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A modernidade urbana é o tema central dos filmes Aurora de Friedrich Murnau (1927) e Mon Oncle de Jacques Tati (1958), que retratam o vigoroso impacto das transformações urbanas e da construção da cidade moderna sobre a vida humana.

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HONORATO, Rossana. A aurora turva da vida de meu tio na cidade moderna. Uma leitura dialogada dos filmes Mon Oncle e Aurora. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 159.04, Vitruvius, mar. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.159/5466>.


A modernidade é urbana. Este é o tema central dos filmes Aurora de Friedrich Murnau (1927) e Mon Oncle de Jacques Tati (1958) que aqui se busca relacionar. Aproximadamente trinta anos distanciam essas produções cinematográficas no século 20. Ambos retratam o vigoroso impacto das transformações decorrentes da era moderna e sua projeção sobre a vida humana, polarizando estigmas que contrapõem calmaria e insegurança, encontro e dispersão, estranho e reconhecível, encantamento e alucinação, distância e proximidade pessoal, através da mediação da cidade moderna, frenesi da diversidade de oportunidades que consagra o lugar da vida urbana pós-indústria, sede por essência da circulação do capital, ímã que a tudo magnetiza ao preço do vil metal em trocos de uma avassaladora desigualdade social. Mundos diferentes, ainda que não necessariamente desconectados territorialmente, integram a dicotomia cidade-campo por eles representada.

Cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

Em Aurora, produção norte-americana do alemão Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), à vida urbana se alterna o modo de vida campesina de uma pequena família na pacata rotina doméstica em sua fazenda, longe do burburinho da distante Tilsit (2), a grande cidade. O fazendeiro, pai da família, vê- se repentinamente motivado a uma inusitada circunstância de experienciar uma vida de fora da pasmaceira de seu cotidiano.

A trama integra o conflito por ele vivido entre os limites e segurança da vida no campo e um idealizado e incerto porvir da ofuscante cidade imaginária. A atração é fruto de sentimentos que afloram ao conhecer uma estrangeira, a “mulher da cidade”. Contraponto ao reconhecível, a expectativa do surpreendente, de um ‘verdadeiro’ modo para viver a vida faz da paixão súbita a medida de valor entre a permanência e a mudança. A aposta do encantamento dessa relação traduz- se no amor à cidade, ao desconhecido que é a nova cidade, a um modo de vida dinâmico. Um mundo de ofertas de realização humana.

Cena de Aurora, filme de de F.W. Murnau
Foto divulgação

O fazendeiro hesitante entre a rotina e o imprevisível (sua condição de esposo e de pai é recente – o casal tem um filho bebê) confunde-se com o desejo de deixar seu presente para o passado e prosseguir com a sedução da cidade, a mulher fagueira, ousada, empenhada por uma inovada moral citadina, determinada a eliminar barreiras no caminho, que lhe propõe a simulação da morte acidental da esposa. Um idílico passeio de barco no rio que margeia a fazenda da família constitui o cenário do plano orquestrado.

No filme Mon Oncle, a imagética reconstitui o modelo da cidade industrial, com o imperativo aporte da tecnologia da automação, a intrínseca contribuição da arquitetura e do urbanismo modernos e as consequências inexoráveis à conformação da pirâmide social, envolto em relações sociais pautadas pela instantaneidade, pela fragmentação e pela teatralidade, padrões de comportamentos da classe média urbana. Paradigmas constituintes das novas trocas humanas tanto no espaço público, a rua –“lugar em que certamente estranhos irão se encontrar (3) –, quanto no espaço privado, a moradia.

Nas franjas da zona urbana habitada pelas classes sociais abastadas, a vida vicinal em cortiços decadentes expõe as pungentes carências materiais; contudo, é o calor humano que se exala candente no cotidiano provinciano. A proximidade posta pela contiguidade do adensamento demográfico e da mistura de usos, tão característicos do subúrbio, dá lugar à espontaneidade no mais das vezes ingênua e mesmo alienada da precariedade da condição de viver que lhe recai no dia a dia.

