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O livro "Vitória: sitio físico e paisagem", de autoria de Letícia Beccalli Klug, faz das mudanças territoriais e paisagísticas da cidade, sua pauta de periodização espaço-temporal, exposta em panorama histórico do século 16 ao início do 21.

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CAMPOS, Martha Machado. Vitória ES. As potências de uma paisagem. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 162.04, Vitruvius, jun. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.162/5545>.


Imagem da cidade de Vitória de 1805
MIRANDA, C. Base digital www.baiadevitoria.ufes.br (pesquisa). Facitec Ufes, Vitória, 2005 [Acervo do Arquivo Histórico do Exército.]

A história da cidade de Vitória ocupa lugar especial entre os estudos urbanos desenvolvidos pela Universidade Federal do Espírito Santo. O Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação de Arquitetura e Urbanismo de Letícia Klug, transformado em livro no ano de 2009, é amostra preciosa disso e uma apologia à cidade de Vitória. Uma declaração de amor para a cidade, diz Raquel Rolnik no prefácio da obra. Na introdução, o relato de Klug confirma seu encanto por Vitória: acordar e andar pela cidade pode ser um capricho de todo capixaba, diante da beleza de sua paisagem natural, afirma a autora. Além de enaltecer o valor paisagístico de sua cidade natal, o resultado da obra demonstra que usufruir da paisagem de Vitória pode ser muito mais do que um capricho individual. O livro incide sobre o papel dos planos, projetos e intervenções urbanísticas na capital capixaba e o resultado das ações realizadas no âmbito do território e da paisagem.

Em acordo com a autora, deduz-se que a paisagem pode ser vista como um artefato coletivo em contínuo processo de transformação. Se por um lado, não se pode impedir o processo de mudança das paisagens, por outro lado, esse deve ser orientado pela sociedade junto com o Governo, no intuito de garantir que as mudanças da paisagem não sejam somente vetores de destruição, e sim processos de valorização da potência paisagística de cada local. Não por acaso, no texto conclusivo intitulado Por Vitória, Klug traça alternativas de valorização da paisagem da capital, formula orientações de uso e ocupação de determinados espaços, visando garantir o usufruto coletivo da paisagem na vida cotidiana.

Planta da cidade de Vitória de 1895
MIRANDA, C. Base digital www.baiadevitoria.ufes.br (pesquisa). Facitec Ufes, Vitória, 2005 [Acervo do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional.]

No primeiro capítulo O sítio físico, as belezas naturais e o núcleo inicial, a autora se utiliza de minucioso aparato analítico e recursos gráficos que serão recorrentes nos capítulos subsequentes. O instrumental metodológico lhe permite demonstrar a forte influência dos elementos naturais na paisagem construída, sobretudo do relevo e das águas, no período entre os séculos 16 e fins do 19. A autora conduz o leitor em narrativa marcadamente visualizada por imagens de plantas e silhuetas da cidade, desenhos dos séculos XVIII e XIX e relatos de viajantes do século 19, por meio dos quais afirma ser possível "ler" a topografia do sítio mesmo na região ocupada. Essa afirmativa enfatiza o modo de formação original da Vila de Vitória, com implantação colonial condicionada pelo sítio físico, em acordo com modelos urbanísticos portugueses. Klug constrói sua narrativa por camadas, que aos poucos desvelam o sítio físico e a paisagem de uma vila, que em fins do século 19, se quer moderna, se quer cidade. Quanto ao aparato de imagens utilizadas, cita-se pesquisa acadêmica basilar de Miranda (1) sobre cartografia e iconografia capixaba

Silhueta da cidade de Vitória de 1767
MIRANDA, C. Base digital www.baiadevitoria.ufes.br (pesquisa). Facitec Ufes, Vitória, 2005 [Acervo do Arquivo Histórico do Exército.]

Verifica-se que até início do século 19, o sítio físico é utilizado in natura para definição e implantação das construções, com a topografia dos terrenos e as barreiras naturais das águas e do relevo como principais fatores de limitação à ocupação. Posteriormente, com os primeiros aterramentos, ainda no século 19, a estrutura urbana e paisagística da capital é lentamente modificada. Neste período – do 16 ao 19 –, os impactos paisagísticos são minimizados, devido dominância dos elementos naturais sobre os construídos. Conforme Klug, os aterros eram procedimentos alinhados ao modelo de urbanização predominante nas cidades brasileiras.

