É cada vez mais comum a busca por correlações entre a Arquitetura e referenciais da imaginação humana. Como os fenômenos artísticos influenciam e são influenciados pela sociedade, uma das formas de analisar um momento estético é contrapor seus documentos regulatórios — que expressam a intenção de um movimento — às manifestações dos artistas da época — que costumam traduzir as reflexões estéticas da sociedade ou levá-la a pensar sobre eventuais repercussões do movimento em sua vida prática.
O objetivo deste artigo é confrontar o filme Meu tio (1) e a Carta de Atenas (2), duas produções que fazem referência ao Movimento Moderno na Arquitetura, em sua fase inicial, visando analisar as ideias modernistas enquanto propostas para a melhoria das condições estético-funcionais, especialmente no tocante ao papel da moradia. A análise se desenvolve segundo a lógica de confronto e complexidade descrita por Venturi: "a comparação é uma forma de buscar a maior clareza das coisas. É um instrumento de crítica" (3).
Objetos de análise
Documento que interpreta e sintetiza as conclusões do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (IV CIAM), a Carta de Atenas, compilado por Le Corbusier, descreve 95 itens de organização do movimento, divididos em cinco grupos, que denotam as zonas de organização de uma cidade moderna: habitação, lazer, trabalho, circulação e patrimônio histórico. Para cada zona, há observações que trazem as constatações dos problemas da época. Há ainda o campo "É preciso exigir", com propostas para os problemas constatados.
Meu tio é uma comédia ítalo-francesa, de 1958, dirigida, produzida, escrita e atuada por Jacques Tati. O filme é uma sátira à sociedade moderna e uma crítica à desumanização urbana. Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro e da palma de ouro em Cannes em 1958. O protagonista é Monsieur Hulot, morador de um bairro francês pacato e repleto de casas em estilo eclético, que resolve visitar a casa "ultramoderna" de sua irmã: a casa da família Arpel. Para Hulot, a casa adaptada aos novos conceitos da época é uma armadilha tecnológica. A perplexidade de Hulot diante dos acontecimentos é o viés utilizado por Tati para criticar a sociedade modernista que, de acordo com o filme, tenta exageradamente se adaptar ao novo estilo arquitetônico.
A partir da observação do cotidiano do cidadão comum de sua época, Tati confere um tom poético a sua crítica, descrevendo a ambiência arquitetônica do Modernismo em descompasso a arquitetura existente. A casa moderna, personificada pela moradia da família Arpel, parece representar os ideais modernistas descritos na Carta de Atenas.
Contexto histórico
O Modernismo na França buscou o ideal de funcionalidade por meio da forma. Goitia (4) descreve que as primeiras obras realizadas na França já utilizavam blocos contínuos em plantas sinuosas. As obras encerravam grandes espaços verdes, que chegavam a ocupar 75% da totalidade do solo disponível. A intenção era romper com os moldes rígidos do racionalismo e com os padrões ortogonais das fachadas planas, buscando um novo formalismo, derivado dos esquemas corbusianos, incorporados pela escola brasileira.
Havia um rebuscamento formal em Le Corbusier que muito se assemelhava ao formalismo trivial de Oscar Niemeyer e seus seguidores. O uso de elementos simples, pré-fabricados, dava uma variedade pitoresca ao conjunto urbano e, assim como aparece na casa moderna da irmã de Hulot, os diversos jardins estavam mesclados com elementos figurativos.
A França apresentava uma peculiaridade em relação aos demais países que aderiram rapidamente aos ideais modernistas: do ponto de vista do desenvolvimento industrial, ela estava muito atrasada, no entanto, do ponto de vista arquitetural, as inovações técnicas e plásticas destacavam a França em criatividade.
O VI CIAM ocorreu em 1933, após a I Guerra Mundial, em um período marcado por transformações significativas na Arquitetura e no Urbanismo: o movimento Moderno estava se consolidando, a revolução socialista e a reconstrução das cidades arrasadas pela guerra conferiam um ar de renovação ao momento, surgiam perspectivas para a formulação de novas soluções, enfim, a Arquitetura vivia uma situação até então inédita.
Foi nessa época que Clarence Perry desenvolveu os conceitos e projetos de "unidades de vizinhança". Na América, o planejamento regional se desenvolvia e no Brasil, nomes como Affonso Reidy, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Gregori Warchavichik produziam obras inspiradas em novas ideias. A pesquisa científica ganhou impulso e o IV CIAM lançou-se a estudar "A cidade funcional", como tema.