Casa Arpel, protótipo da casa modernista, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

No filme de Tati, a habitação moderna é o ícone falante que impõe outra fruição da “intimidade” do lar. A ordem espacial implica um ajustamento corporal minuciosamente prescrito no projeto de sua arquitetura. E é esse rígido layout, curiosamente formulado pela fluidez de linhas sinuosas, mas limitado por ângulos retos, que determina a administração do lar para a dona da casa.

Internamente, o design arrojado em linhas e formas (despreocupado quanto à acomodação corporal) e a automatização dão um tom enxuto e clean – suficiente – ao mobiliário do habitar moderno.

Deslumbrada com a prometida liberdade da “máquina de morar” (4), a dona da casa convence-se de sua nova competência: assegurar tão somente que as atividades humanas, beneficiadas pela revolucionadora ordem espacial, sejam efetivadas, cabendo a ela apenas o zelo para com a sua aparência, o asseio e o polimento, refletores contínuos da última geração do novo, testemunha da vanguarda do tempo.

Casa Arpel, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

Comandos manuais à distância prometem a senhora Arpel disponibilidade de tempo em seu viver que a livrarão do trabalho doméstico e viabilizarão uma vida voltada às horas livres em uma casa de prontidão para receber visitas e realizar recepções sem sobrecargas; que a levará a

prescindir inclusive de uma auxiliar doméstica. A casa-máquina faz tudo. À empregada, um processo de adaptação ao novo modo de servir à família moderna é formulado: contratos especiais para fins extraordinários à rotina.

Sofisticação sem medida nem a renda familiar permitiria facultar. A aparência simula um possível no impossível orçamento doméstico. Uma fonte desenhada em forma de golfinho adorna o jardim, ornamento tradicionalmente próprio do espaço público em equipamentos de uso coletivo, e é a representação central do poder aquisitivo de uma classe média em ascensão de que Jacques Tati tira proveito.

O agenciamento do jardim dos Arpel, de layout acurado, concebido sobre os recuos legais de construção, mas que se farta à frente da edificação, delimitam a ocupação do lote e tem o ponto focal na consumação do sonho familiar: a fonte para chamar de sua. Contudo, o uso do equipamento deixa entrever o custo de funcionamento diuturno; o consumo de água e de energia severamente controlado pela gerente da casa.

Casa Arpel, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

O toque sonoro do recurso instalado no muro frontal, a campainha eletrônica, alerta o instante de ligar o jorro d’água à exibição do visitante. A vizinhança curiosa sobre a mais moderna casa da rua não pára de querer conhecer a sua fonte. Repetitivas e saltitantes corridas levam a dona da casa até o acionamento do controle que entreabre o portão, cuja visão permite à distância checar o perfil de quem bate à porta. A identificação imediata enquadra ou não aqueles a quem a fonte deve deslumbrar. Em se tratando de um familiar ou um serviçal, é desligada sem vexame por medida de economia.

A residência Arpel é literalmente coisa de cinema. Casa-referência para ser fotografada por revistas de arquitetura, para isso devendo cumprir seu desígnio de manter-se impecável, ofuscante, sem um alinhamento do layout desacatado.

A mãe de família, ela mesma mais uma máquina, robotizada pelas novas exigências da morada encomendada para poupar-lhe demandas exaustivas de arrumação ordinária daquela vivida na residência pré-moderna, repete mecanicamente o aparentemente pouco que lhe compete. Em roupas de dormir e com bobs enrolados nos cabelos, uma flanela à mão, está sempre apta a polir qualquer opacidade sobre as superfícies brilhantes dos materiais construtivos da última geração, como o vidro das esquadrias ou o aço polido ou pintado, da maçaneta da porta à lanternagem do automóvel. O transtorno corporal inconsciente decerto anuncia a envergadura a que os tiques nervosos e as lesões corporais ascenderão no universo da medicina para tratar das sequelas dos esforços repetitivos, imperativos da contemporaneidade.

