No início, Thiago Bernardes faz duas perguntas que nos remetem para a obra do seu avô: Por que é que a gente está a fazer este filme? Por que é que pararam de falar dele? Ao longo do filme tentamos encontrar as respostas, mas vão surgindo outras questões à medida que se torna clara a ligação íntima entre estas duas perguntas – para responder à primeira é necessário responder à segunda.
A arquitetura está umbilicalmente ligada à política. A palavra política descende da palavra polis – termo grego que se refere à cidade-estado – e as palavras urbano, urbanidade ou urbanismo descendem de urbs. A polis e a política, a cidade é inerentemente política. A arquitetura e a política têm uma relação íntima e um objetivo comum; elas ligam-se naturalmente uma à outra como ferramentas para a transformação, uma transformação coletiva. O documentário Bernardes têm a qualidade fabulosa de nos relembrar, uma vez mais, que o arquiteto trabalha com a sociedade para gerar transformação. Se consideramos este desejo de transformar inconsequente, ingênuo, ou mesmo irresponsável é porque provavelmente já nos acostumamos a ver a política como um exercício de mera diplomacia ou de auto‐promoção e a arquitetura como um serviço ou uma técnica, obscurecida pelas teias da burocracia, ou mesmo como uma disciplina autista, focada orgulhosamente sobre si mesma.
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Plano Rio do Futuro, 1965. Arquiteto Sergio Bernardes
Imagem divulgação
Sérgio Bernardes foi um arquiteto que desafiou os limites da profissão. Tinha uma enorme consideração pelo território, imaginava o futuro e ambicionava provocar grandes mudanças na sociedade. A sua força motriz era ir cada vez mais longe. Bernardes acreditava que a arquitetura não deveria terminar no “know how” mas sim no “know why”, que é o mesmo que dizer que esta não se deve limitar a responder a um dado programa, deve sim criar o próprio programa em si. Com o LIC – um Laboratório de Investigação Conceptual construído dentro do seu próprio atelier nos anos 80 – Bernardes leva mais longe a sua abordagem transdisciplinar. Cria um corpo de conhecimentos e investigações de ponta sobre todo o território brasileiro e desenvolve estratégias de especulação em escalas territoriais ainda maiores, mas ele age e usa essa pesquisa com a finalidade única de construir (transformar), em total sincronia com sua crença no poder transformador da arquitetura. Devido a essa motivação fundamental para a transformação, ele acaba por cruzar o limite entre política e arquitetura, candidatando-se à Prefeitura do Rio de Janeiro. Mas mesmo enquanto político não consegue abandonar o papel do arquiteto, e foi provavelmente por isso que ele perde as eleições.
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Plano Rio do Futuro, Copacabana, 1965. Arquiteto Sergio Bernardes
Imagem divulgação
A questão sobre a invisibilidade de Bernardes na história permanece, contudo, sem resposta. Nos tempos modernos, a natural visão heróica do arquiteto, dá-nos vários exemplos de arquitetos que colaboraram com ditaduras militares. Poderíamos referir o caso de Corbusier na Argélia como um dos mais conhecidos. Mas a maior contribuição deste filme para o debate arquitetônico é a sua dissecção do processo pelo qual os arquitetos e a arquitetura são validados – como o cânone acadêmico é construído ou como as narrativas dos vencedores se sobrepõem às outras. Como é possível que se apaguem impiedosamente algumas figuras da história enquanto se realçam outras? Não é assim que toda a história é construída? Surpreendo-me sempre por ter descoberto a obra de Pancho Guedes, e de outros arquitetos portugueses modernistas que construíram nas colônias de Angola e Moçambique durante a ditadura de Salazar, não em Portugal (onde estudei arquitetura e estes nomes nunca foram mencionados) mas na Holanda, onde eram admirados. A história e as narrativas são feitas por e nas redes de poder, nos corredores da influência e nos salões dos vencedores. Ao compreendermos a história do poder, desvendamos a essência da própria História.
“Enquanto que a palavra política sugere a ideia de superfície e superficial, a palavra poder evoca centro e profundidade. Tendo a história de superfície perdido o seu charme, a história política torna‐se história em profundidade, tornando-se a história do poder”.
Jacques Le Goff, 1971
Por todas estas razões, este filme vai certamente incentivar a pesquisa e o debate, e certamente contribuirá para reescrever esta estória e uma parte da história esquecida da arquitetura moderna brasileira.
Mas, este filme é, afinal de contas, uma simples homenagem a um grande arquiteto; uma bonita carta de amor de todos os que o amavam e que foram inspirados por ele. Esta homenagem emocional acaba por emocionar os espectadores por osmose. Provavelmente, alguns estudantes de arquitetura, alguns arquitetos e eventualmente alguns políticos, mas o filme vai contaminar especialmente aqueles que, como Sérgio, são sonhadores incorrigíveis, investigadores e inventores do futuro. Olhar mais além. Esta é a lição do homem que dizia que não tinha passado, tinha só presente e futuro. And the answer my friend, is blowing in the wind.
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nota
NE – Este texto foi originalmente encomendado pela The Architecture Foundation para acompanhar a estreia britânica do documentário Bernardes, como parte da série The AF series Architecture on Film.
ficha técnica
título
Bernardes
direção
Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros
ano
2014
duração
1h31min
argumento
Thiago Bernardes
roteiro
Gustavo Gama Rodrigues, Paulo de Barros e Yan Motta
fotografia
Stefan Heiss e Paulo de Barros
sobre o autor
Pedro Campos Costa; arquitecto em Lisboa e curador de Homeland, que transformou o Pavilhão Português num Jornal, na 14ª Exposição Internacional e Arquitectura, La Biennale di Venezia.