A primeira visada é poderosa.
A chegada aos amplos salões do sexto andar, ocupados pela mostra Latin America in Construction: architecture – 1955-1980, não lembra as exposições mais sofisticadas do MoMA, com paredes cuidadosamente diagramadas, luz baixa, tons refinados e curadoria altamente estetizada que muitas vezes associamos às realizações do museu novaiorquino. A aproximação à exposição latino-americana toma o visitante com uma sensação de força, de vigor. Logo na entrada, sete telas com projeção simultânea precipitam sobre o público as imagens e sons de um tempo de intensa esperança no desenvolvimento. E o projeto, a arquitetura e o planejamento das cidades vêm animados de um élan épico.
As divisórias internas de dry wall não chegam ao teto alto. A feia estrutura interna de aço galvanizado foi deixada à mostra acima da porção fechada pelo gesso acartonado. Sobre as paredes foram dispostas fotografias, preciosos desenhos originais e cópias heliográficas ao lado de telas que mostram slides e trechos de filmes sem som. As molduras das peças expostas não foram uniformizadas. Mais ao alto, aqui e ali, outros filmes são projetados diretamente na parede. No meio do caminho maquetes de variadas escalas cumulam o espaço. Em tudo a expografia parece reafirmar o título ‘em construção’ que fornece a chave proposta pelos curadores para deslindar o subcontinente.
A primeira “construção” curatorial da América Latina que nos é proposta vem da comparação de duas grandes universidades: a da cidade do México e a de Caracas. A simples justaposição desses projetos – sem que texto algum seja necessário – articula pontos distantes da América Latina. Patricio del Real, um dos quatro curadores da mostra, me explica que o desenho de 1947 feito por Teodoro Gonzáles de León para a Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM é uma das preciosidades expostas. “O plano era recorrentemente citado na bibliografia, mas não tínhamos certeza de que o risco existisse realmente”. Foi “descoberto” nos arquivos da universidade e está disposto lado a lado com o plano de conjunto de Mario Pani e Enrique del Moral (de 1947-54). Ele permite entender a gestação das ideias que levaram à construção da maior universidade latino-americana.
Mas a mesma sala exibe o projeto de 1960 elaborado por Raúl Carlos Villanueva para a Universidad Central de Venezuela em Caracas com a famosa Aula Magna energizada pelas escamas acústicas coloridas de Alexander Calder. Outros exemplos poderiam ter sido mencionados de como as grandes universidades latino-americanas foram pensadas como miniaturas ideais de cidades modernistas – Universidade do Brasil, São Paulo, Santiago, Havana... Mas os dois exemplos bastam para introduzir a magnífica sala seguinte em que se vêem fotos, planos e modelos da concepção e da construção de Brasília. Logo vemos que os curadores não estavam interessados apenas em justapor dois bons exemplos de universidades, mas vislumbravam uma ideia comum de cidade moderna cujo paroxismo seria alcançado com a nova capital brasileira. Uma idéia de sistema se insinua na aproximação desses exemplos. E é logo confirmada pelas anotações manuscritas de Raúl Villanueva para suas aulas na universidade venezuelana que a curadoria datou em cerca de 1965. O professor usava então a análise de Brasília como matéria de curso para seus alunos em Caracas.
Pouco adiante o visitante brasileiro acha imediata familiaridade em bela perspectiva aquarelada de Walter Weberhofer Quintana e José Alvarez Calderón para a sede da Companhia de Seguros Atlas em Lima, Peru. O projeto de 1953 (a perspectiva é de 55) mostra uma fachada com brises horizontais à brasileira com pilotis de pé-direito triplo aberto para a rua com marquises e balanços. O jeitão da fachada evoca o espírito da melhor verve brasileira da geração dos irmãos Roberto, de Álvaro Vital Brasil etc.
Na sala seguinte vê-se o projeto de Francisco Méndez Labbé inscrito no concurso para a escola naval de Valparaíso, no Chile. O conjunto, previsto para a costaneira sinuosa sobre o Oceano Pacífico, não foi construído. Seriam cinco edifícios longos de cerca de 300m de comprimento à meia encosta de um promontório debruçado sobre o mar. Os ventos fortes no local seriam modulados por uma cobertura curva com aberturas que foi desenhada como a asa de um avião e estudada em laboratório. A conexão possível que meu olho brasileiro propõe é com os conjuntos residenciais cariocas de Affonso Eduardo Reidy para o Pedregulho e a Gávea em que a forma alongada dos conjuntos se acomoda à topografia. Mas também está relacionada diretamente com o projeto vizinho na parede do MoMA assinado pelo Instituto de Arquitectura da Universidad Católica de Valparaíso para a Avenida del Mar na mesma situação e que, segundo Patricio del Real, foi elogiada em carta por Lucio Costa como exemplo muito importante que devia ser levado em consideração.
