No início, Thiago Bernardes faz duas perguntas que nos remetem para a obra do seu avô: Por que é que a gente está a fazer este filme? Por que é que pararam de falar dele? Ao longo do filme tentamos encontrar as respostas, mas vão surgindo outras questões à medida que se torna clara a ligação íntima entre estas duas perguntas – para responder à primeira é necessário responder à segunda.
A arquitetura está umbilicalmente ligada à política. A palavra política descende da palavra polis – termo grego que se refere à cidade-estado – e as palavras urbano, urbanidade ou urbanismo descendem de urbs. A polis e a política, a cidade é inerentemente política. A arquitetura e a política têm uma relação íntima e um objetivo comum; elas ligam-se naturalmente uma à outra como ferramentas para a transformação, uma transformação coletiva. O documentário Bernardes têm a qualidade fabulosa de nos relembrar, uma vez mais, que o arquiteto trabalha com a sociedade para gerar transformação. Se consideramos este desejo de transformar inconsequente, ingênuo, ou mesmo irresponsável é porque provavelmente já nos acostumamos a ver a política como um exercício de mera diplomacia ou de auto‐promoção e a arquitetura como um serviço ou uma técnica, obscurecida pelas teias da burocracia, ou mesmo como uma disciplina autista, focada orgulhosamente sobre si mesma.
Sérgio Bernardes foi um arquiteto que desafiou os limites da profissão. Tinha uma enorme consideração pelo território, imaginava o futuro e ambicionava provocar grandes mudanças na sociedade. A sua força motriz era ir cada vez mais longe. Bernardes acreditava que a arquitetura não deveria terminar no “know how” mas sim no “know why”, que é o mesmo que dizer que esta não se deve limitar a responder a um dado programa, deve sim criar o próprio programa em si. Com o LIC – um Laboratório de Investigação Conceptual construído dentro do seu próprio atelier nos anos 80 – Bernardes leva mais longe a sua abordagem transdisciplinar. Cria um corpo de conhecimentos e investigações de ponta sobre todo o território brasileiro e desenvolve estratégias de especulação em escalas territoriais ainda maiores, mas ele age e usa essa pesquisa com a finalidade única de construir (transformar), em total sincronia com sua crença no poder transformador da arquitetura. Devido a essa motivação fundamental para a transformação, ele acaba por cruzar o limite entre política e arquitetura, candidatando-se à Prefeitura do Rio de Janeiro. Mas mesmo enquanto político não consegue abandonar o papel do arquiteto, e foi provavelmente por isso que ele perde as eleições.
A questão sobre a invisibilidade de Bernardes na história permanece, contudo, sem resposta. Nos tempos modernos, a natural visão heróica do arquiteto, dá-nos vários exemplos de arquitetos que colaboraram com ditaduras militares. Poderíamos referir o caso de Corbusier na Argélia como um dos mais conhecidos. Mas a maior contribuição deste filme para o debate arquitetônico é a sua dissecção do processo pelo qual os arquitetos e a arquitetura são validados – como o cânone acadêmico é construído ou como as narrativas dos vencedores se sobrepõem às outras. Como é possível que se apaguem impiedosamente algumas figuras da história enquanto se realçam outras? Não é assim que toda a história é construída? Surpreendo-me sempre por ter descoberto a obra de Pancho Guedes, e de outros arquitetos portugueses modernistas que construíram nas colônias de Angola e Moçambique durante a ditadura de Salazar, não em Portugal (onde estudei arquitetura e estes nomes nunca foram mencionados) mas na Holanda, onde eram admirados. A história e as narrativas são feitas por e nas redes de poder, nos corredores da influência e nos salões dos vencedores. Ao compreendermos a história do poder, desvendamos a essência da própria História.
“Enquanto que a palavra política sugere a ideia de superfície e superficial, a palavra poder evoca centro e profundidade. Tendo a história de superfície perdido o seu charme, a história política torna‐se história em profundidade, tornando-se a história do poder”.
Jacques Le Goff, 1971
Por todas estas razões, este filme vai certamente incentivar a pesquisa e o debate, e certamente contribuirá para reescrever esta estória e uma parte da história esquecida da arquitetura moderna brasileira.
Mas, este filme é, afinal de contas, uma simples homenagem a um grande arquiteto; uma bonita carta de amor de todos os que o amavam e que foram inspirados por ele. Esta homenagem emocional acaba por emocionar os espectadores por osmose. Provavelmente, alguns estudantes de arquitetura, alguns arquitetos e eventualmente alguns políticos, mas o filme vai contaminar especialmente aqueles que, como Sérgio, são sonhadores incorrigíveis, investigadores e inventores do futuro. Olhar mais além. Esta é a lição do homem que dizia que não tinha passado, tinha só presente e futuro. And the answer my friend, is blowing in the wind.
nota
NE – Este texto foi originalmente encomendado pela The Architecture Foundation para acompanhar a estreia britânica do documentário Bernardes, como parte da série The AF series Architecture on Film.
ficha técnica
título
Bernardes
direção
Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros
ano
2014
duração
1h31min
argumento
Thiago Bernardes
roteiro
Gustavo Gama Rodrigues, Paulo de Barros e Yan Motta
fotografia
Stefan Heiss e Paulo de Barros
sobre o autor
Pedro Campos Costa; arquitecto em Lisboa e curador de Homeland, que transformou o Pavilhão Português num Jornal, na 14ª Exposição Internacional e Arquitectura, La Biennale di Venezia.