O segundo capitulo A Expansão da Cidade, os Aterros e os Projetos Urbanísticos situa o leitor em época marcada por intervenções urbanísticas diferenciadas e de forte impacto paisagístico. O período entre fins do século 19 e início do 20 se caracteriza pelo discurso anticolonial. A historiografia urbana distingue este período como de modernização, embelezando e expansão urbana, conduzido pelo discurso oficial das principais cidades brasileiras. Neste momento, em Vitória, a visão de cidade moderna se impõe, com ênfase no seu papel de símbolo do ideário republicano, resguardando termos da autora.

Cidade de Vitória em 1930
MIRANDA, C. Base digital www.baiadevitoria.ufes.br (pesquisa). Facitec Ufes, Vitória, 2005 [Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves.]

Cabe destacar pioneirismo do livro organizado por Leme (2), que permite aos pesquisadores capixabas – a exemplo deste livro – avançar no debate sobre história do urbanismo e da cidade brasileira, por meio de levantamento documental de plantas e projetos urbanísticos realizados em Vitória, entre 1895-1965. Datado de 1896, o projeto do Novo Arrabalde de Vitória, do engenheiro-sanitarista Francisco Saturnino de Brito – contratado pelo governador de Muniz Freire (1892-1896) – constitui o primeiro projeto de expansão da capital, em área distanciada do seu núcleo de fundação. Klug destaca os atributos positivos do projeto e a concepção urbanística padrão de Brito, pautada na racionalidade do desenho geométrico condicionado aos preceitos da engenharia sanitária e à valorização de elementos do urbanismo pinturesco.

Valendo-se da periodização proposta para o livro, o capítulo segue até meados dos anos de 1950, com análises de planos e intervenções, distintos em visão urbanística, contexto político e socioeconômico e impactos territoriais e paisagísticos. Entre as obras do Plano de Melhoramentos e de Embelezamento de Vitória, idealizado no governo de Jerônimo Monteiro (1908-1912), cabe destaque o Parque Moscoso e os investimentos em saneamento, redes de água e esgoto, arruamento e retificação viária, iluminação pública e privada, tornando a cidade mais habitável, pondera a autora em acordo com literatura local de distintas fontes.

O Plano Geral da Cidade de 1917, do engenheiro Henrique de Novaes, sob ponto de vista crítico, induz o pensamento urbanístico da época à avanços e retrocessos. O plano propõe desmonte de morros, aterros, alargamento de ruas, incremento de área portuária, entre outras propostas não executadas na ocasião.

Observa-se que o governo de Florentino Avidos (1924-1928), assim como os anteriores de Muniz Freire (1892-1896) e Jerônimo Monteiro (1908-1912), promoveu ações públicas fortemente interventivas, gerando mudanças significativas na cidade de Vitória, com ênfase em sua área fundacional, desfazendo em definitivo a imagem da antiga vila colonial. O reinício das obras do Porto, a Ponte Florentino Avidos – primeira conexão da ilha com o continente – e a abertura da Avenida Capixaba em ampla e extensa reta, constituem mudanças de impacto no sitio físico nas primeiras duas décadas do século 20. Contudo, como acertadamente conclui a autora, o Maciço Central permanece soberano na paisagem.

Outro ponto importante, distinguido já no Plano de Urbanização de 1931 de Henrique de Novaes, é a permanente tensão entre o potencial de embelezamento dos elementos naturais notáveis – Maciço Central, Baía de Vitória e Morro do Penedo – e o descaso com manguezais, vegetação rasteira e restinga, considerados insalubres pelo discurso oficial e urbanístico da época. A proposta de zona industrial associada a expansão do cais portuário indica pensamento urbanístico vigente no país, que vincula inexoravelmente a cidade portuária ao processo de industrialização. A necessidade de políticas públicas em atendimento a indústria na capital é antecipada pelo urbanista Henrique de Novaes, em acordo com o impulso da política de industrialização nacional dos anos de 1930.

