Este é um livro de desenhos do arquitecto português Álvaro Siza Vieira (Matosinhos, 1933- ). São desenhos de 10 cidades. Três são portuguesas: Évora, Lisboa e Porto. Apenas uma é fora da Europa: Macau. As restantes são grandes centros urbanos: Berlim, Haia, Veneza, Madrid, Paris e Barcelona. São um total de 178 páginas desenhadas. As cidades de Berlim e Porto são a que apresentam mais páginas com desenhos (Berlim com 31 pp. e Porto com 27 pp.). A que tem menos páginas é Macau (8pp.). Esta é uma edição em 3 línguas (inglês, alemão e português) com prefácio de Norman Foster, textos de Álvaro Siza sobre várias destas cidades e uma introdução de Wilfried Wang, que também assina os textos de enquadramento para cada uma das cidades. O remate é dado por nota editorial de Brigitte Fleck.
O motivo da conversa dos textos é o desenhar e o desenhador. Daquele desenhador reconhecível. De compulsividade justificada. Compreendida por Norman Foster no início do prefácio do livro quando começa por referir a companhia de Siza Vieira num simpósio em Santiago de Compostela. O desenhador sentado ao seu lado preenchia um caderno com linhas de diversas formas (cavalos, cavaleiros, diagramas, rostos, etc.). Para Foster aquele movimento periférico suscitou-lhe uma vontade incrível de espreitar; ver com pormenor o crescimento dos desenhos (1). Ainda que se mostrasse embaraço por se sentir a invadir o espaço privado do seu colega que descomprometidamente desenhava, não conseguiu resistir. Espreitou uma, e outra vez. Como nos diz Foster, os desenhos de Siza estão cheios de surpresa e muitos desenhos que informam futuras obras estão carregados de uma beleza abstracta que anuncia e é próprio da origem das coisas.
Álvaro Siza faz-se acompanhar, com frequência, de um caderno de esquiços, onde desenha com independência do tempo e do lugar. Com utilização e sobreposição de diversas projecções, desde plantas, cortes, alçados até axonometrias e perspectivas cónicas. Multiplica linhas, letras e números. Legendas e anotações. Usa regularmente cadernos escolares, em formato A4, de encadernação simples, com 156 páginas brancas e capa de cartolina preta (note-se a semelhança com a cor e textura da capa do livro). Quase sempre desenha na página direita. A esquerda fica em branco. Como nos diz Brigitte Fleck, na nota editorial do livro, à data de publicação (1994) existiam 365 cadernos deste tipo. Uma vez que em cada caderno são utilizados 75 a 80 páginas. A contabilidade perfaz pelo menos 29.000 páginas com desenhos (2). No momento em que escrevo este texto (2015) esse número estará já fortemente desactualizado. E se adicionarmos guardanapos, bilhetes de avião ou outras folhas, o volume de desenhos é um gigante que ocupa uma considerável parte da sociologia e da história do desenho arquitectónico contemporâneo. O livro reproduz vários desenhos realizados nesses cadernos. Apresenta ainda, aqui e além, desenhos encontrados em folhas soltas.
Com alguma distância em relação à tecnologia digital e aos novos média, Álvaro Siza permanece com o caderno e a esferográfica, sem alterar a identidade do seu processo visual e de ideação. A única tecnologia de que não prescinde é o desenho, como sublinha em discurso directo: “Outros instrumentos poderá utilizar o arquitecto; mas nenhum substituirá o desenho sem algum prejuízo, nem ele o que a outros cabe. A procura do espaço organizado, o calculado cerco do que existe e do que é desejo, passam pelas intuições que o desenho subitamente introduz (...) Todos os gestos – também o gesto de desenhar – estão carregados de história, de inconsciente memória, de incalculável, anónima sabedoria. É preciso não descorar o exercício, para que os gestos não se crispem, e com eles o resto.” (3).
A esferográfica preferida é a clássica Bic. Utiliza-a para a maior parte dos registos que transferem a complexidade do seu pensamento para a simplicidade dos seus traços. Para Wilfried (1994) o traço da esferográfica de Álvaro Siza é um exercício de linha (4) que procura ser exacto na definição da área, do volume, do espaço, da luz, da sombra e dos materiais. A linha preta oscila entre espessuras e intensidades diferentes que apresentam uma coreografia da esferográfica, com estratégias de posições e pressões sobre o papel. O excesso e concentração da tinta na ponta da esferográfica, marca a expressão nos limites do traço. A linha é em muitos casos gestual, e está em movimento. O desenho torna-se num atalho para a solução. A rapidez funciona como uma interligação do pensar visual. Esta destreza percebe-se com nitidez nos desenhos do livro, porque o desenho da cidade requer com urgência uma tomada de conjunto. Que consiga unir o vazio à arquitectura, à paisagem, ao património, às pessoas, às ruas, às árvores, aos largos e todos estes à democratização do espaço público.
