Em livro recentemente lançado no Brasil por Josep Maria Montaner e Zaida Muxí, a arquitetura volta a olhar tête-à-tête para um campo fundamental – e nem sempre dimensionado – de sua disciplina, qual seja, o espaço partilhado onde todos estamos inseridos e ao qual chamamos de político. Montaner e Muxí têm como premissa que as grandes figuras do circuito de starchitects não fornecerão saídas para os desafios atuais das cidades, neste sentido o livro mapeia, de modo bastante introdutório, episódios recentes e experimentações contemporâneas que podem superar tais déficits.
Montaner e Muxí trazem de volta algo que talvez tenha ficado esmaecido nos anos de pós-modernismo celebratório, a saber, é possível sim uma ação política a partir da arquitetura. E esta é a questão fundamental que permeia o livro, mais do que apenas encontrar uma chave analítica traçando relações entre uma esfera e outra. O trabalho historiográfico recoloca em cena modos situados de atuação com os quais a disciplina pode tanto resgatar suas heranças crítico-transformadoras quanto enriquecer seu imaginário.
Os autores lembram de Adolf Loos na Viena da década de 1920, ao implementar as políticas habitacionais dos Siedlungen pautadas por sistemas cooperativos. Os desdobramentos desta referência em Ernst May, figura central na administração da Frankfurt social democrata, que sob as premissas da Nova Objetividade construiu cerca de trinta mil moradias populares – algumas mais adaptadas às demandas locais, outras nem tanto. De arquitetos como William Morris e Hannes Meyer, os autores extraem aquilo que em Depois do movimento moderno Montaner chamou de “postura arquitetônica”, atentando sobretudo para o envolvimento de cada um com as questões de seu tempo. Morris a figura que tentou buscar a ética da produção arquitetônica, Meyer o que compreendeu o papel da arquitetura no interior de uma sociedade de classes e, mais do que isso, de cidades que poderiam ou não fornecer condições dignas para as parcelas maciças da população . Montaner e Muxí destacam ainda figuras contemporâneas como a do arquiteto indiano Miloon Kothari e a de Raquel Rolnik, ambos ligados à luta da Organização das Nações Unidas pela universalização do direito à moradia adequada.
De uma análise de agentes, na segunda parte passam à análise de cidades. O diagnóstico traz en passant pontos já conhecidos, como os efeitos deletérios do rodoviarismo, o caráter esquizofrênico das cidades feitas de enclaves fortificados, o que classificam aqui como um “neofeudalismo”. Além disso, reaparecem temas recorrentes nas paisagens europeias, tais como a transformação das cidades em parques temáticos cuja história se torna uma coleção de imagens clichês e, ainda, a imigração de povos de ex-colônias. Em seguida os autores elencam modelos urbanos que talvez não tenham o status de “alternativas” como querem Muxí e Montaner, mas gozam de relativo êxito diante das condições contemporâneas.
A primeira delas é Curitiba, cujas decisões nos anos 1980 tornaram o transporte público eficiente e desejável à população, promoveram uma vida social em espaços públicos, com especial prestígio aos parques, o que para os autores conferiu à cidade – com 50m de área verde por pessoa – o perfil de um “ecologismo desenvolvimentista” (p. 132). Lembram ainda do papel de destaque da Universidade de Estudos do Ambiente na formação de conhecimentos na área. Não deixam de notar, no entanto, que as forças especulativas mais acentuadas nos últimos anos têm levado a cidade a um considerável espraiamento. Seattle, cidade jovem onde estourou os movimentos antiglobalização em 1999, esteve entre as primeiras a conseguir inserir na agenda urbana – em grande parte via pressão de cidadãos – índices de sustentabilidade, ruas simpáticas aos pedestres, além de edifícios públicos emblemáticos.
Lembram também de Bogotá do prefeito Antanas Mockus, cujo progressismo teve como fundamento o investimento em escolas e bibliotecas. Outros fatores que mereceram destaque foram: primeiro, o diálogo entre poder público e universidade na implementação de um Observatório de Cultura Urbana, o que se tornou um canal de comunicação entre administração e cidadãos. Segundo, as iniciativas de participação e autogestão na escala do bairro, dando aos moradores a possibilidade de envolverem-se com projetos de espaços e equipamentos públicos.
Em Medellin, Direito à Cidade se tornou uma ideia-força na diminuição de disparidades historicamente consolidadas. Contou com um sistema de transporte elevado capaz de se adaptar ao relevo acidentado – conhecido como Metrocable – e, a partir dos eixos deste, uma revalorização de parques. Como reconhecem os autores, se há algo em comum entre estas é o envolvimento renovado e a relação ativa dos cidadãos com suas cidades, isto é, um urbanismo ramificado pela sociedade civil.