A Carta de Atenas foi escrita em meio a II Guerra Mundial, em 1941, quando a necessidade de renovação mostrava-se ainda mais urgente. A intenção era propor uma cidade que funcionasse adequadamente para o conjunto de sua população, conferindo bem-estar a todos. E o principal veículo para conseguir tal proeza eram os avanços técnicos da época.
Além da Carta de Atenas, outras duas versões foram feitas para interpretar os acontecimentos do IV CIAM, mas nenhuma dessas versões, nem mesmo a de Le Corbusier, correspondia às atas do Congresso. Isso se deve ao fato de que Le Corbusier não pretendia apenas apresentar um relatório, mas uma contribuição do Congresso para a sociedade francesa.
A Carta de Atenas é uma síntese do conteúdo do chamado "urbanismo funcionalista": o interesse coletivo em detrimento da propriedade privada, uso da tecnologia na organização de todos os elementos da cidade, o zoneamento e transformação da habitação no elemento como principal preocupação.
É nesse contexto histórico, em que novas técnicas estavam sendo desenvolvidas com o intuito de solucionar problemas decorrentes das duas guerras mundiais, que surge o filme Meu tio. Jacques Tati cria a casa moderna da família Arpel como protótipo da Arquitetura Moderna, tal como foi doutrinada pela Carta de Atenas, e novos hábitos começam a emergir na vida das pessoas, como um produto a ser consumido
Primeiros antagonismos
O recorte temporal desta análise remete a uma época do desenvolvimento da Arquitetura pós-industrial, a partir de 1945, chegando-se à ruptura e inversão de tendências evolutivas, a linha moderna passa a ser dominante: o automóvel, o transatlântico e o avião, tão bem descritos por Le Corbusier(5) estão agora no cotidiano das pessoas. Segundo ele, a casa moderna é uma máquina de morar e cada elemento presente na máquina deve desempenhar um papel mecânico específico, de modo que a casa, como maquinário, passa a ser indispensável na resolução do problema de moradia, e quiçá da Arquitetura.
Por outro lado, no filme Meu tio, percebe-se a ideia da máquina de morar substituída pela armadilha de morar. Essa discussão permeia toda a obra e torna-se rica porque é feita via comparação, conforme descreve Venturi: "comparações são métodos válidos também para a arquitetura, que está aberta para a análise como qualquer outro aspecto da experiência”.
O pensamento antagônico da Carta de Atenas e do filme em análise — sem desmerecer a marcação histórica que esses dois registros representam — trata de um tema debatido até hoje por continuar atual em muitos aspectos.
Raja retrata o problema da habitação, naquela época, da seguinte maneira: "A partir do pós-guerra, pela primeira vez, o arquiteto é chamado a enfrentar um problema global, questionar problemas existenciais e dar a eles uma resposta menos banal: o salto é colossal" (6). Trata-se do problema gerado pelo crescimento desordenado das grandes cidades e da reestruturação das chamadas “condições naturais”, que já estavam descritas no item 79 da Carta de Atenas. Entretanto, embora os modernistas elaborassem propostas para a solução desses problemas, não existiam exemplos do emprego dessas ideias para possibilitar um posicionamento crítico.
No filme Meu tio, Jaques Tati reconhece o problema pela exibição de cenas do mundo de M. Hulot (o mundo não moderno). O caos da feira, o varredor de ruas que deixa sempre tudo por limpar, o vendedor de frutas, além de outros elementos descritos mais adiante neste artigo mostram um problema. A grande diferença entre o filme e o documento, nesse caso, é o fato de que a casa moderna, mostrada no filme, está utilizando, mesmo que de forma exagerada, muitas soluções modernistas para os problemas. Elas, no entanto, acabam gerando outros problemas: o portão eletrônico, destinado a facilitar a entrada e saída de pessoas da casa, produz muito ruído; a garagem, com portão que abre e fecha por sensor de movimento, confina acidentalmente seus usuários; o piso de mármore reverbera exageradamente o som dos passos das pessoas; a cozinha produz os alimentos praticamente sozinha, mas a comida não é gostosa; o automóvel, produzido para encurtar distâncias e facilitar a locomoção, produz engarrafamentos; e as cadeiras reproduzem uma nova estética, mas não são confortáveis. Provocar uma experiência com as ideias defendidas na Carta de Atenas e confrontá-las com o mundo sem as novas tendências leva o espectador do filme a uma condição crítica que será explicitada nesta análise.
Problema ou solução?