Também não pode ser ignorada a reincidência dos clusters de pilares que concentram a estrutura de edifícios altos no andar térreo. O modelo foi inaugurado pelos pilares em V de Oscar Niemeyer e Hélio Uchoa no Hospital da Lagoa no Rio de Janeiro (1952-58). O hospital carioca não figura na exposição, mas pilares conjugados aparecem no Edifício SENA (Servicio Nacional de Aprendizaje) de Bogotá, Colômbia projetados por German Samper Gnecco em 1960.
Da mesma maneira, os pilares e a solução da cobertura unificada do edifício CEPAL (Comisión Económica para América Latina), projetado por Emilio Duhart em Santiago do Chile em 1962, lembram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – construída entre 1966 e 1969 conforme projeto de Villanova Artigas. A icônica faculdade paulistana tem, esta sim, boa presença na exposição, com direito a desenhos e uma bela maquete partida ao meio.
A presença da arquitetura brasileira é central na exposição. É o Brasil que permite articular a experiência moderna na América Latina. Ao descobrir isso, a gente se lembra que uma bela maquete do edifício do Ministério da Educação (o antigo MESP) fora disposta na entrada da primeira sala. O edifício foi inaugurado em 1946, um decênio antes da data inicial do tempo da mostra. Mas foi essa iniciativa pioneira que inaugurou o sistema de pensamentos e práticas que articula o discurso expositivo.
Alguns modelos gigantescos dispostos no meio dos espaços fluidos acrescentam interesse e potência ao discurso da mostra. Uma descomunal maquete das Torres del Parque de Rogelio Salmona em Bogotá (1964-70) está disposta junto à parede do fundo, mas já instiga a visita desde que começa a se insinuar entre as brechas das divisórias. O enorme conjunto em altura que domina a paisagem da capital colombiana marca forte presença vertical nas salas da mostra novaiorquina. Já o modelo de estudo para as Escuelas Nacionales de Arte em Havana de Vittorio Garatti, Ricardo Porro e Roberto Gottardi chama atenção por ser o oposto disso: discreta e delicadíssima intervenção, organicamente integrada à topografia, à sombra de palmeiras e cujas curvas se confundem com as da paisagem.
Mas de todas as maquetes a mais impressionante é a do Bank of London and South America projetado por Clorindo Testa à frente do coletivo SEPRA na capital Argentina. A maquete grandiosa foi seccionada para que os visitantes se deixem instigar pelas curvas de concreto aparente e aveludado que combinam sutileza e força bruta; crueza e refinamento. O objeto tem na exposição a presença de uma aparição fantasmática. De certa maneira ele contracena com a FAU paulistana, as torres colombianas, o MASP e o SESC de Pompéia de Lina Bo Bardi, para definir um modo próprio do brutalismo latino-americano. A recusa do revestimento deixa de ser simples expressão de um materialismo moralizante e adquire uma força poética que não teve paralelo fora do subcontinente.
As formas cavernosas do monumental banco portenho hipnotizam os visitantes. A qualquer momento há um amontoado de cabeças excitadas comentando o modelo.
A exposição foi denominada Latin America in construction e ganhou um subtítulo com duas datas limite. O ano de 1955 parece óbvia referência à exposição Latin American Architecture since 1945 que foi exibida no MoMA naquele ano. Já não é tão fácil adivinhar o que define o ano final de 1980. Sim, é verdade que o período completa 25 anos – um quarto redondo de século. Mas essa explicação aritmética não combina com a vontade de interpretação que comanda o libretto da mostra. A partir de 1980 avançou a redemocratização da América Latina, mas as economias estavam muito enfraquecidos e passaram a prevalecer políticas de contenção das despesas de Estado. O pragmatismo econômico talvez tenha sufocado a pujança que anima a exposição. Por outro lado, um modismo pós-moderno proliferou a partir dos Estados Unidos e da Europa. Formalismos prontos em apropriação comercial tornaram endêmica – do Rio Grande à Terra do Fogo – uma arquitetura vulgar e emasculada. Idéias importadas foram aplicadas de modo acrítico na América Latina. O fim das ditaduras teve um custo econômico elevado e seu fim veio acompanhado de grave crise econômica de norte a sul com inflação desenfreada que, por mais de década, inviabilizaria os grandes projetos. Uma era de crítica ácida substituiu a idade da invenção As realizações modernistas foram recriminadas seus criadores se viram demonizados. A desconfiança devorou a esperança. O planejamento entrou em crise e morreu.
