O caminho do Anhanguera é o mais recente livro lançado pelo pesquisador Nestor Goulart Reis, que possui graduação em Arquitetura e Urbanismo (1955) e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1962). Atualmente, é professor catedrático da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História e Teoria da Urbanização, do Urbanismo e da Arquitetura, desenvolvendo pesquisas nas seguintes áreas: patrimônio, urbanização colonial e urbanização contemporânea, em especial no que se refere ao Brasil.
Ao observar as cartas geográficas, verificamos que o que hoje associamos aos territórios dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás foi resultado de um longo processo histórico, iniciado no século 16, com a colonização portuguesa. Foram várias as etapas de construção desses espaços quanto aos aspectos econômico, social, político e cultural, configurando panoramas físicos e demográficos distintos ao longo do tempo.
O antigo caminho, antes de terra batida, depois macadamizado e, por fim, asfaltado, tornou-se eixo de transformação territorial, social, econômica, cultural, política e urbana. Trilha, caminho e rodovia, três momentos que representam um contexto histórico, três atos de um mesmo cenário a serem revelados segundo as personagens, os conflitos, as tensões e as “camadas históricas” subscritas durante o percurso e ao longo dos séculos.
A obra de Nestor Goulart Reis está dividida em quatro capítulos. Parece-nos uma pretensão do autor historicizar um caminho traçado e sedimentado ao longo de quatro séculos. Todavia, a tentativa é de esboçar a importância histórica dessa trilha que se transformou depois em Rodovia, através da história socioeconômica, do sertanismo e da mineração, da colonização do Planalto Central com a mineração e, mais tarde, com a pecuária, a agricultura, o segundo ciclo do açúcar paulista, do café e da agroindústria. Em razão de tais mudanças, do desenvolvimento dos meios de transporte, das velhas trilhas chegamos às modernas vias.
O capítulo 1, “A trilha dos bandeirantes: Caminho do Anhanguera” inicia-se com o autor explicando as origens da família Bueno. O patriarca, Bartolomeu Bueno, carpinteiro sevilhano, chegou a Santos no ano de 1572, tempos em que a coroa de Portugal estava nas mãos dos Filipes, reis da Espanha (1580-1640). Em 1583, Bartolomeu já se encontrava estabelecido na Vila de São Paulo, onde se casou com Maria Pires. O casal teve vários filhos, entre eles Francisco Bueno, que se casou com Filipa Vaz. Desse casamento nasceu Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro a ser apelidado de Anhanguera. Entre os anos de 1673 e 1682, Bartolomeu Bueno da Silva percorreu os sertões de Goiás, aprisionando os indígenas. Nessa época, o caminho que Bartolomeu percorreu era chamado de Caminho dos Goiazes. Nessa viagem em busca de ouro e de braço escravo, Bartolomeu foi acompanhado pelo seu filho de mesmo nome. O segundo Bartolomeu Bueno da Silva seguiu viagem para as Gerais em 1701, estabelecendo-se na região de Sabará.
A antiga trilha dos indígenas, percorrida pelos dois Anhangueras, partia de São Paulo e Santana de Parnaíba, dirigindo-se a Jundiaí. Desse ponto seguia em direção ao norte, atravessando os rios Atibaia, Jaguari, Mogi, Pardo, Sapucaí e Gravataí das Velhas, terras do atual estado paulista, depois prosseguia o percurso cruzando pelos rios Paranaíba, Corumbá, Meia Ponte e Claro. As mercadorias eram transportadas por carregadores, índios aprisionados, como seria o costume nos caminhos entre São Paulo e São Vicente e entre Curitiba e Paranaguá.
Com o passar dos anos, as trilhas foram melhoradas e os percursos simplificados. Onde foi possível, estabeleceram-se roças para abastecimento e abrigo dos viajantes. Era uma linha de comércio em que se consolidaram percursos como os do Rio de Janeiro e de São Vicente a São Paulo, Santana de Parnaíba e Jundiaí, e destas aos sertões de Goiás.
