Este livro é resultado de frutíferas conversas entre a filosofia e os arquitetos. Conversas paralelas e conversas assimétricas. Estes encontros entre filosofia e arquitetura, entretanto, não são novos. Desde os anos 1970 questões como, por exemplo, aquelas do pós- modernismo instigam a estética filosófica e arquitetônica e daí para cá, o pensamento da desconstrução que veio proporcionar várias possibilidades de intermediações entre estas duas áreas de saber aparentemente tão distantes. A filosofia sempre se debruçou sobre uma espécie de arquitetônica do pensamento, inspirada em elementos e figuras arquiteturais. Basta lembrar os clássicos, Descartes, Kant, os modernos, Heidegger e mais recentemente a desconstrução. A arquitetura sempre foi buscar fundamentos filosóficos como suporte para suas investigações espaço-temporais.
A segunda metade do século 20 caracterizou-se por um incessante questionamento da representação tanto na filosofia quanto nas artes e arquitetura. Nas décadas de 1960 a 1980, o trabalho do arquiteto Peter Eisenman e do filósofo Jacques Derrida partiam de questões da linguagem e da representação para questionar seus respectivos campos de saber. Esse processo, dentro da arquitetura, somado a experimentos paralelos no âmbito da representação arquitetônica - tais como aqueles de Zaha Hadid, Tschumi, Coop Himmelblau ficou conhecido como ‘desconstrutivismo’. Embora não haja transposição direta, o ‘desconstrutivismo’ sempre andou colado ao que em filosofia Jacques Derrida acabou por assumir como desconstrução. Movimento de inversão de pares binários hierarquizados do pensamento ocidental e ao mesmo tempo deslocamento para algo que ainda não se sabe, não é visível, nem previsível. Pode parecer paradoxal que algo que tenha como perspectiva o desconstruir, que inclusive tem como lócus privilegiado uma espécie de 'anarquitetura' possa servir de inspiração para a arquitetura cujo objetivo principal é a construção, o construir. No entanto, um olhar mais atento percebe a aproximação da desconstrução com a construção arquitetônica, principalmente pelo campo aporético e ambivalente que a primeira proporciona.
Desconstrução não é o contrário, ou o avesso da construção, não é sua negação, mas a possibilidade de deslocamento da noção de construir tão cara à arquitetura. Muito pouco da filosofia da desconstrução ficou conhecida, muito ou quase nada do pensamento de Derrida conseguiu penetrar no meio arquitetônico. No entanto, é possível desfrutar até hoje de inúmeras imagens maravilhosas oriundas de arquiteturas totalmente desconstruídas, desmontadas segundo alguns léxicos básicos do princípio montagem/ desmontagem. Simultaneamente às controvérsias do estilo desconstrutivista, Derrida se afastava do discurso da representação e se aproximava a temas ligados à ética e a política. Assim vinham à tona discussões tais como hospitalidade, o perdão, o amor, a alteridade.
Como observou Dorfman, “o pensamento de Derrida desencadeou a discussão sobre a representação e permitiu ir além das especificidades da arquitetura” (Dorfman, 2009). Derrida analisou questões onde a representação pura não é mais predominante, ele denuncia uma espécie de crise da representação enquanto representação e mostra a possibilidade de abertura para outras dimensões, tais como as ético-políticas , dentre elas aquela da hospitalidade, da democracia por vir, da justiça por vir. A discussão aparece em Derrida, não mais nos moldes dos discursos dos anos 1960-1970, mas nos moldes da desconstrução.
Vivemos um tempo de inevitável multidisciplinaridade, e a arquitetura mais do que nunca não pode abrir mão do conhecimento da filosofia, da psicologia, antropologia ou história; de alguma forma todas essas disciplinas cada vez mais vão formando uma rede de entrelaçamento fantástico, borrando pouco a pouco os limites disciplinares.
Muitos foram os filósofos que visitaram a casa da arquitetura no século 20, dentre eles, insistimos, Heidegger, Foucault, Bachelard, Barthes, Lefévre, Eco. Outros, com frequência, batem à porta da filosofia, ou mesmo se tornam filósofos como é o caso de Paul Virilio. E mesmo no Brasil, podemos dizer que já existe um corpo de pensadores que cada vez mais pensam a intersecção da arquitetura com a filosofia.
Como explica o arquiteto e teórico de arquitetura o prof. Silvio Colin, "o termo desconstrução virou moda, virou sinônimo de modificar, questionar, alterar, desmontar etc. Embora nenhum desses termos seja alheio à desconstrução, testemunhamos a uma banalização que pode ser comprometedora. Some-se a isso, o fato que os arquitetos encontraram a maior dificuldade de entender os textos de Derrida. Muitas são as causas desta dificuldade. Não é fácil para um arquiteto, muitas vezes, entender Hegel, ou Kant ou Heidegger, mas é muito mais difícil entender Derrida. Em primeiro lugar pelas dificuldades inerentes ao objeto, estranho ao campo da arquitetura. Em segundo: as dificuldades de leitura do estilo próprio de Derrida, áspero e rebuscado. Sua leitura é um constante ir e vir nestes textos referentes, que também não são tão fáceis. A repetição, releitura, o enfrentamento de textos paralelos são inevitáveis. Para o arquiteto que se propõe a ler Derrida tudo é novidade” (apud Solis, 2009, 8-9).