O mero artigo doméstico – o pano de polimento, usado e reutilizado – entretanto não é dotado de capacidade autolimpante, nem parece ser lavado, tampouco se trata já de item descartável. O hábito adquirido nem dar a notar à dona da mão frenética que precisa usá-lo diariamente. Em um momento, transformado em lenço, adereço do vestuário próprio para saudações à distância, na cotidiana despedida do marido e do filho na saída para o trabalho e a escola com o carro da família, abanado exala pó em abundância, anunciando uma poluição urbana vigorosa de efluentes atmosféricos dos motores de combustão. A cena retrata com simplicidade o real lubrificante do brilho que ofusca a modernidade.

Uma sátira sagaz que Jacques Tati emprega como um fio que costura a sua trama; a própria casa Arpel foi encomendada especialmente para o filme e executada em tamanho natural dentro do estúdio de gravação com a sobreposição intencional de todos os clichês da arquitetura moderna.

Conflito com que se deparam o filho único dos Arpel, Gérard, e seu tio, Ms. Hullot. Cúmplices sentimentais de um mesmo estranhamento anti a teatralidade com que foi determinado o uso da nova morada.

A criança sozinha, sem amigos com quem brincar na vizinhança e nem espaços adequados para as estripulias próprias de uma infância saudável, conta para si com o seu quarto, cela concomitante de dormir e de estudar sob a permanente vigília da mãe, que lhe deseja e manifesta filho exemplar.

Da criança Gérard, sempre vestida à maneira de um adulto, a mãe espera a tradução impecável da educação moderna, em que a obediência e a passividade, requisito introduzido na esfera doméstica para o proveito do capital, não devem demandar ocupação extraordinária que lhe tome o tempo de cuidar do cabelo, tampouco comprometa a prontidão da arquitetura de vanguarda de sua casa.

Gérard mais parece um elemento de composição da habitação. Um filho não faltaria à família perfeita, próspera, e da qual sairá herdeiros. Mais do que um talvez comprometesse o sonhado projeto de consumo do casal Arpel e seu desempenho social. Bem-sucedido, seu pai é gerente da fábrica Plastac, uma pequena indústria automatizada de tubos para a construção civil, situada próxima ao bairro onde mora seu tio, à margem da cidade que cresce para longe da zona suburbana. Distância aparentemente inexistente entre o subúrbio e a fábrica é demonstrada pelo trajeto quase instantâneo, a pé ou de bicicleta, por que se desloca Ms. Hullot. E, não à toa, a fábrica é especializada na produção de um segmento da indústria da construção civil.

A cidade se moderniza, cresce sem parar, num rito sumário de limpeza da paisagem moderna de quaisquer traços do antigo. Passado esse representado pelas carcomidas edificações da zona central da cidade, periferia em que se situa o cortiço em que mora Hullot. Nos termos de David Harvey, a seção industrial, por sua vez, relata o estágio do capitalismo que avançará para a era da acumulação flexível (5).

Gérard com seu tio Hullot em passeio pelo subúrbio da cidade, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

O grande tio proporciona a Gérard hiatos de salvaguarda de sua infância das limitações postas pelas regras da classe social em que se insere. O garoto transpassa a normativa domesticadora através dos meios mais corriqueiros a uma criança que ainda parece saudável: a traquinagem, o fingimento de dedicação aos estudos entediantes (artifício que é motivo de exibição da mãe orgulhosa), as fugas de casa, maquinadas com a ajuda do tio, esse companheiro predileto em quem encontra afeto e proteção na mão com que o segura e o conduz a transitar pelo subúrbio, zona da cidade em que pulsa vitalidade, o seu verdadeiro parque de diversões, onde o reino das brincadeiras infantis se faz nas ruas, com as mais salientes e desassistidas crianças do bairro de residência do tio, em meio à feira aberta, à praça fronteiriça ao cortiço onde Ms. Hullot é conhecido de todos e com quem mantém laços vitais de vizinhança.

Para a satisfação de Gérard, cabe ao tio (“um sem família e desocupado”) pegá-lo diariamente na escola e levá-lo para casa em seu próprio veículo, a velha bicicleta.

Dois seres ligados por laços parentais e deslocados dos novos tempo e espaço. Hullot, representado pelo próprio Tati, é o elo para Gérard anti o desligamento desses dois mundos opostos.