A última sala exibe projetos e realizações ‘de exportação’. Uns poucos casos em que parece que o modernismo da América Latina despertou interesse fora de casa. Foi uma tentativa de disfarçar o fim do sonho. Nós sabemos que a sequência da história da arquitetura latino-americana – depois de 1980 – é bastante deprimente. Mas o gosto final que persiste longamente na boca após a visita é muito bom. Entre 1955 e 1980 os curadores redescobriram um continente rico e ousado. Nenhuma outra região do nosso Planeta testemunhou tanta experimentação em arquitetura, construção e projetos urbanos nesses 25 anos. Nem nada parecido. Passado o susto do imediato pós-guerra, o Continente se converteu no palco de um processo contínuo de urbanização. O sentido de progresso tomou conta de corações e mentes. Com esse instalou-se a industrialização. E de tudo isso a arquitetura moderna se afirmou como símbolo e instrumento.
No ano inicial desse período, o MoMA exibiu uma mostra de arquitetura latino americana sob a batuta do crítico e historiador da arquitetura Henry Russell Hitchcock a que Barry Bergdoll chamou de ‘relatório fotográfico’. Naquele tempo o Museu contratou o fotógrafo Soichi Sunami para percorrer o continente registrando a arquitetura moderna em belas imagens. As fotografias P&B sobre painéis rígidos foram coladas diretamente sobre as paredes coloridas do MoMA e constituíam um esforço para enunciar um estilo latino-americano moderno. Nisso ela seguia o modus operandi de Hitchcock. Em 1932 ele e Phillip Johnson tinham montado no museu a famosa mostra International Style que pretendeu formular a gramática de um novo estilo moderno num mundo sem fronteiras. O Mundo de Johnson e Hitchcock em 1932 não incluía a América Latina. Ao material que reuniu em 1955, Hitchcock batizou de “Arquitetura latino-americana”. Os curadores da mostra em exibição foram mais prudentes e evitaram adjetivar o conjunto. Preferiram falar de uma América Latina que se constrói.
A mostra latino-americana de Hitchcock não tinha desenhos, documentos, filmes. Era uma coleção de imagens exteriores de edifícios fotogênicos construídos nos 10 anos anteriores. Pois cerca de 10 anos antes o Museu expusera outra coleção de imagens arquitetônicas: a famosa mostra Brazil Builds, organizada por Phillip Goodwin e com fotos de Kidder Smith. O impressionante é que essas três exposições constituem a totalidade do que o MoMA jamais exibiu de arquitetura na América Latina.
Agora mais de 500 itens foram trazidos de 11 países para abarrotar as salas luminosas do sexto andar do santuário da arte moderna mundial, no número 11 West da rua 53 em Manhattan. No meio do labirinto de divisórias as paredes de gesso acartonado não chegam ao teto e revelam sua intimidade construtiva. O conjunto parece um galpão de obra em plena construção. As transparências e a fluidez dos espaços permitem a quem chega antever o que vem pela frente. E faz o visto ressurgir e precipitar-se novamente sobre o visitante magnetizado. Não há um percurso único, mas uma construção aberta e inacabada. Visões sobrepostas e simultâneas que não se fecham em si, que não se resolvem. A estrela não é a museografia. O importante não parecem ser nem mesmo as imagens e documentos. O que a exposição inteligentemente põe em construção é a idéia positiva de futuro que se aloja por trás das ousadias projetuais.