“Caminho das tropas” é o título do capítulo 2, que revela como ocorreu a organização territorial a partir da estrada do Anhanguera. Ao longo do caminho, em poucos anos foram se formando áreas colonizadas, devidamente organizadas quanto à vida rural de maneira a permitir o suprimento dos tropeiros e viajantes e o envio de produtos para o litoral da capitania paulista. Nessas regiões acabavam se formando pequenos bairros rurais e povoações. Dependendo do número de moradores e do desempenho econômico do lugar, justificava-se um esforço conjunto para a construção de uma capela no povoado. Conforme o desenvolvimento dessa povoação, os moradores poderiam solicitar uma nova condição urbana, a de freguesia, contando com a presença permanente de um pároco. Depois, com o crescimento populacional e econômico, os habitantes pediam a elevação da freguesia ao status de vila, o que significava independência política e administrativa, autonomia. Durante parte do século 18, o processo de ocupação e colonização fez-se ao longo do caminho.
Nesse movimento de idas e vindas pelo caminho, houve avanços relativamente rápidos, mas, em contrapartida, houve momentos de ritmo lento. Eram reflexos das condições socioeconômicas também política. Alguns dos antigos pousos deram origem a povoações, como, por exemplo, Campinas, Mogi Mirim, Mogi Guaçu, Casa Branca e Franca. Nesse ínterim, entre os ritmos, novos meios de locomoção foram ganhando espaço e alterando a paisagem no decorrer da jornada. Os grandes carros de muares tinham vantagens em relação às tropas em marcha, como proteção contra as intempéries e o soalho, que poderia servir como local de repouso. Já em meados do século 19, o caminho do Anhanguera passou a ser utilizado por trolleys e diligências.
A modernização das formas de cultura, bem como os novos padrões de produtividade, levaram ao enriquecimento os habitantes dos primeiros trechos paulistas. Os grandes latifúndios produtores de café determinaram um rearranjo territorial. O rural e o urbano passaram por mudanças de valor perante a nova sociedade capitalista. Surgiram as ferrovias e, com elas, o eixo do antigo caminho do Anhanguera ganha novos aspectos. As formas de transporte mais uma vez eram modernizadas. Os traçados das ferrovias seguiam aproximadamente as diretrizes deixadas pelos antigos caminhos de tropas, já que estes últimos foram abandonados, relegados como vestígios de um passado distante e a ser esquecido.
O capítulo 3, “Modernização rodoviária”, aborda parte do século 20 como um período de definição e consolidação do eixo rodoviário no sentido capital-interior, tendo como diretriz o Caminho do Anhanguera. Por volta de 1909, Washington Luís Pereira de Sousa, entusiasmado com o automobilismo, participou de uma série de iniciativas em favor dos veículos motorizados, entre elas, destacamos a ideia de reorganizar o sistema penitenciário do estado de São Paulo, de modo que fosse permitido o aproveitamento da mão de obra de presidiários na construção de rodovias. A primeira rodovia construída e inaugurada conforme os propósitos da política da época foi o trecho que liga a capital a Jundiaí, com duas frentes de construção definidas: uma tendo como ponto de início a própria cidade de Jundiaí e outra partindo de São Paulo. Novos trajetos foram definidos numa evolução gradativa.
Entre os anos de 1920 e 1924, Washington Luís, então governador de São Paulo, trabalha para a execução de um grande plano rodoviário, destacando a rodovia que de São Paulo se dirigia a Jundiaí e Campinas e, depois, a Ribeirão Preto, com uma variante a nordeste, em direção às cidades de Mogi Mirim, Mogi Guaçu e Franca. Era um projeto amplo que definia dois eixos diferentes, a partir de Campinas, para contemplar a maior parte do território do Estado.