Em 1945, os problemas urbanos de Vitória se agravam e o governo contrata a Empreza de Topografia Urbanismo e Construção Ltda., sob supervisão do urbanista Alfred Agache, com objetivo de equacionar sobretudo disfunções de circulação viária e trânsito. O plano propõe sistema viário radial-perimetral em vias sobre aterros a beira-mar. Segundo Klug, a proposta visa ainda garantir a percepção da paisagem de orla de toda ilha, devido circulação em vias marginais à água. Cabe apontar a realização de levantamento cadastral e o desenvolvimento dos projetos urbanos para bairros existentes e um novo bairro para área não ocupada. São propostas de remodelação, extensão e embelezamento com ênfase no aspecto cênico e em características formais presentes em demais planos urbanísticos de Agache (3).

Para situar o processo de ocupação vertical em Vitória e a severa ruptura visual na paisagem, Klug finaliza este capítulo na metade do século 20, época de mudanças advindas do aterro da Esplanada e do início do processo de verticalização. O Processo de Verticalização e a Era dos Planos Diretores intitula o terceiro capítulo em abordagem sobre legislação urbanística. A partir do Código Municipal de Vitória de 1954, pela lei n. 351, a cidade é pontuada por paredões de edifícios altos. Em 1971, a lei n. 1994 flexibiliza altura para construções na área central, intensificando bloqueio causado pela verticalização. Destaque-se o Plano de Desenvolvimento Integrado de Vitória – PDI, desenvolvido por M. Roberto Arquitetos e Planorte, no inicio dos anos de 1970, como exemplar típico da concepção de plano diretor indicada por Villaça (4). A autora destaca o caráter precursor das diretrizes contidas no plano, que o fizeram marco na história urbana local, devido sobretudo, medidas de preservação da paisagem e imagem da cidade antiga e seus atributos históricos. Em síntese, os anos de 1970 se caracterizam por grandes aterros, pelo auge do processo de verticalização e pela intensa atuação do mercado imobiliário.

Centro da cidade de Vitória verticalizado na década de 1970
MIRANDA, C. Base digital www.baiadevitoria.ufes.br (pesquisa). Facitec Ufes, Vitória, 2005 [Acervo do Instituto Jones dos Santos Neves.]

Em 1984, o município aprova seu primeiro Plano Diretor Urbano, cria-se a Zona Especial I, com indicação de proteção ambiental e paisagística dos elementos naturais e construídos situados em áreas de preservação permanente. Observa-se junto com Klug, que a legislação se apresenta mais rigorosa e específica em relação aos elementos construídos, diferentemente do tratamento flexível e genérico dado aos elementos naturais. A principal crítica ao PDU de 1984, refere-se ao modo de ocupação proposto para controle da verticalização no entorno dos afloramentos rochosos de expressão paisagística, visando preservação da visibilidade dos mesmos. Para autora, esse modelo é ineficaz, considerando que os índices urbanísticos determinam altura e gabarito somente para edificações do entorno imediato dos morros, não garantindo visibilidade dos mesmos quando observados ao longe. A verticalização das construções, nos zoneamentos que circundam os de zona de proteção do entorno dos morros, é permitida independente da obstrução que possam gerar na percepção visual dos mesmos, agravando ainda mais a ineficácia do modelo.

Na década de 90, altera-se a legislação urbanística do município de Vitória, mediante segundo Plano Diretor Urbano (1994). Para Klug, as principais alterações do plano resultam da criação do Zoneamento de Planejamento e da flexibilização dos modelos de assentamentos, devido liberação do gabarito máximo. O PDU de 1994 delimita zonas de planejamento distintas, entretanto, mesmo que a legislação limite a altura máxima das edificações em certas zonas de planejamento, não é garantida a visibilidade do potencial paisagístico da maioria dos elementos naturais. É desconsiderado, por exemplo, a dimensão perceptiva dos elementos naturais por meio de cones de visualização. Contudo, Klug menciona avanços no PDU de 1994, a saber: instituição do Relatório de Impacto Urbano e resistência aos impactos paisagísticos e territoriais, quando da utilização do Conselho do Plano Diretor Urbano.

