Sir William Holford, presidente do júri que elegeu o projeto vencedor da nova capital do Brasil, em 1957, ao conhecer o projeto de Lúcio Costa, apresentado no singelo e antológico Relatório do Plano Piloto de Brasília – PPB, assim se expressou: Mas esta é a maior contribuição urbanística do século XX! Portanto, passados pouco mais de meio século de sua inauguração, é compreensível que o debate sobre a sua concepção urbana e as motivações, que levaram à construção de uma obra tão ousada e eloquente em um país periférico da comunidade econômica mundial, continue vivo, profícuo e desafiador aos estudiosos do tema urbano.
Brasília, verdadeiramente, não é uma cidade comum que adquiriu notoriedade e importância pela sua trajetória evolutiva ou em virtude de algum acontecimento singular ocorrido em seu espaço, conforme acontece a tantas outras cidades no mundo. Ao contrário do que se possa imaginar, a sua própria concepção urbana singular, filiada aos princípios funcionalistas do Movimento Moderno de Arquitetura e Urbanismo, aliada ao seu processo de idealização como capital de um país desejoso em ser moderno e autônomo, bem como à epopeia de sua construção, ocorrida em pouco mais de três anos, a tornaram uma cidade histórica e instigante, desde o nascedouro. Não custa lembrar, que Brasília foi o primeiro artefato moderno a ser reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1987, quando tinha apenas 27 anos de existência.
Na verdade, a preocupação com a proteção histórica do projeto urbanístico de Brasília nasce antes mesmo de sua inauguração, pois a chamada Lei Santiago Dantas (1960) estabelecia que qualquer alteração no seu plano-piloto dependeria de lei federal. Ou seja, modificar a sua concepção original exigiria aprovação do Congresso Nacional. O próprio presidente Juscelino Kubistchek, que a construiu, solicita ao então Chefe do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, Rodrigo Melo Franco de Andrade, que estude o tombamento de Brasília como patrimônio histórico, pois somente assim ele entendia que a proteção do seu projeto urbanístico estaria assegurada.
De outro modo, a transferência da sede do governo do litoral para o interior do país faz parte do imaginário brasileiro muito antes de sua constituição com nação autônoma, desde o século XVII. O Frei Vicente de Salvador, por exemplo, em 1627, já criticava a exclusiva preocupação dos portugueses com a exploração do litoral e sugeria a conquista do imenso vazio do interior do território. Marquês de Pombal, no século XVIII, propõe não só a transferência da sede da Colônia, mas de todo o Reino Português para o interior do país. Entretanto, somente a partir no século XIX, no âmbito das ações relativas à emancipação de Portugal, que tornou a antiga colônia portuguesa em território autônomo, é que essa intenção toma forma e passa a ser inserida nas proposições de constituição do país surgido com o ato libertário de 1822. Idealizada, portanto, no período imperial a sua concretização só ocorre no século seguinte, já no período republicano, 138 anos depois, precisamente em 21 de abril de 1960.
No decorrer desse longo período de idealização e concretização, que envolveu a participação de inúmeros personagens, sua história compõe-se de uma mescla de mitos, fantasias e realidade. Desde, por exemplo, sua associação com os ideais revoLúcionários dos inconfidentes mineiros do século XVIII, que ansiaram romper com Portugal e transferir do litoral para o interior a sede da colônia. Do mesmo modo, a vinculação ao ideal cristão da terra prometida, contido nos sonhos proféticos de Dom Bosco, que em 1883, anteviu o surgimento entre os paralelos 15 e 22 - exatamente onde se localiza Brasília – da terra da promissão onde jorraria o leite e o mel... O próprio Lúcio Costa, autor do projeto vencedor do concurso, assim se refere à sua proposta urbanística: “...nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja o próprio sinal da cruz.”
Todavia, ao lado desse admirável mito fundador, comum e enriquecedor à história de qualquer cidade, vamos encontrar razões bem mais terrenas para a sua efetivação como capital do país. Aspecto que como instituição de fomento e valorização cultural nos interessa pesquisar e divulgar, e que o arquiteto Jeferson Tavares tão bem explora no presente livro, fruto de uma longa e criteriosa pesquisa de mestrado. Livro esse que a Superintendência do Iphan no Distrito Federal tem agora o privilégio de apresentar, na perspectiva de que a análise e avaliações que o mesmo enseja, possam contribuir no aclaramento de aspectos e inquietações ainda presentes na historiografia da cidade.
Em seu trabalho de pesquisa foram inúmeros os projetos identificados e analisados, não só os 32 que concorreram no concurso de 1957, mas muitos outros que antecederam o referido certame. Fato que nos confirma a expectativa e simbologia que representou e representa a concretização de Brasília para a história nacional, bem como para a historiografia do urbanismo mundial. Não se pode olvidar que Brasília, apenas meio século após sua inauguração, é a quarta metrópole do país em população – 2,9 milhões, IBGE/2014 - e centro de uma ampla região metropolitana de grande dinamismo urbano, que beira aos quatro milhões de habitantes.