Habitação coletiva em que mora o senhor Hullot, no subúrbio da cidade, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

Se em Aurora, o modo de vida é narrado por essa oposição radical de espaço e tempo –, as horas parecem não passar na calmaria da vida campesina e é na cidade que tudo acontece como que simultaneamente –; em Mon Oncle, ao contrário, é a própria cidade que revela sua (de)composição social em diferentes zonas, distintamente expressas na moradia coletiva degradante, e a falta de infraestrutura que lhe ladeia, e pelo modo de vida estigmatizado pelo acesso ou pela falta (sequer de noção) a benefícios promovidos pela desenvolvimento científico e tecnológico que geram o crescimento urbano desenfreado.

Se tanto no campo quanto no subúrbio, as horas e o cotidiano parecem não se alterar, na cidade, em Aurora vigora uma sensação de simultaneidade entre instante e lugar, em que a rua, o estar público, é impregnada de um ritmo alucinante que passa a idealizar o modo da vida humana. Em Mon Oncle, o mesmo espaço, a cidade, notabiliza a segregação espacial de suas diferentes zonas em que tecnologia de ponta e degradação habitacional constituem a cidade que cada vez mais se especializa sobre a desigualdade social. Retrato mais adequado não há para amparar a sofisticação do velho modo de produção capitalista da era industrial em habilitar-se para potencializar o futuro, que já se antevê voraz em selvageria. A distinção de classes sociais se faz pelo acesso ou não à inovação, ao desenvolvimento científico e tecnológico e os benefícios emergentes da automação de bens de produção (na indústria), de circulação (o automóvel moderno) e de consumo (a casa moderna e os recursos e utensílios domésticos da “nova máquina de morar”).

No estratagema de Jacques Tati, o sucesso do cunhado nem parece perceptível para Hullot, envolto em uma atmosfera que o distancia de qualquer deslumbramento diante da vida moderna. O que lhe é atribuído como insucesso tem notoriedade no ritmo com que vive sem pressa o próprio cotidiano modesto. As novidades da modernidade não lhe causam reação, senão pelo estranhamento com que se vê às voltas na casa de sua irmã, a Sra. Arpel, ao ser solicitado a ir à cozinha e atender-lhe um pedido. Nem carece ressaltar o que daí se desenrola, dada a completa falta de intimidade do irmão com outra máquina que não seja uma bicicleta.

Um quieto passageiro do tempo, senhor Hullot sequer parece esforçar-se a adaptar-se ao frigir dos novos tempos. Suas trapalhadas no trabalho na fábrica, emprego para ele batalhado pelo cunhado, relembram o genial operário descompensado de Charles Chaplin em Tempos Modernos e uma trajetória de instabilidade no trabalho. Sua inaptidão é satirizada por uma espécie de dislexia no tempo, ou do tempo. Tudo que lhe vem às mãos quebra-se. A modernidade sobre a qual pisa se desmancha, tudo próprio daquela produção veloz não oferece resistência ao tempo (uma estratégia cada vez mais aprimorada pelo capital). A bizarra cena do filme em que a família Arpel recepciona convidados, a pureza de uma curiosidade infante faz Hullot estourar a tubulação de abastecimento da fonte ornamento, quando, cautelosamente, titubeante, observa e tenta identificar sobre qual lajota de concreto pisar). Um instante que alinhava um fio à máxima do materialismo do velho Marx: Tudo que é sólido se desmancha no ar. Um vexame à família Arpel se desenrola.

Em Aurora, a magia da cidade explode: ruas comerciais, tráfego intenso e desordenado de veículos de quatro rodas, cenas decisivas, como a memória guardada por meio de fotografias, o usufruto do melhor restaurante, a diversão no parque de diversões, onde luzes e um clima de festa e de felicidade fazem o casal campesino rememorar a prova do mel da lua de seu casamento, após o remorso do marido levá-lo a reparar-se diante do risco de perda do elo familiar. O preparar-se para a festa no salão de beleza por que passa o casal, leva-o a vivenciar a cena de ciúme ao revés da recentemente vivida no campo... Desta feita, é no marido que se desperta o ciúme da esposa ao vê-la ser abordada por um galanteador que, instantaneamente, lhe oferece um buquê de flores, diante do que o marido reage com vigor antecipando-se ao cavaleiro que corteja a sua esposa demarcando o seu domínio. A cidade moderna deixa entrever que não há nela lugar para o conservadorismo, para a tradição.