Em relação ao transporte de cargas, os resultados, a princípio, foram pouco expressivos. O número de caminhões era reduzido, assim como sua capacidade de carga era pequena. Porém, as novas vias de rodagem passaram a ser utilizadas consideravelmente pelos automóveis e por ônibus em viagens intermunicipais. Nos deslocamentos para regiões mais afastadas, surgiam as memoráveis “jardineiras”, veículos fabricados com chassis de caminhões e carrocerias de ônibus, abertas nas laterais e com bancos similares aos dos bondes. As jardineiras percorriam as estradas mais precárias, a partir das principais, ampliando a frente de expansão das rodovias.
No último capítulo, “Grandes rodovias”, Nestor analisa os anos sequentes a 1934, quando o governador Armando de Salles Oliveira, por meio do DER – Departamento de Estradas e Rodagem – busca modernizar o sistema de transporte rodoviário do Estado. Os novos projetos se inspiram nas rodovias norte-americanas e europeias, estradas com duas pistas, pavimentadas e placas de concreto armado. Iniciava-se o ciclo das grandes rodovias.
Em novembro de 1939, foram iniciados os trabalhos de construção da rodovia Anchieta e, em janeiro de 1940, foram iniciadas as obras de construção da rodovia Anhanguera. Os trabalhos seguiram a passos largos, mas, com a chegada da Segunda Guerra Mundial, as obras ganharam um ritmo lento. Após o fim da Guerra, os trabalhos foram retomados. No ano de 1948, foi inaugurada a primeira pista pavimentada da Anhanguera, no trecho entre São Paulo e Jundiaí. Os primeiros trechos ainda foram inaugurados sem pavimentação, com o intuito de sedimentar os aterros. Com o passar dos anos, a Anhanguera chegou a Ribeirão Preto, depois a Igarapava, cidade próxima ao rio Grande, na divisa com o triângulo mineiro.
Com o aumento do tráfego e as novas condições econômicas e urbanas, o governo adota novas diretrizes para o tráfego e para o escoamento da produção. Rodovia Washington Luis, Rodovia Bandeirantes e a própria Rodovia Anhanguera coadunam com as mudanças e modernizações dos centros urbanos regionais; isso significa novas formas de urbanização, indicando uma nova condição de organização do território, que não é mais o mesmo de quatro séculos atrás. O Caminho do Anhanguera transforma-se agora em eixo urbano.
A leitura da obra é leve, rápida e fácil, já que não é carregada de termos e conceitos que, muitas vezes, ao contrário de proporcionar fluidez, emperram o folhear e a compreensão do livro. O Caminho do Anhanguera é ricamente ilustrado com fotos, mapas e desenhos, como os de Francisco Tosi Columbina, Joaquim Cardozo Xavier, William Burchell, Miguel Dutra, Thomas Ender, Charles Landsser, Rufino José Felizardo e Costa, entre outros. Contudo, não deve o leitor esperar do livro uma significativa contribuição à História e as outras ciências afins com que o livro dialoga. Como o marco temporal é amplo, não há condições de aprofundar as questões, um risco que o autor correu.
Assim como os quatros séculos pesam no discurso, o objeto de estudo acentua ainda mais esse peso, considerando o caminho e suas transformações ao longo de um percurso que passa, nos dias de hoje, por quatro estados. Mesmo contando com diversas ilustrações, há determinados trechos do livro em que o leitor sentirá falta de uma espacialização mais bem detalhada, muito em razão da riqueza de informações que ficou restrita apenas ao campo do discurso.
O mérito do livro está, talvez, no fato de ele ser lido como possibilidade de novas pesquisas, novos estudos e novas hipóteses a serem desenvolvidas nos campos da História, da Geografia, da Sociologia, da Engenharia, da Economia, da Arquitetura e do Urbanismo. O autor revela nas linhas e entrelinhas do livro conjunturas que mereceriam estudos mais atentos; como ele mesmo pontua, “basta saber ver”.
sobre o autor
Dirceu Piccinato Junior é arquiteto e urbanista pelo Centro Universitário Moura Lacerda – Ribeirão Preto (SP); Mestre e doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, junto ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo.