Os arquitetos Maria Cristina Wolff de Carvalho e Marcos Carrilho, sob o amparo do Instituto Triunfo, estão a publicar livros alusivos à cultura social de regiões variadas do Brasil. Essa entidade tem como base de ação “valores de respeito às pessoas, conservação do meio ambiente, ética, integridade, compreensão e solidariedade”, como nos diz o seu presidente Luiz Fernando Wolff de Carvalho. Um de seus escopos também é “preservar a cultura regional”, não esquecendo o viés da memória. Essa expressão necessariamente nos leva aos primórdios da Nação e nos conduz àquilo que chamamos de condição americana.
Essa citada conjuntura é muitas vezes esquecida, o que pode nos dirigir a juízos ou prognósticos fictícios. Não devemos esquecer que o Novo Mundo era composto de continentes totalmente virgens, incontaminados pelas culturas europeias relativas às mais variadas regiões, além daquelas da Península Ibérica, que iniciou o processo civilizatório acontecido a partir das descobertas de Colombo em 1492. Não ocorreu evidentemente a possibilidade da existência de uma entidade qualquer, semelhante à nossa Organização das Nações Unidas, que supervisionasse as atividades de agentes culturais utopicamente normalizando pensamentos, comportamentos e atividades destinados a equalizar a vivência de migrantes chegados em um mundo vazio de regras. Em tese, cada um que fizesse o que soubesse, pudesse ou quisesse, para o desespero dos padres catequisadores, sobretudo jesuítas, mais de uma vez expulsos de suas bases de ação.
Exemplo bom dessas afirmativas, que pode ser adaptado a outras situações ou atividades além daquelas ligadas às artes plásticas, é dado pelas divagações do crítico de arte e historiador Damián Bayon. Numa de suas aulas aqui na FAU USP, ele recorreu a uma imagem transformando o mundo das artes europeias em uma grande represa onde, de início, se acumularam as águas da civilização grega com sua arquitetura ímpar; depois, vieram as águas da arquitetura romana, com os seus arcos e abóbadas de tijolos; depois, veio o estilo Românico; depois, o Gótico; depois da arte renascentista, vieram o Maneirismo, o Barroco, o Rococó, todos deixados para trás pelo Neoclássico histórico. Aconteceu que, na altura do Renascimento, com a descoberta das Américas, a barragem da represa dos estilos rompeu-se e de roldão suas águas inundaram as colônias, todas elas. Consequentemente, não houve obediência alguma à cronologia, todos os estilos, aqui e ali, vieram misturados, conforme o gosto ou sapiência dos artistas ou promotores de construções, fossem elas obras particulares, do Governo ou da Igreja. É claro que as águas após o rompimento chegaram devagar e quase sempre contagiadas por agentes culturais demasiadamente criativos. Assim, no Brasil, sem documentação hábil, é impossível situar no tempo, apenas pela sua aparência, o estilo de uma construção.
Transferindo para a modernidade essas ocorrências, já que nesses quinhentos anos de nossa existência, até hoje, recebemos maiores ou menores fluxos migratórios (agora é o momento dos haitianos) e levando em conta a lenta e despoliciada miscigenação ocorrida, gostaríamos de saber até que ponto seria possível vislumbrar em nossas “Paisagens Culturais”, sobretudo na sua cultura material, uma mediania decorrente dos variados encontros étnicos acontecidos pelo Brasil afora.
Os excelentes livros agora saídos, Rumo a Navegantes e Rumo ao Norte do Paraná: fronteiras, fluxos e contatos necessariamente têm que ser seguidos por outros dedicados às zonas serranas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, primeiramente cenário das tropas rumo a São Paulo e,depois, no século 19, invadidas por italianos e alemães principalmente. É claro que não devemos esquecer o litoral açoriano ao sul de Iguape. É esse o conselho que me apraz dar àqueles arquitetos para se tornarem assim os documentadores de uma época às vésperas de uma inexorável equalização comportamental trazida no bojo das comunicações pela computação eletrônica, a responsável pelo desaparecimento das exclusividades regionais. Logo logo o mundo será um chão só, com as mesmas coisas e pessoas diferentes.
nota
NE – A imagem que ilustra o artigo – de autoria do pintor português setecentista Joaquim José de Miranda, sendo a de número 9 de uma sequência de quarenta aquarelas do pintor – simboliza o difícil encontro entre europeus e povos indígenas, aqui, Portugueses e Caingangues dos chamados “Campos do Guarapuava”, hoje interior do Paraná. Nela, "despe o Tenente a chimarra vermelha, véstea ao Indio, e os mais Camaradas vestem os filhos, despindo-se dos seus proprios vestidos”, conforme o texto que acompanha a série. Reproduzida à p. 57 do livro Rumo ao Norte do Paraná: fronteiras, fluxos e contatos, Coleção particular.
sobre o autor
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações, à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. (Perspectiva, 1976); A casa paulista (Edusp, 1999).