Brasil em movimento: reflexões a partir dos protestos de julho (Rocco, 2014), é um livro absolutamente incomum. Organizado por Maria Borba, Natasha Felizi e João Paulo Reys, é composto por 37 entrevistas. Entre os ouvidos se encontram um líder estudantil durante os anos de ditadura, um ex-comandante e coordenador das UPPS, um líder indígena, um cantor e compositor e diversos profissionais liberais, incluindo um professor estrangeiro. Embora todos eles tenham como tema o Brasil, em seu instante de agora, mais precisamente a partir dos protestos iniciados em 18 de maio de 2013, suas visões individuais formam um múltiplo tamanho que se torna impossível uma resenha estrita. Em vez de tentá-la, partirei de poucas referências que permitam uma reflexão o quanto possível englobante.
Detenho-me especialmente no panorama assinado por João Paulo Reys. Como um tumor que estoura, tudo começa pela arbitrariedade de um delegado de polícia contra um jornalista que cobria a ação de desocupação efetuada contra índios da tribo Terena, em Mato Grosso do Sul. Para que o acidente sucedido em local tão remoto logo funcionasse como um rastilho de pólvora era preciso que o país contivesse um abscesso em estado de latência. Assim, a violência que, em seu lugar de origem, continuará com o assassinato de um indígena pela polícia, rapidamente chega a Goiânia e a Natal; e poucos dias depois se estende a ponto tão distante como São Paulo, por motivo bem diverso: o aumento das tarifas de ônibus.
Como no caso originador, ao ajuntamento popular se contrapôs a violenta repressão policial. Na impossibilidade de detalhar a cadeia de explosões sucessivas, assinalem-se desde já dois agentes centrais no que os organizadores do livro chamaram de “movimento”: uma população marginalizada, no caso, a indígena, que não terá meios suficientes de defesa, e o detentor por excelência da violência: as tropas de choque da polícia. O terceiro agente constitutivo da situação logo se manifestará: em junho, em programa transmitido por televisão estatal, um arquiteto critica, em São Paulo, a “imoralidade do modelo urbano”, baseado no automóvel particular, em detrimento do transporte público. A acusação levantada contra o privado, em prejuízo do que beneficiaria o público, ouriça a rede mediática dominante. Ela sente que a onda que avança a ameaça, enquanto ela mesma é feudo de umas poucas famílias, e, por isso, sai em defesa da... polícia. Estão agora claramente presentes os três agentes explícitos no processo: a) a violenta repressão policial; b) as populações marginalizadas – a indígena, por excelência, a seguir o pobre radicado ou proveniente do norte ou nordeste do país; c) a rede miediática dominante, propriedade de famílias eleitas, com poder financeiro bastante para contratar escribas muito bem pagos.
Voltemos ao fio das circunstâncias: com o início próximo da Copa das Confederações, os protestos agora se voltam para o desperdício do dinheiro público. Com isso, entra em cena um outro ingrediente decisivo nos protestos: o mau uso do dinheiro público, por extensão, a acusação à ladroagem de políticos e empresários. Assim, no plano dos eventos, importa destacar que as manifestações, embora concentradas sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, tendem sempre a alcançar outras e outras cidades. Já no plano interpretativo dos agentes e ingredientes constitutivos importa considerar que, enquanto agentes, estão em cena não só forças tendencialmente de esquerda, quanto de direita – mais adiante, de extrema direita, que reivindicam o retorno da intervenção militar. Se aquelas acusam sobretudo a violência policial e o direcionamento que a mídia dá aos acontecimentos, as forças conservadoras concentram seu ataque no PT e na presidência exercida por membros deste partido; e, enquanto ingredientes constitutivos, aparece um elemento que ganhará maior destaque além do período coberto pelo livro: o fator corrupção, que começara a ganhar destaque com o chamado Mensalão, ainda no governo Lula. E aqui a tendenciosidade da mídia dominante (os grandes jornais paulistas e a única rede televisiva, que cobre todo o país) cada vez será mais acentuada. Ela acusa o PT de responsável pela ladroagem sistemática – como se ela não tivesse existido antes – e “esquece” que aos agentes políticos – pertencentes a toda a gama de partidos – se acrescentavam empresários e associados aos grandes bancos.