No item 71 da Carta de Atenas, está descrito que "a maioria das cidades estudadas oferece hoje a imagem do caos: essas cidades não correspondem de modo algum à sua destinação, que seria satisfazer as necessidades primordiais, biológicas e psicológicas de sua população". Para os modernistas, o novo momento possibilitava à arquitetura a função e o dever de resolver os problemas da sociedade, em todas as suas carências. No entanto, algumas questões levantadas pelo documento não eram produto de um estudo científico. Exemplo disso é a proposta de zoneamento, apresentada como solução para a organização da cidade, que acabou não funcionando como o imaginado no item 84, que definia que "a cidade como uma unidade funcional deverá crescer harmoniosamente em cada uma de suas partes, dispondo de espaços e ligações onde poderão se inscrever equilibradamente as etapas de seu desenvolvimento".
Em passagem do filme Meu tio, que corrobora esse otimismo modernista, a irmã de M. Hulot chega a afirmar que é a casa moderna que falta a ele, exibindo a casa onde vive com sua família. Ela se refere ao mundo moderno, em que a casa representa o remédio para a doença na qual o mundo se transformou. Mas o ambiente imaginado e não vivenciado é quase sempre utópico, até que se possa experimentá-lo na prática.
Quando a vizinha visita a casa da irmã de M. Hulot, o ambiente deixa de ser, por alguns instantes, o artigo de luxo adquirido pela Sra. Arpel e passa a ser um produto a ser analisado por quem não o conhece. Sob esse prisma, a casa atende às necessidades de sua moradora no que diz respeito à alegria de apertar botões. No entanto, não parece muito funcional. A dona da casa passa o dia inteiro sozinha, fazendo serviços domésticos, posição comparada ao trabalho do operário na fábrica. Afinal, é a Sra. Arpel quem opera a máquina de morar. Quando um "operário” sem treinamento precisa utilizar tal máquina, a casa falha. Em Meu tio, isso se dá porque a casa moderna é fria, não permite que seus operadores exerçam sua subjetividade.
A análise de Raja (1986) vai ao encontro da crítica de Tati, que considera o movimento Moderno concentrado quase que exclusivamente nos conteúdos funcionais e estruturais da arquitetura, subavaliando abertamente os conteúdos simbólicos e formais, incluindo de igual maneira os aspectos psicológicos. Ou seja, a Arquitetura demandaria vivência espacial.
Armadilha versus máquina
O mundo pré-moderno de M. Hulot também é retratado no filme como contraponto ao Modernismo. É M. Hulot quem confronta os dois mundos. A fronteira que os divide é representada por um muro de pedras em ruínas. Para ilustrar como esse novo movimento impactava o cotidiano das pessoas, Tati faz diversas comparações, apontando contrapontos e contradições nesse conflito:
No cotidiano moderno, a dona de casa opera a máquina; no mundo não moderno, os cães andam desordenadamente na feira livre.
Tráfego: o Sr. Arpel sai com seu carro para trabalhar e deixar o filho na escola; no mundo não moderno, o lixeiro volta para casa com a carroça que recolhe o lixo e M. Hulot só trafega de bicicleta.
Alimentação: na casa moderna, o almoço é feito automaticamente pela cozinha, utilizando todas as medidas de higiene, no entanto, a comida não fica saborosa. No mundo não moderno, o sobrinho de M. Hulot come sonhos vendidos em um terreno baldio, sem as mínimas condições de higiene, mas a comida tem ótimo sabor.
Ruídos: no mundo moderno, os equipamentos e máquinas produzem sons estridentes, como fonte, telefone, campainha, buzinas dos carros nas ruas, aspirador de pó, portas e almofadas das cadeiras da fábrica. Já na representação do mundo não moderno, há sempre trilha sonora e M. Hulot não possui telefone.
Quando o filho do casal Arpel ganha uma locomotiva de brinquedo, símbolo do avanço tecnológico, não demonstra o menor interesse. Por outro lado, fica entusiasmado quando ganha um apito e um boneco artesanal do M. Hulot. No mundo moderno, os brinquedos são representados como geringonças, enquanto, nos terrenos baldios do mundo não moderno, os jogos e brincadeiras ao ar livre são divertidos e criativos.
Comemoração: a festa de recepção da Sra. Arpel se transforma num caos porque os visitantes não sabem utilizar a casa da forma correta. O aniversário de casamento é comemorado num restaurante, onde músicos só tocam com pagamento adiantado. Enquanto isso, nos arredores da casa de M. Hulot, a festa na praça celebra a noção do coletivo e a comemoração noturna é mais descontraída.
Assim como se observa na forma de festejar, o individualismo do mundo moderno está demonstrado na casa projetada para três pessoas, com espaços ociosos. Já no mundo não moderno, a feira, a praça e a pensão onde mora M. Hulot sugerem a coletividade.