No capítulo quarto, A paisagem de Vitória no início do século XXI, Klug propõe percurso margeando as orlas de Vitória, onde reconhece barreiras que dificultam o processo de percepção da condição insular da cidade. Porém, a autora identifica que Vitória ainda detém pontualmente elementos paisagísticos, que podem dialogar com estruturas urbanísticas e arquitetônicas antigas e novas. Klug aposta na legislação urbanística como ferramenta de preservação da paisagem e de políticas públicas, tal como capitulo propositivo ao final do livro, denominado Por Vitória, mencionado na abertura deste escrito. Eis um dos méritos da obra: levar o leitor a um passeio do século 16 ao 21, com texto informado quanto as análises e modificações do sítio físico e da paisagem da capital capixaba, e ao mesmo tempo, oferecer uma perspectiva quanto a implantação de ações públicas de valorização e proteção de sua paisagem, que afirmem a potência da paisagem na constituição da cidadania.

Centro da cidade de Vitória em 2002
Foto Letícia Klung [Acervo de Letícia Klug]

O livro constitui em leitura obrigatória ao leitor interessado em história da cidade e do urbanismo, sob o ponto de vista da dimensão histórica do território, tal como postulado por Eugeneo Turri (5). Klug entende o território como construção histórica, com ênfase nos valores culturais relacionados com a paisagem. Parafraseando Turri (6), pode-se afirmar que esta obra reconhece as paisagens como imagens da mudança. Portanto, com demanda urgente de políticas públicas, que além de pressupor gestão compartilhada do território, devem prever um pacto entre o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada.

De certo modo, esta obra está em sintonia com as diretrizes contidas no PDU de Vitória, de 2006, que traz novidade ao recomendar formulação do Plano de Preservação da Paisagem da capital. Contudo, somente o plano-piloto Plano de Proteção da Paisagem da Área Central de Vitória foi desenvolvido pela municipalidade, por meio de assessoria técnica, no formato de Minuta de Projeto de Lei, para fins de orientação da ocupação urbana da área (7). É na urgência de zelar pela paisagem de Vitória, que sobressai o mérito da futura lei que irá tratar da Proteção da Paisagem na Área Central de Vitória (8). O propósito do Plano reside em complementar o PDU em vigência, instituindo um amplo pacto social, tal como almejado por Klug em sua obra.

notas

1
MIRANDA, Clara Luiza. (Org.). Memória visual da Baía de Vitória: pesquisa acadêmica. Vitória, UFES, FACITEC-PMV, 2001.

2
LEME, Maria Cristina (Org.). Urbanismo no Brasil – 1895-1965. São Paulo, Studio Nobel, 1999.

3
Idem, ibidem.

4
VILLAÇA, Flavio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DÉAK, Csaba; SCHIFFER, Sueli R. (Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999.

5
TURRI, Eugenio. La conoscenza del territorio. Metodologia per un'analise storico-geografica. Venezia, Marsilio, 2002.

6
Idem, ibidem.

7
CAMPOS, Martha Machado (Org.). Plano de proteção da paisagem da área central de Vitória. Catálogo para publicação. Vitória, Prefeitura Municipal de Vitória, Secretaria de Desenvolvimento da Cidade e Única Consultores, 2011.

8
CAMPOS, Martha Machado; MENDONÇA, Eneida Maria Souza. Proteção da paisagem e legislação urbanística: Área Central de Vitória (ES – Brasil). In: II Seminário Internacional Urbicentros, Anais. CD-ROM. Maceió, Universidade Federal de Alagoas, 2011.

sobre a autora

Martha Machado Campos é arquiteta urbanista (UFES, 1989), doutora (PUC-SP, 2004), professora associada da UFES. Publicações em coautoria: Cidade Prospectiva (2009); Urbanismo no Brasil 1895-1965 (2005); CD Urbanismo.br.; MG-ES Um Sistema Infraestrutural (2003); e Centro.com.vitória (2002). Coordenação do Plano de Proteção da Paisagem da Área Central de Vitória (PMV, 2011) e do PPGAU UFES (2011-2013).

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Sitio físico e paisagem

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