Uma linha do tempo desenhada na parede amarela do fundo da exposição dá conta dos eventos históricos extra-arquitetônicos ao longo dos 25 anos. Foi riscada lá no alto, quase fora do limite visual da mostra, pairando sobre as iniciativas de habitação social. Essa cronologia mostra com sutileza a ascensão e queda de ditadores e regimes. E assim, habilmente exime a exposição de enfrentar essa realidade espinhosa. Pois aí está, justamente, uma das operações chave que permitiu revelar a força do conjunto exposto: ignorar as ingerências políticas, as cores dos regimes e os horrores, não pequenos, das ditaduras. O que fez revelar a força da arquitetura foi pôr entre parênteses os regimes e as tiranias oscilantes entre frágeis projetos de democracia e centrar as objetivas no projeto e nas realizações arquitetônicas e urbanas.
É fácil achar o que não está exposto. Cada visitante poderá sair da mostra com sua lista pessoal do que não foi contemplado; com seu inventário de queixas individuais por não ver consignados seus edifícios prediletos. Países inteiros ficaram de fora. Diante de um período tão longo, de um território tão vasto e de uma produção tão significativa as escolhas são inevitáveis. Nem há, tampouco, grandes novidades. O que está exposto são os grandes clássicos do continente. Não podia ser diferente. Perante o silêncio geral dos museus de arte do Mundo sobre arquitetura latino-americana, a tarefa dessa mostra tinha de ser o reconhecimento e a consagração do cânon.
A mostra foi organizada por Barry Bergdoll, Curador e Patricio del Real, Assistente de curadoria, ambos do Departamento de Arquitetura e Design do MoMA; juntamente com Jorge Francisco Liernur, Universidade Torcuato di Tella, Buenos Aires e Carlos Eduardo Comas, UFRGS, Porto Alegre com a assistência de um comitê consultor de vários países da América Latina.
Ao evento efêmero que ficará aberto ao público de 29 de março a 19 de julho de 2015, complementa um alentado catálogo de 320 páginas que tende a se tornar referência como os raros exemplares sobreviventes do catálogo da exposição de Hitchcock e do Brazil Builds. Ele tem importantes textos dos três curadores principais. O de Bergdoll, que até recentemente foi curador-chefe de arquitetura do MoMA, se chama Learning from Latin America e propõe derivar lições do grande laboratório continental para uma reavaliação histórica e contemporânea do legado arquitetônico do período. Em seguida vêm as contribuições dos dois curadores convidados. O texto de Comas dá conta do caso brasileiro em suas vertentes carioca e paulistana, enquanto Liernur ensaia uma visada das motivações desenvolvimentistas do projeto urbano e arquitetônico.
No catálogo, as imagens dos edifícios e projetos expostos foram sistematizadas por país com textos de Silvio Plotquin (Argentina), Ruth Verde Zein (Brasil), Barry Bergdoll (Caribe), Fernando Pérez Oyarzún (Chile), Carlos Niño Murcia (Colômbia), Eduardo Luis Rodríguez (Cuba) Louise Noelle (México) Sharif Kahatt e Jean Pierre Crousse (Peru), Gustavo Scheps (Uruguai) e Silvia Hernández de Lasala (Venezuela). A publicação ainda inclui bibliografias comentadas por país.
A magnífica mostra lança novo olhar sobre uma região e um tempo negligenciados pela Europa e pelos Estados Unidos e para a qual mesmo os latino-americanos parecíamos olhar enviesados com desconfiança e ironia desesperançada. Esta belíssima exposição revela uma região forte com capacidade de realização; grande quantidade de arquitetura de elevada qualidade e acelerada transformação.
Os curadores evitaram adjetivar a arquitetura do continente, mas o que se aprende ao visitar a mostra é que, ao contrário do que muitos pensávamos, a América Latina existe.
nota
NA – Latin America in Construction: Architecture 1955–1980, a complex overview of the positions, debates, and architectural creativity from the Rio Grande to Tierra del Fuego, from Mexico to Cuba to the Southern Cone, between 1955 and 1980. Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA, de 29 de março a 19 de julho de 2015. Exposição organizada por Barry Bergdoll, Curador, e Patricio del Real, Curador Assistente / Department of Architecture and Design, MoMA; Jorge Francisco Liernur, Universidad Torcuato di Tella, Buenos Aires, Argentina; e Carlos Eduardo Comas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil; com a assistência de um comitê consultivo de toda a América Latina.
sobre o autor
Gustavo Rocha-Peixoto, professor titular da UFRJ, é historiador e crítico de arquitetura e do patrimônio cultural.