Talvez, a justificativa desse livro esteja na possibilidade de compartilhar, aproximar esses dois universos distanciados entre si, mesmo dentro da academia. A desconstrução da arquitetura, ao contrário do descontrutivismo arquitetônico que aponta para o formalismo, expõe que o direito à moradia, ao acolhimento, e à cidadania como direitos básicos. A arquitetura da desconstrução aponta para uma arquitetura que deve desenhar o espaço da liberdade para a vida. O que funda a arquitetura não são as pedras, os tijolos ou as estacas, mas sim o amor, a hospitalidade, a capacidade de acolher, abraçar e proteger próprias da arquitetura. Uma arquitetura onde o desejo possa morar, onde a subjetividade possa imperar sobre a domesticação.
É importante compreender o compromisso ético- político da desconstrução num universo acadêmico de arquitetura onde se continua a formar arquitetos para trabalharem em escritórios, no âmbito privado e comercial, produzirem arquitetura como mercadoria, treinados para projetar espaços para diferenciar hierarquicamente os seres humanos, projetando sutis campos de isolamento, tais como, condomínios, shoppings, espaços de consumo, e treinados, de certo modo, a ignorarem a pobreza que perambula pelas cidades e pelo mundo, enfim, a perpetuarem a sociedade de controle e exclusão. O discurso de Derrida revela novos horizontes para a educação onde se recoloca a dimensão ética como sentido.
Como se referiu Dorfman "não há então, uma arquitetura desconstrutivista, segundo os postulados de Derrida. A desconstrução é um processo de ler a arquitetura, de fazer arquitetura e de viver nessa arquitetura. Derrida apontou para uma arquitetura que aceita e integra as diferenças, uma arquitetura do acolhimento, da reflexão e da convivência, que não é bela em feia" (Dorfman, 2009, p.326). Um modo diferente de ‘vi-ver’ o mundo.
Com Derrida há uma tentativa, uma possibilidade de resgate do 'ser' esquecido da arquitetura, o próprio humano. O estudo da arquitetura como objeto autônomo tem se mostrado frágil, insustentável, porque o que funda a arquitetura não é a pedra, a fundação, mas o fundamento humano. A arquitetura, hoje, como todas as outras ciências, e a própria filosofia carece de ética.
Busca-se aqui, então, uma arquitetura, uma filosofia, um pensamento que monte seu acampamento fora, quase fora, quase ali no outro, no quase fora da escrita, da representação, no rejeito, no rejeitado, no que ainda não foi escrito, ou simplesmente despejado fora, fora do campo de saber.
O livro se articula em cinco moradas ou bandas temáticas a partir de algumas obras de Derrida. Textos receptáculos, aberturas propícias à entrada da arquitetura, hospitalidades do saber. Essas ideias e escritos de Derrida, foram agrupadas tentando acomodar os pensamentos, os fios e desafios: acolhimentos, arquivos, espectros.
O livro Derrida e arquitetura apresenta questões que na troca da desconstrução com a arquitetura sejam talvez as mais relevantes. Dirce Eleonora Solis apresenta de modo sucinto o que seriam as possibilidades de imbricar filosofia desconstrucionista e arquitetura. (“Jacques Derrida e a arquitetura”); o enfoque do texto de Fernando Fuão é aquele da hospitalidade e os espaços de acolhimento propostos por Derrida, mas que Fuão compara à collage como trajetória amorosa (“As formas de acolhimento em arquitetura”); Beatriz Dorfman, além de brindar o leitor com os caracteres mais fundamentais da filosofia derridiana em sua relação com a arquitetura, ainda apresenta o pensamento de Peter Eisenman , a análise que a autora faz das Casas, sem contar a belíssima apresentação dos Parangolés de Hélio Oiticica, tudo sob o enfoque da desconstrução (“Arquiteturas do desejo”). O ensaio “Arquitetura – mal de arquivo” de Marcelo Kiefer é bastante ousado. Traz o Derrida da impressão freudiana e relaciona aspectos disto que é do inconsciente com a casa arquitetural. A arquitetura como arquivo e as questões que daí se depreendem. Celma Paese nos traz os seus “Mapas de hospitalidade”, desde os gregos até a desconstrução. E finalmente o texto “Gradiva: Derrida e a espectralidade” de Dirce Solis traz a noção de espectralidade, o mundo dos fantasmas e mortos-vivos e como a desconstrução explora esta perspectiva que está presente tanto na arquitetura quanto na arte, passando pela psicanálise, pelas ruínas de Pompéia e pelas Gradivas de Dali. Enfim, é um conjunto de discussões que evidenciam os encontros talvez não tão casuais entre filosofia e arquitetura.
nota
NE – O presente artigo é a apresentação do livro comentado.
sobre os autores
Dirce Eleonora Nigro Solis e Fernando Fuão são os organizadores do livro Derrida e arquitetura.