Pintor desde cedo, mas arquiteto de formação, Sérgio Ferro inicia sua carreira de professor na FAU-USP em 1962 como assistente de Flávio Motta, a quem dedica este livro. Nessa década, realiza projetos experimentais em arquitetura junto com Rodrigo Lefèvre e Flávio Império; organiza a mostra Propostas 65, para a qual redige o manifesto “Vale tudo”, por um “novo realismo” que captasse a “irracionalidade de nosso tempo”; e expõe em Opinião 65, um marco na arte brasileira ao romper quase duas décadas de hegemonia da abstração. No ano de 1967, em novo manifesto, “Os limites da denúncia”, considera que mesmo uma pintura crítica pouco poderia diante da ditadura. Preso pelo regime militar em 1970, monta no presídio Tiradentes um ateliê com mais dez presos. Exilado na França desde 1972, torna-se professor de História da Arte e da Arquitetura na Escola de Arquitetura de Grenoble — e continua pintando, expondo e escrevendo.
Coerente com esse percurso, ele abre esta história da arte de Dürer a Velázquez com o lema de Alberti: “Falo como pintor”. O argumento de base é claro. Porque mantêm a mais intensa relação e unidade entre concepção e execução, como prática concreta, as artes plásticas são, dentre todos os trabalhos, aquele que melhor encarna o que possa ser o trabalho livre (em oposição ao trabalho alienado que o capitalismo progressivamente impôs à massa dos trabalhadores).
Ainda que tomada como um contraponto à produção da arquitetura, com sua cisão estabelecida entre projeto e canteiro — tema abordado no livro Arquitetura e trabalho livre —, a história das artes plásticas também é permeada de contradições. A primeira delas é a transição do artesão ao artista como indivíduo que prepara sua autodeterminação em relação às corporações de ofício e aos primórdios do assalariamento. Enquanto o artesão reproduz um saber de ofício, para o artista é a atividade do espírito, o concetto, que comanda o fazer. Por isso, o artista tem que modificar a prática convencional, com a ostentação e individualização da perícia técnica, a descoberta de novos materiais (como a tinta a óleo), o realismo anatômico, a elaboração do espaço fictício perspéctico etc.
O embate do artista com o artesão se resolverá plasticamente de três modos: com o virtuosismo técnico; com a denegação ou o “liso” (apagamento da marca de execução, miragem da janela albertiana) e, por fim, o non finito e a sprezzatura (teatralização do gesto técnico, demonstração da fatura). É assim, na esfera do trabalho, que surge a disputa das artes com o sistema. Ao mesmo tempo, a escolha dos temas deve garantir a boa aceitação dos mecenas, príncipes e papas, fato que permite driblar a nascente lei do valor trabalho, adotando a figura retórica da recompensa monetária pela dádiva do gênio. A liberdade é bem remunerada porque, como qualidade escassa, tem a virtude de criar valores extraordinários — o que será cada vez mais evidente com o aparecimento do mercado da arte.
É esse movimento contínuo de insubordinação e subordinação, contra e a favor da ordem, com resoluções plásticas, narrativas, espaciais em tensionamento recíproco — revelando distintos graus de consciência dos artistas em relação a seu fazer e a seu lugar no mundo —, que constitui a história narrada por Sérgio Ferro neste Artes plásticas e trabalho livre. Mesmo mutilada ou deformada, a liberdade existente no trabalho de arte é a melhor referência para imaginar a superação do trabalho social alienado que o capital impõe.
nota
NE — texto da orelha do livro
sobre o autor
Pedro Fiori Arantes é professor do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.