Não há dúvidas que a transferência do centro político-administrativo da nação brasileira do litoral para o seu interior, precisamente, para o então vazio Planalto Central, foi um ato político de grande ousadia e determinante para alterar o eixo socioeconômico do país, e definir novos rumos para a sua historiografia. Tal projeto, inserido em um contexto de forte cunho nacionalista e desenvolvimentista, causou intensa reação em boa parte da sociedade brasileira daquele período, curiosamente, com desaprovação aguda nos dois extremos do quadro político de então, personificado nas figuras de Carlos Lacerda e Luiz Carlos Prestes, respectivamente, os principais líderes políticos da direita e da esquerda. Lacerda dizia que seria um investimento improdutivo. Prestes, por outro lado, afirmava, que Brasília seria uma maneira de afastar o governo central das pressões sociais da população, haja vista, o caldeirão político que era o Rio de Janeiro naquele período em que foi a capital do país.
A construção da nova sede do governo central, para muitos, era entendida – e continua sendo - o símbolo maior da modernização de um país que ansiava romper com seu passado colonialista, visto como sinônimo de atraso, e construir uma nova identidade nacional fundada no discurso renovador dos valores culturais embutidos nos ventos da modernidade, que àquele momento bafejavam a elite intelectual do país. Portanto, seria o passo decisivo para o país alterar o seu indesejável quadro sociopolítico arcaico e adentrar, com altivez, ao mundo moderno. Na verdade, Brasília seria o coroamento de um período de grande efervescência sociocultural do país, onde arraigados hábitos e valores sociais foram revistos e alterados.
Nesse contexto, seria natural que os projetos pensados nesse período para a nova capital brasileira comungassem do ideal de modernidade embutido no discurso político-ideológico da elite intelectual daquela época e buscassem, cada um ao seu modo, a depender da corrente urbanística de seu autor, representar na sua concepção espacial esse ideário entendido como renovador. Portanto, ao longo do período entre a idealização e a efetiva materialização, o projeto da nova capital passou por vários entendimentos e incorporou várias leituras de modernidade, até culminar nos projetos originários do Movimento Moderno de Arquitetura e Urbanismo e que concorreram ao concurso de 1957, todos de cunho racionalista. Entre esses, coube à proposta de Lúcio Costa, vencedora do certame, melhor interpretar o momento sociopolítico e cultural que o país vivenciava, onde as palavras de ordem eram: ruptura, desenvolvimento e modernidade. Sua concepção, portanto, alinhava-se fortemente aos valores socioculturais de uma sociedade, que almejava ser moderna e original.
Assim, é possível distinguir em seu espaço, elementos da cidade-jardim de Ebenezer Howard (1898), da cidade-linear de Arturo Soria y Mata (1882), da cidade radiosa de Le Corbusier (1935), da cidade funcional e de tantas outras tributárias do chamado urbanismo científico, no qual pontificava o entendimento de que a resposta para o caos urbano, decorrente das contradições sociais, viria da instituição de uma urbanidade calcada na ordem racional e científica. Ideologia que, também, embasava a concepção dos demais projetos concorrentes. Daí, que todos apresentavam um projeto completo, de tamanho pré-definido e socialmente harmônico de cidade, onde pontificavam a funcionalidade, o idealismo formal e a pureza estética.
Contudo, seria um reducionismo primário afirmar que o projeto de Lúcio Costa teria apenas uma filiação, tal seja a do Movimento Moderno, mais precisamente da corrente ideológica de Le Corbusier, conforme comumente se alega. Embora centrada nos princípios funcionalistas desse movimento, a gênese da concepção de Brasília é múltipla, complexa e mais rica em influências incorporando soluções urbanas universais, impregnadas de historicidade e que sintetizavam a cultura urbanística da época, com seus inumeráveis modelos e derivações. Da mesma forma, vamos encontrar em seu espaço elementos de composição urbana já utilizados em épocas bem anteriores à sua construção, o que nos confirma a amplitude do repertório urbanístico utilizado por Lúcio Costa na concepção de sua proposta. Como, por exemplo, os amplos terraplenos, as longas perspectivas, a monumentalidade, os espaços formais e cerimoniais, aspectos que nos remetem às remotas cidades chinesas, bem como ao antigo México com as cidades esquecidas dos Maias, particularmente, Teotihuacan, cuja avenida central guarda inegável similitude com a nossa Esplanada dos Ministérios.
Portanto, é sobre esse fenômeno chamado Brasília que nos conta esse precioso livro de Jeferson Tavares, singularidade que o transforma em uma ferramenta fundamental para se compreender a sua gênese e a cultura urbanística daquele período, ao tempo em que nos mostra as sutilezas embutidas nas propostas urbanísticas apresentadas em 1957, quando do concurso de projetos para a construção da nova capital do Brasil. Cabe ainda destacar a maneira que o autor alinhava os eventos que compõem essa longa trajetória de materialização da cidade, oferecendo ao leitor uma perspectiva histórica singular e prazerosa de conhecer.
É com esse sentimento de contribuição à historiografia da cidade em particular e a do urbanismo em geral, que a Superintendência do Iphan em Brasília, tem o prazer de apresentar este valioso estudo sobre os projetos para a nova capital do Brasil. Boa leitura!
nota
NE — o presente texto é a apresentação do livro: REIS, Carlos Madson. Apresentação. In: TAVARES, Jeferson Cristiano. Projetos para Brasília. 1927-1957. Brasília, Iphan, 2014.
sobre o autor
Carlos Madson Reis é superintendente do Iphan em Brasília.