As vistas aéreas são também elas a possibilidade do conjunto. Os esquiços de perspectiva vistos à grande distância são uma aproximação aos desenhos de Erich Mendelshon (5). Uma perspectiva de fantasia, longe do observador quotidiano, que também nos lembra os desenhos panorâmicos e gestuais de Le Corbusier. Uma fantasia por vezes realizada, como é o caso dos primeiros esquiços de Évora feitos em deslocamento numa avioneta a sobrevoar a cidade (6). Neste voo diurno, é de particular curiosidade enigmática os seus desenhos de anjos a sobrevoar as cidades. No livro, os anjos aparecem em Évora (p. 5) e em Paris (p. 189).
Por outro lado, Siza procura nas estratégias do volumetria tridimensional, que a perspectiva permite, a relação com o corpo do desenhador. A moldura circularmente deformada, ainda que não marcada, está presente como que a materializar os limites do cone visual. Recusa a moldura rectangular, consagrada pela história da pintura. Desta forma há um prolongamento do desenho que se expande e que inclui o desenhador e outros observadores. A posição inclinada do desenho é outra característica frequente. E é mais uma vez o contrariar do estreitamento da janela rectangular da folha. Quase o acomodar do corpo do desenhador à diagonal: a maior medida disponível na folha.
Os desenhos de Évora mostram o projecto do Bairro da Malagueira. Traçados, tipologias, edificado, planeamento, densidade, estrutura urbana, Sé, aqueduto. Um desenho global que relaciona os elementos verdes com as sombras, os pátios e a água. O novo e o antigo. O social e o histórico.
Em Berlim, os projectos de programação mista, como o Fränkelufer e o Schlesisches Tor, são detalhados pela abertura do quarteirão (p. 51) e pelas tipologias de vãos de fachada (p. 67). Pelo estudo dos derivados do racionalismo e do expressionismo, no contexto da Bauhaus e do pós-Guerra. A investigação dos modelos habitacionais de Erich Mendelshon, Hans Scharoun e Shinkel (pp. 54-55).
Macau inicia-se com uma vista aérea marcada por uma cidade empacotada (p. 78). Desenhos densos e riscados a representar a tipologia de ruas do plano de ampliação da periferia urbana (co-autoria com Fernando Távora). Através da articulação da estrutura verde com as blocos edificados, o movimento rodoviário e pormenores como os letreiros (p. 81). Nesta secção são de particular interesse os retratos de Távora e Campinas (p. 87).
Os desenhos de Haia apresentam o conjunto habitacional de Schilders-wijk West, onde se representa a uniformidade urbana dos blocos de tijoleira vermelha, com marcações de ritmos e sequências. As tipologias, as zonas verdes e os jardins internos nos pátios são organicamente desenhados (p. 100). Os materiais meticulosamente anotados. Os remates de interseção de fachadas mostram elevada plasticidade no tratamento formal e construtivo (p. 104), que retoma alguns modelos da arquitectura habitacional holandesa dos anos 20 e 30 do século XX (7).
A romântica Veneza surge pelo projecto (não executado) de habitação social para o Campo di Marte (Guidecca). Aqui o destaque concentra-se nos desenhos sobre o património da cidade, como a Praça de S. Marco e Palácio de Doges (p. 115), o Campanário de S. Giorgio Maggiore (p. 118), Ca d’Oro (p. 123). E pelo estudo de blocos e da estereotomia das alvenarias de fachada.
Em Madrid é apresentado o estudo para o projecto do Centro Cultural do Ministério da Defesa. Com secções e perspectivas do interior do espaço museológico e do auditório. Estudos de corpo inteiro do edificado e da respectiva articulação da volumetria no exterior: formas L, U, cilindro e torre (p. 132). Álvaro Siza desenha as duas obras importantes de Picasso, cuja colocação estava prevista naquele espaço: a Guernica e a escultura Mulher Grávida. Desenha-as na relação com a figura humana (p. 146).
Os desenhos de Lisboa referem-se à sua intervenção no Chiado, decorrente do incêndio de 1988. Preocupa-se com a escala da cidade e com a permeabilidade urbana. Os acessos e ligações entre a cota alta e as cotas baixas. Os muros de suporte, as galerias interiores e os alçados urbanos. A identidade pombalina. As ruínas do Carmo (p.159). A conservação da memória colectiva a par da construção de novas tipologias de habitação, comércio e serviços (p.167). Um destaque para o desenho panorâmico, a partir do miradouro do cimo do elevador de Santa Justa, com vista para o castelo de São Jorge (pp. 170-171). Revela pela simplicidade do traço a organização geográfica, histórica e formal da paisagem lisboeta.
Segue-se Paris marcada por uma arquitectura oitocentista para onde concorre com um projecto para a Biblioteca de França e o Boulevard Brune. Os volumes da futura biblioteca e a relação com a cidade das pontes e do Sena é marcada nos desenhos (p. 183). Temos ainda dois desenhos da Ville Savoir (Le Corbusier). No desenho de interior é visível a marcação intencional do pé-direito baixo que ocupa 1/3 da folha, e o desenho dos pilares da estrutura intercalados com as funções de circulação e higiene (p. 175).