De posse da referência às forças acima assinaladas, há de se acrescentar que o movimento das ruas ganhará outra direção ao serem conhecidos os resultados da eleição presidencial de outubro de 2014. A derrota por pequena margem da aliança entre forças conservadoras e mídia dominante as enfurecerá igualmente, e os articulistas dos jornais e televisões têm desde então montado um campo sistemático de ataque contra a presidenta reeleita. À crise política assim estimulada acresce a crise econômica, em que se conjugam erros da política econômica do período anterior da presidenta com as conhecidas dificuldades, que se estendem há anos, do mercado internacional. O movimento nas ruas assume outra direção: seu alvo principal, concentrando-se em São Paulo, concerne à própria presidência, configurando o que se tem chamado da tentativa de um ”terceiro turno”. E como o PT não tem a maioria nas duas câmaras, a presidenta fica na dependência das concessões que faça ao camaleônico PMDB. Na prática, temos pois uma presidência parlamentarista. Sob o estímulo da “massagem” tele-jornalística e a aflição causada pela crise econômica, a convergência das manifestações em Sâo Paulo tem criado a ideia de que o país está dividido em duas partes: o “sul maravilha” que acusa o Norte e nordeste atrasados da vitória do inimigo. (Como uma mentira muitas vezes repetida tende a se converter em verdade, não duvido que assim nos tornemos). Muito sintomaticamente, o movimento nas ruas assume agora uma atitude oposta quanto à polícia. Se antes, entre 2013 e primeiros meses de 2014, a polícia era acusada de reprimir o povo em bloco, sem distinguir os anarquistas e bandidos que ali se infiltravam, agora ela é aplaudida pelos manifestantes, e a televisão mostra policiais abraçando criancinhas.
A mudança de atitude dos manifestantes quanto à polícia não tem mistério: aqueles se declaram conservadores e a polícia não esconde sua preferência política. Como assim? Bem o diz o ex-comandante da UPP, entrevistado no livro que temos tomado como referência: nossa polícia militar mantém “um ranço da ditadura” e a criação da “UPP pretend(ia) [...] fazer um serviço mais próximo, mais sintonizado com os desejos da cidadania”. (Será que me engano em pensar que o projeto fracassou, e a manutenção do “caveirão” como símbolo da polícia expressa factualmente em favor do quê ela, de fato, atua? Que seu dar sumiço a pessoas humildes como o pedreiro que nunca mais foi visto e a acusação das torturas frequentes que comete apenas mantêm uma prática que fora usual entre 1964 e 1983).
Concluo esta apresentação de um tesouro de depoimentos com uma passagem do cronista Luis Fernando Verissimo – que ninguém acusará de financiado por algum partido político. Em crônica recente, ele transcreve passagem de entrevista do economista Luiz Carlos Bresser Pereira: “Um fenômeno novo na realidade brasileira é o ódio político, o espírito golpista dos ricos contra os pobres. O pacto nacional popular articulado pelo PT desmoronou no governo Dilma e a burguesia voltou a se unificar. [...] de repente, voltamos ao udenismo e ao golpismo”.
Só por nos obrigar a refletir sobre tudo isso e a nos fazer perceber o cotidiano que nos cerca, o livro Brasil em movimento precisa ser mantido em local que permita sua constante consulta.
sobre o autor
Luiz Costa Lima é professor emérito da PUC (RJ). Cassado pelo AI1, ensinou em várias universidades estrangeiras, como Stanford, Yale, Paris VIII, Bochum Universität, Universidad Iberoamericana (México). É autor de vários livros publicados sobre Teoria da literatura e literatura comparada. Em breve, publicará Dois eixos da linguagem (sobre o papel da metáfora ao lado do conceito).