A idealização do coletivismo em detrimento do interesse privado, comumente, acaba ganhando cunho utópico. Muitas dessas idéias dependiam do poder governamental e não foram postas em prática pela falta de interesse político.
No item 95 da Carta de Atenas, essa utopia tão criticada em Meu tio está claramente demonstrada em forma de previsão: "O interesse privado será subordinado ao interesse coletivo. O direito individual não tem relação com o vulgar interesse privado. Este, que satisfaz a uma minoria condenando o resto da massa social a uma vida medíocre, merece severas restrições. Ele deve ser, em todas as partes, subordinado ao interesse coletivo".
Mas não é apenas o filme que critica os preceitos Modernistas. A Carta de Atenas também se posiciona a respeito do mundo retratado por Tati, no item 10: “É o estado interior da moradia que constitui o cortiço, mas a miséria deste é prolongada no exterior pela estreiteza das ruas sombrias [...]. Ainda que seu valor de habitabilidade seja nulo, ela continua a favorecer, impunemente às expensas da espécie, uma renda importante. Condenar-se-ia um açougueiro que vendesse carne podre, mas a legislação permite impor habitações podres às populações pobres."
Se houvesse direito de resposta, Meu tio rebateria a Carta de Atenas com o diálogo que se desenvolve já na referida cena em que a vizinha visita a casa moderna:
— Ah! Mas é tudo tão vazio! — diz a visitante ao observar a sala de estar.
— Ora! É moderno! Tudo comunica. Ali está o quarto, ali a cozinha e ali está o nosso cantinho. — diz a Sra Arpel, tentando explicar a razão do notório vazio.
Essa ideia de que os espaços amplos funcionam melhor, em detrimento dos espaços mais fechados, como as ruas estreitas do bairro de M. Hulot, está explicitada no seguinte trecho extraído do item 12 da Carta de Atenas: "Não se esqueça de que a sensação de espaço é de ordem psicológica e que a estreiteza das ruas e o estrangulamento dos pátios criam uma atmosfera tão insalubre para o corpo quanto para o espírito".
No entanto, mesmo em uma casa moderna onde "tudo comunica", a Sra. Arpel se sente confinada dentro de seu amplo lar. Ela chega a afirmar que se sente em casa quando está na cozinha, dando a entender que nos outros ambientes domésticos, tudo remete a um mundo ao qual ela não pertence. A mecanicidade da cozinha acaba exercendo uma aproximação entre a Sra. Arpel e o mundo no qual ela se sente à vontade. O motivo é claro: ela é uma dona de casa de 1958.
A questão social está nas entrelinhas do filme, assim como na Carta de Atenas. O confronto também se dá entre a burguesia moderna (moradora da máquina/armadilha de morar) e o subúrbio de classe média baixa (bairro de M. Hulot), como demonstrado no item 20 da Carta de Atenas: "O subúrbio é o símbolo ao mesmo tempo do fracasso e da tentativa. É uma espécie de onda batendo no muro da cidade. No decorrer dos séculos XIX e XX, essa onda tornou-se maré e depois inundação. Ela comprometeu seriamente o destino da cidade e as suas possibilidades de crescer segundo uma regra. (...) O subúrbio é um erro urbanístico. Constitui um dos grandes males do século".
No item 69, a Carta de Atenas estabelece como inevitável para a melhoria das chamadas "condições naturais" – ainda que considere lamentável – a demolição de casas insalubres e cortiços ao redor de monumentos de valor histórico para, em seu lugar, introduzir áreas verdes. Dessa maneira, desconsideram o fato de que algumas dessas formas de moradia podem possuir valor histórico. O edifício onde M. Hulot mora deveria dar lugar a uma imensa área verde, pelos preceitos modernistas. Na verdade, o que se pretende é eliminar qualquer adoção de estilo do passado, conforme descrito no item 70: “O emprego de estilos do passado, sob pretextos estéticos, nas construções novas erigidas nas zonas históricas, tem conseqüências nefastas. A manutenção de tais usos não será tolerada de forma alguma".
Simples versus simplificado
Na busca pelo funcional, a Arquitetura Moderna é mostrada, em Meu tio, como um elemento adaptado às novas técnicas para simplificar a vida, mas que desestrutura os hábitos de morar então vigentes na vida cotidiana: a janela da casa moderna, que abre e fecha mecanicamente, não poderia permitir que M. Hulot a deixasse entreaberta, como é costume, para que o passarinho na gaiola ao lado possa sentir o calor do sol e cantar o dia todo.