O centro meteorológico da cidade olímpica de Barcelona é o projecto escolhido para documentar esta cidade. As influências com Loos e Boullée são fortes e o volume cilíndrico é recortado por vãos e relações entre pisos que distribuem a luz e as vistas. A perspectiva de espaço circular é acentuada para perceber as novidades da experiencia espacial (p. 199). A planta centralizada é funcionalmente ordenada. As diferenças de materiais são desenhados. O enquadramento urbano é valorizado. A propósito de Barcelona, Siza conta-nos sobre a regularidade das suas férias de infância com a família, por Espanha, de onde se recorda da plasticidade escultórica dos espaços de Gaudi. A este propósito refere: “No regresso parámos para almoçar num restaurante dos arredores. Vi uma tabuleta que indicava: Colonia Güell. O meu pai estava cansado de arquitectura e de museus; mas acedeu a que eu fosse com o motorista ‘ali ao lado’. Quando voltámos acabavam de almoçar. O motorista estava com fome e zangado; o meu pai fingia que estava zangado; os meus olhos de quinze anos brilhavam” (8). Sobre a Barcelona de Gaudi, o livro apresenta um detalhe da Casa Milá (Pedreira); desenho de 1948 em folha solta (p. 203).
No Porto, cidade vizinha da sua terra natal Matosinhos, os projectos apresentados são a Av. Afonso Henriques (1968) as construções sociais em Bouça (1973-1976) e de São Victor (1974), Recuperação do Barredo (1976), as novas instalações da Faculdade de Arquitetura da Universidade Porto (1986), entre outros detalhes. Numa cidade que conhece bem, as ligações da arquitectura ao lugar, pelo regionalismo crítico e pela recusa dos programas mono-funcionais é visível no desenho da inserção urbana e da tipologia de fachada (p. 225).
Estes desenhos de Siza são a sua percepção da arquitectura. São um corpo autónomo pela quantidade e qualidade gráfica. Informam as suas obras, mas informam sobretudo o arquitecto por trás e à frente da obra. Mostra-nos a sensibilidade da mão que acompanha o olhar. Para Beaudouin (2009) “O esboço é em Siza uma maneira de ser. Ele não lhe serve para representar o projecto, serve-lhe de olhar; é o desenho que contempla o espaço para mostrar ao seu autor o que deve ser. Siza não precisa de heterónimos como o poeta Fernando Pessoa, ele possui esta mão que é outro ele mesmo, ela faz-lhe companhia e diz-lhe o que pensa do seu projecto.” (9). As possibilidades de experiencia espacial das suas obras de arquitectura são resultado da sua antecipação através do desenho. Ultrapassa o momento de cada desenho, para se fixar na continuidade gráfica dos esquiços que acompanham diferentes obras. A unidade reclama a identidade. Uma plasticidade física que é marca do autor. As marcas visíveis da direcção e da geometria do seu pensamento.
notas
1
FOSTER, Norman. Prefácio. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza: Stadtskizzen, City Sketches, Desenhos Urbanos. Basel, Birkhäuser, 1994, p. 7.
2
FLECK, Brigitte. Nota editorial. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza: Stadtskizzen, City Sketches, Desenhos Urbanos. Basel, Birkhäuser, 1994, p. 246.
3
BEAUDOUIN, Laurent. O Agrimensor. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza - Uma questão de medida. Lisboa, Caleidoscópio, 2009, p.17.
4
WANG, Wilfried. O desenho como espelho. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza: Stadtskizzen, City Sketches, Desenhos Urbanos. Basel, Birkhäuser, 1994, p. 8.
5
WANG, Wilfried. O desenho como espelho. Op. Cit. p. 9.
6
FLECK, Brigitte. Nota editorial. Op. Cit. p. 247.
7
WANG, Wilfried. Haia. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza: Stadtskizzen, City Sketches, Desenhos Urbanos. Basel, Birkhäuser, 1994, p. 94.
8
SIZA, Álvaro. Barcelona. In SIZA, Álvaro. Álvaro Siza: Stadtskizzen, City Sketches, Desenhos Urbanos. Basel, Birkhäuser, 1994, p. 206.
9
SIZA, Álvaro. 01 Textos. Porto, Civilização Editora, 2009, pp. 37-38.
sobre os autores
Shakil Y. Rahim é arquitecto, investigador do CIAUD e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. As suas áreas de investigação são o desenhador, a atenção visual e os processos cognitivos e neurobiológicos envolvidos no acto de desenhar.
Ana Leonor Madeira Rodrigues é artista visual, investigadora do CIAUD e professora na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. As suas áreas de investigação são o desenho como ordem do pensamento arquitectónico e respectivos processos cognitivos como modo de comunicação não-verbal.