O beijo de parar o trânsito, cena de Aurora, filme de de F.W. Murnau
Foto divulgação

A cena idílica do casamento na igreja lhes remonta a cerimônia do próprio matrimônio e proporciona ao marido o enlevo do apaixonado laço sacramental. Um beijo teatral que literalmente pára o trânsito finaliza a cena, sem que nem se faça por eles notar ainda que em meio ao espaço público e sob o som de buzinar de motoristas estressados em seus veículos.

O fazendeiro se defronta com o desejo de recomeço. As luzes da cidade que o inebriaram de paixão o despertam do encantamento fugaz que quase o tomou da segurança do que arriscou deixar para trás, o tesouro que começou a construir no campo, sua propriedade, a rotina de uma vida sem sobressaltos, o bastante para uma vida de felicidade que pode ser revigorada por passeios ocasionais à cidade grande com a própria família. O filho deixado na fazenda é o farol que ilumina o aceno de que é lá que a vida se fará plena, sem o apelo de uma vida que corre, mas não se vive.

A cidade grande, as luzes noturnas e o transporte coletivo, cena de Aurora, filme de de F.W. Murnau
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A opção dos cineastas Murnau (Aurora) e Tati (Mon Oncle) torna emblemáticas as cenas de abertura dos filmes. À calmaria de Aurora, sobrevém o impacto de uma demolição em Mon Oncle. Neste, a câmera aberta fecha em close no qual uma grua promove destroços. Surpreende a concepção cinematográfica por condensar na própria cena de abertura o anúncio da ficha técnica do filme. Uma costura de imagens sensacional. Ao passo em que edifícios se encontram em demolição, dá a imaginar se ao autor não coube uma intenção sobreposta de aludir ao próprio modo de produção de filmes que se transmuta na modernidade, ao agregar o novo equipamento, a grua, um dos principais maquinários da construção civil até os nossos dias, com seu arsenal de possibilidades aditadas ao vasto andaime da elevação (social) à altura celestial. Um limite imensurável para os novos tempos da produção artística munida de um equipamento capaz de constituir o novo arsenal industrial da própria cinematografia.

À cena ainda cabe aludir à impressão de que o que se demole é um velho cinema da cidade, de arquitetura superada aos novos templos ou a dar lugar a novos usos que substituem o lugar dos sonhos e da meditação pelos de premência material para a circulação da moeda. A demanda aponta a necessidade de vias, ruas, estradas por onde veículos precisam trafegar deslocando mercadorias e trabalhadores-mercadorias.

O advento da indústria, a revolução imprimida pelo novo modo de produção capitalista está conceitualmente representada na imagem das cidades em oposição à sua gênese. A busca de mercados para a circulação de um mercado que, hoje se visibiliza, também se fará em tempo comprimido para além do espaço geográfico. O capital faz da rua o seu signo por excelência, a nova base material que configura o território urbano moderno segmenta funcionalmente o território: habitação, trabalho, mercado e lazer do centro da cidade, lugar da troca, e reloca progressivamente as moradias de classes média e alta para zonas periféricas longe do burburinho do centro de troca, configuram o locus da grande cidade entrecortada de vias e desenhada à maneira de um tabuleiro de xadrez, um grande jogo de disputa pelo sucesso privado que exige argúcia e institucionaliza na modernidade o velho método da trapaça para a exibição de méritos de indivíduos socialmente adaptados.

As duas abordagens fustigam a reflexão de quem assiste aos filmes com a previdência de tecer teias entre eles. Produzidos entre a grande crise econômica mundial do final dos anos 20, que desaguou na 1ª Grande Guerra, e a superação do modo de produção pós-fordista que incrementa a vida moderna a partir da segunda metade do mesmo século prenunciam o ‘grande olho’ visionário de George Orwell em seu emblemático livro “1984” (1948), que projetou uma conjuntura social 40 anos adiante, notoriamente vigorosa na sociedade contemporânea global.