A busca por alternativas extrapola o campo da arquitetura e urbanismo em direção a projetos contraculturais como aqueles ligados a Slow Food, Slow Life. Montaner e Muxí estão cientes de que a busca por cidades economicamente saudáveis e socialmente viáveis requer, além de posicionamento e criatividade política, mudanças em crenças, hábitos e práticas coletivas, ou nos termos dos autores, a formação de novas subjetividades, mais ecológicas e mais solidárias. Não por acaso outro ponto incorporado pelos autores, e ainda muito pouco tratado no âmbito da arquitetura, é o da relevância da voz ativa dos feminismos no que chamam de “urbanismo sem gênero”. Como lembram os autores, não é uma questão menor pensar a invisibilidade das mulheres nos espaços públicos e a ligação opressiva delas no interior dos espaços domésticos. Trata-se sim de um déficit na esfera pública. Os autores retomam figuras-chaves entre mulheres cujas colaborações nas discussões das cidades são notáveis; Jane Jacobs está entre os destaques.
Se a relação dos autores com as referências arquitetônicas e urbanísticas são bastante cuidadosas e vão ao núcleo de cada uma das problemáticas às quais as propostas individuais estavam ligadas, quando se remetem à filosofia e ciências humanas, optam por operacionalizações mais sintéticas e rápidas, sem se preocupar tanto em recuperar mediações. A referência fundamental para os autores, esta utilizada com pertinência, é a de Hannah Arendt. Com a noção de ação política em Arendt já se entende boa parte do percurso do livro. Com menos cautela colocam na chave dos rizomas de Gilles Deleuze desde redes virtuais, processos de favelização, guerras difusas e mercados globais informais de armas. Em momentos melhores, retomam o debate sobre o “Fim da História” para defender o quanto a história recente contraria a tese do conservador Francis Fukuyama. Como lembram os autores, o estado atual de coisas está longe de ser uma democracia real e, muito pelo contrário, o que temos é um mundo de fronteiras quentes e frágeis onde disparidades se acentuam e conflitos urbanos se tornam cada vez mais recorrentes na massa crescente de segregados social, econômica e culturalmente. No Derrida de Espectros de Marx os autores apostam encontrar subsídios teóricos com os quais o projeto moderno possa encontrar a superação de antagonismos estruturais, projetos arquitetônicos críticos que não separem teoria e prática, ciência e experiência (p. 242-245). Somam-se ainda ao pensador espanhol contemporâneo Rosi Braidotti, na defesa de posições ativas e capacitadoras que se tornem “um acúmulo de práticas micropolíticas de ativismo cotidiano e de projetos para criar mundos alternativos” (p. 245).
Os autores deixam expresso que a ação política por meio da arquitetura é sobretudo uma questão de pauta e, não menos importante, de envolvimento com algo outro além de uma trajetória individual exitosa. Os “arquitetos-estrela”, em suas melhores versões, até passam pelo primeiro critério, mas deixam muito a desejar no segundo. E lembram ainda que a emergência do “arquiteto liberal”, figura predominante no último quartel do século 20, coincide com a crescente descrença em relação ao potencial transformador da arquitetura.
Vale reforçar, o político do título opera em sentido ampliado. A obra explora tanto questões dos centros de decisões, cujos expedientes ocorrem no quadro das instituições vigentes, quanto as práticas bottom-up, isto é, que partem da base enquanto modos de participação e cidadania ativa, experimentações sociais ou então formas de vida tangenciais à uma cultura global hegemônica. Aposta-se que ambos os vetores podem orientar avanços, ambos com possibilidades e limitações. E de quebra, com este inventário de experiências consegue contrariar opiniões que assombraram os meios arquitetônicos até recentemente, segundo as quais a vida nas cidades estaria fadada a ser absorvida por completo nas atividades de consumo – Rem Koolhaas certamente um dos protagonistas deste alarde. Ainda que o livro não traga uma pesquisa extensa a respeito do tema, Montaner e Muxí parecem deixar evidente algo de suma importância: a vida urbana passa por estes espaços de luta por reconhecimento, de legitimação de demandas coletivas, de uso público da razão, de participação em saídas compartilhadas e, mais do que isso, de luta pela realização de uma sociedade livre. Ora, isto significa que a cultura urbana por excelência está ligada ao território em disputa do político.
Podemos arriscar algumas outras asserções. O que Montaner e Muxí buscam – como já mostrara o primeiro em Arquitetura e crítica (1) – é, em última instância, retomar o sentido da arquitetura. Para tanto é preciso manter abertos os poros da disciplina, despojá-la de seus vícios linguísticos e, obviamente, reconstituir os vínculos entre avanços técnico-construtivos e uma urbanização socializante. A contribuição dos autores em Arquitetura e política é compilar brevissimamente iniciativas que em alguma medida trilharam esta via e, com isso, conseguiram fazer da arquitetura uma prática consoante à efetivação do direito à cidade. E uma última inferência a partir do livro: se o político é o espaço partilhado no qual todos estamos envolvidos, não há a escolha por fazer arquitetura para além dele.
nota
1
MONTANER, Josep Maria. Arquitetura e crítica. 2ª edição. Barcelona, Gustavo Gili, 2007.
sobre o autor
Paolo Colosso é arquiteto e bacharel em Filosofia pela Unicamp. Atualmente faz mestrado no Departamento de Filosofia da USP, onde estuda cultura urbana em metrópoles contemporâneas.