O mundo moderno no filme é mostrado, muitas vezes, como artificial. Talvez pela tentativa de melhorar a situação e, na verdade, acabar causando desapontamento. A cena em que a Sra. Arpel recebe flores de plástico dos seus convidados é uma metáfora a isso. O diálogo procede da seguinte maneira:
— Trouxe flores para a senhora. São de plástico! Não morrem! — diz um convidado da Sra. Arpel para uma recepção em sua casa.
— É! Mas têm cheiro de borracha! — diz a Sra. Arpel.
Essa cena mostra que o intuito de tornar a flor mais funcional (não deixá-la morrer) é representado pela tentativa de simplificação, no entanto a simplicidade com que a flor exala seu perfume é perdida completamente, bem como parte de sua função. Para Venturi (1995, p.5), a simplificação forçada resulta em uma supersimplificação que distorce ou ignora elementos essenciais.
O ornamento: forma e função
Como síntese de diversas críticas presentes no filme, há um elemento de peculiar importância: a fonte em formato de peixe. Antes de atender qualquer pessoa que visite a casa, a Sra. Arpel liga o aparato no centro do enorme jardim de sua casa.
A fonte, enquanto elemento numa casa francesa — mesmo que fictícia — é a expressão do que foi analisado acerca da Arquitetura Moderna francesa: a busca da função por meio da forma. O ornamento não possui nenhuma função estrutural e, como tal, segundo Venturi (1995, p.58), tem função retórica e constitui ostentação arquitetônica. Segundo esse autor, “o elemento retórico está justificado como um meio válido, ainda que obsoleto, de expressão".
Assumindo esse papel de elemento retórico, o emprego da fonte, na casa Moderna do filme, se justifica como um meio de expressão dentro do Modernismo. E o que a família quer expressar com a fonte, na verdade, é o status de possuir um produto: a casa moderna.
Considerações finais
Por meio da comédia Meu tio, Tati assume uma postura crítica sobre o Modernismo em sua fase inicial, quando as expectativas e suposições ao redor do que seria aquele movimento estavam surgindo, causando conflitos e importunando os hábitos cotidianos das pessoas.
No aspecto da moradia, que foi o foco deste estudo, a análise comparativa entre a Carta de Atenas e o filme permitiu observar diversas divergências que ajudam a traçar um perfil do mundo antes e depois do Modernismo, descrevendo o impacto da emersão do movimento na sociedade francesa.
No entanto, como foi visto, embora Meu tio retrate um Modernismo que segrega, a Carta de Atenas propõe a coletividade como condição para a melhoria de alguns problemas. Esse ponto seria uma convergência entre os dois objetos de análise, demonstrando que o ideal é o equilíbrio: a coexistência do antagônico. Deve-se permitir a possibilidade do complexo e do simplificado, da contradição e do pitoresco. É preciso respeitar as visões críticas que identificam a casa moderna como armadilha para revisitar o conceito da máquina, a partir da vivência arquitetônica. A maturidade arquitetônica talvez seja aceitar o que é paradoxal, como explicita Venturi : “O equilíbrio deve ser criado a partir de opostos. Uma sensibilidade especial para o paradoxo permite que as coisas aparentemente dessemelhantes existam lado a lado" (7).
notas
1
Meu tio. Direção e Produção de Jacques Tati. França: Globo Vídeo distribuidora, 1958. Vídeocassete (110 min.): VHS, Ntsc, son, color. Legendado. Port.
2
LE CORBUSIER. A Carta de Atenas. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1993.
3
VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. 1ª edição. São Paulo, Martins Fontes,1995, p. 86 e p. 231.
4
GOITIA, Fernando Chueca. Historia de la arquitetura occidental. X. el siglo XX las fases finales y España. 2ª edição. Madri, Dossat Bolsillo, 1984, p. 385.
5
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 5ª edição. São Paulo, Perspectiva,1998, p. 205.
6
RAJA, Raffaele. Arquitetura pós- industrial. São Paulo, Perspectiva, 1986, p. 238.
7
VENTURI, Robert. Op. cit.
sobre a autora
Lis Vilaça é arquiteta e urbanista, mestre em Psicologia (UFRN) e doutoranda em Arquitetura (UFRJ). Desenvolve pesquisas interdisciplinares entre Arquitetura e outras áreas, visando analisar os fatores subjetivos e culturais que contribuem para a construção do ambiente. Desde 2011, é membro do Laboratório Arquitetura, Subjetividade e Cultura (LASC/UFRJ), onde estuda inter-relação pessoa-espaço construído.