O imaginário que ambos os autores das tramas parecem dispostos a consolidar se assenta em referências da modernidade em um repertório de imagens que enquadram cada qual em uma “história visual”. Uma iconosfera, como tratou o estudioso Ulpiano Menezes – “a dimensão visual presente no todo social [...] um quadro de referenciais, problemas e instrumentos conceituais e operacionais (inclusive para cruzamento de dados), relativos a três grandes feixes de questões” – um visual, um visível e uma visão do que se busca representar “uma rede de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage” (6).

Casa Arpel, cena de Meu Tio (Mon Oncle), filme de Jacques Tati
Foto divulgação

Com base nesta concepção, é possível correlacionar narrativas constantes da “história visual” de cada filme. Fontes, paradigmas ou estigmas da modernidade que confrontam imagens como artefatos na consumação do que entre elas pode identificar o sentido de um rumo que esse pesquisador denomina “dimensão sensorial da vida social” (ibid.), referendando uma visualidade que recusa a exclusividade da descrição linguística, resiste à subordinação de uma rubrica de discursividade, reivindica seu próprio método de análise como mediação de uma leitura capaz de reconhecer que a imagem como uma narrativa em si da vida social elege signos de uma nova organização social no tempo e no espaço (ibid). O visível como a esfera das visibilidades e invisibilidades, como sistema visual de práticas individuais ou coletivas, que identificam uma nova sociedade.

Valores, status, crenças, a remodelação da interação social e uma espetacularização da convivência que alterna atores e plateia, sem os quais não há lugar para a teatralidade posta pelas novas práticas sociais dos tempos modernos. Critérios que passam a normatizar o imperativo da ostentação, ou do recolhimento daquele que nada tem para ostentar, de visibilidades ou invisibilidades da vida moderna (op. cit., 36).

Como o dito famoso de Paul Klee de que a arte não reproduz o visível, mas torna visível, Menezes remonta a uma assertiva: “os objetos sociais nos inventam. As imagens, portanto, participam da nossa ‘instituição’ como pessoas sociais”. A imagética dos filmes, ao passo em que conforma meios, signos, modalidades da natureza do olhar que olha, segue abrindo janelas a narrativas...

notas

NA1 — Exercício elaborado no Curso “Representações, imaginários e imagens da cidade”, ministrado pelo professor doutor Robert Moses Pechman em 2014 e revisado em 2015.

NA2 — fichas técnicas dos filmes: Aurora, direção de F.W. Murnau, William Fox, EUA, 1927. Roteiro de Carl Mayer (baseado no romance Die Reise Nach Tilsit / Viagem a Tilsit, de Hermann Sudermann). Música de Hugo Riesenfeld. Montagem: Harold D. Schuster. Elenco principal: George O'Brien, Janet Gaynor, Margaret Livingston. / Mon Oncle, direção de Jacques Tati, 120 min., França, 1958. Roteiro de Jacques Lagrange, Jean L’Hote, Jacques Tati. Música de Barcellini Franck, Alain Romans, Norbert Glanzberg. Elenco principal: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola, Adrienne Servantie, Alain Becourt.

1
Exercício elaborado no Curso “Representações, imaginários e imagens da cidade”, ministrado pelo professor doutor Robert Moses Pechman em 2014 e revisado em 2015.

2
O filme Aurora foi baseado no romance de Herrman Suderman, “Viagem a Tilsit” – (ver Olavo de Carvalho nas referências eletrônicas).

3
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

4
Expressão cunhada a partir das edições dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs – evento concebido por um grupo de arquitetos expoentes internacionais do século 20 e liderado pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier (Charles-Edouard Jeanneret-Gris – 1887-1965) com o fim de discutir os rumos dos vários domínios da arquitetura e do Urbanismo.

5
HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e M. Estela Gonçalves. São Paulo, Loyola, 1993.

6
MENEZES, Ulpiano T. B.. Rumo a uma “história visual”. In: MARTINS, José de S. et. alii. (Orgs.). O imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru, Edusc, 2005, p. 35

sobre a autora

Rossana Honorato é arquiteta urbanista, mestre em Ciências Sociais (UFPB) e professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba e doutoranda do IPPUR – Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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