetura hegemônica? São ramos secundários de uma expressão principal? Como acentua Abilio Guerra (2004): localização não é atributo de valor de obra de arte [...]; o problema que está atrás desta discussão é um problema ideológico. [...] Estabelecer identidades regionais para avaliar a produção arquitetônica é criar armadilhas para valorizar essa produção, estabelecer valores qualitativos fora do campo da história da arte” (1).Em seguida a essa transcrição bastante oportuna, Guilah Naslavsky afirma: “Aqui, nós analisamos uma produção diversa da que sempre é analisada na historiografia brasileira, que narra a história a partir de dois pólos: Rio e São Paulo. E, mesmo que a disputa entre Rio de Janeiro e São Paulo tenha turvado a questão da origem da arquitetura moderna e das expressões de outros centros, o fato de esses locais serem os pioneiros no contexto nacional não quer dizer que não tenham existido outros centros difusores de ideário” (p. 10).No fundo, este depoimento da autora não vê influência alguma, na introdução da modernidade recifense, do arquiteto Luís Nunes, chegado do Rio de Janeiro no ano de 1935, indo embora dois anos depois. Ela sugere, no entanto, que a semente da nova arquitetura veio a germinar em Pernambuco apenas com a atuação daquela trinca de arquitetos modernistas alienígenas acima citados arribados naquela cidade em 1949 e 1951. Daí ter escolhido o período entre os anos 1949-1972 para nele localizar nos arquivos e analisar o que fosse possível da produção daqueles profissionais, pretensos deflagradores de uma “arquitetura moderna regional”.A respeito do tema “regionalidade”, pensamos que ele deva ser encarado unicamente na ocasião em que formos tratar de arquiteturas nascidas de limitações incontornáveis provocadas por razões climáticas; por restrições ideológicas; por reduzidos recursos naturais e, sobretudo, pelo isolamento físico ensejando construções ditas vernáculas. Em nossa história da arquitetura, no tempo e no espaço, tivemos inúmeras “arquiteturas regionais” como a dos indígenas de variadas nações; como a bandeirista em São Paulo; como as das casas de engenho alpendradas fluminenses, tão bem estudadas por Joaquim Cardoso; como as dos sobrados azulejados de São Luís do Maranhão e, assim por diante. Às vezes, unicamente os programas de necessidades é que são regionais devido a certas determinações de sociedades restritas e isoladas não havendo, no entanto, a necessidade de agenciamentos visíveis no partido arquitetônico. No entanto é bom não esquecermos certos casos de exceção em que, no apoio à tradição, certas peculiaridades programáticas são mantidas em suas exterioridades para enfatizar a “nacionalidade”. É o caso, por exemplo, do partido arquitetônico assumido por Oscar Niemeyer no projeto do Palácio da Alvorada, em Brasília. Ali, o arquiteto, ao projetar o domicílio do chefe da nação buscou o programa ou o modelo da casa rural do tempo de Colônia do páter-família brasileiro, que possuía uma capela acoplada a certa distância por meio de um passadiço às vezes coberto. Fez uma casa brasileira, com certeza.Com o passar dos séculos, com o progresso em geral, com os infinitos processos migratórios misturando os povos do ecúmeno e homogeneizando culturas ficou cada vez mais difícil localizarmos “arquiteturas regionais” no mundo cosmopolita.Na verdade, o que se tenta entender por “arquitetura moderna regional” não passa da produção de certos arquitetos agrupados nas grandes cidades elocubrando construções passíveis de um mesmo enquadramento em teorias estetizantes trazidas por agentes culturais vindos de fora ou por literatura fartamente ilustrada com exemplos ligados a novas estéticas arquitetônicas. Arquitetos reunidos à volta dos escritos de Le Corbusier, como aconteceu no Rio de Janeiro a partir de 1930, durante a direção de Lúcio Costa do curso de arquitetura na Escola de Belas Artes e no decorrer das obras do edifício do Ministério da Educação, a partir de 1935. Com a adoção de alguns poucos estilemas próprios da arquitetura tradicional como, por exemplo, painéis treliçados, paredes externas azulejadas, definiu-se a arquitetura moderna funcionalista carioca que teve como registro de nascimento o livro publicado pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1942.A partir de meados dos anos 30 do século passado vários arquitetos de “escola carioca” foram trabalhar fora do Rio de Janeiro abrindo escritórios em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Bahia e Recife onde, de um modo ou outro, contribuíram para a formação de novas correntes da arquitetura moderna onde também compareceram arquitetos de formações variadas, sobretudo estrangeiros. Em Recife, como já vimos, Acácio Gil Borsoi conviveu com Mario Russo e Delfim Moreira, profissionais gabaritados de mentalidades diversas. Os três lecionaram e os três projetaram e construíram. Cada qual com a sua sapiência e a pergunta latente é se houve contaminações ideológicas no entrelaçamento de seus magistérios; no confronto de suas obras de modo a dar ensejo a uma homogeneização de procedimentos destinada a definir uma “Escola de Recife”, que Yves Bruand julgava ainda muito distante no tempo. Contudo, essa escola nunca existira, assim como outras imaginadas por aí, porque novos contágios virão inexoravelmente com a globalização cada vez mais célere.O grande mérito deste livro está no levantamento de tudo o que se fez de “moderno” no Recife entre os anos de 1949 e 1972, período mais que suficiente à franca troca de ideias e de ensinamentos nos cursos de arquitetura, no caso, centros importantíssimos vindos para causar a sedimentação de conhecimentos, para provocar ou aguçar sensibilidades e fantasias, aliando a racionalidade construtiva com as mais variadas “intenções plásticas”, no jargão carioca. Foram 23 anos de formação de alguns milhares de arquitetos que levaram subliminarmente para a vida prática os gostos e as idiossincrasias sobretudo de Mario Russo, Delfim Moreira e Acácio Gil Borsoi.Seria de maior interesse nova pesquisa, como chega a sugerir a autora, abarcando mais 23 anos de arquitetura recifense para bem aquilatarmos, depois de pertinentes juízos críticos, o que sobrou das pranchetas do nosso trio de arquitetos pioneiros nas telas dos computadores dos jovens profissionais. Estaria atuando a “Escola do Recife” de Yves Bruand?notasNE
O presente texto foi publicado como prefácio do livro.
1
GUERRA, Abílio. Argüição. Exame de qualificação. FAUUSP, 6 fev. 2004.
sobre o autorCarlos Lemos é arquiteto, artista plástico e professor no Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.