O território urbano apresenta as marcas de sua ocupação. Expressão que é dos processos sociais, tem fornecido uma radiografia da vida pública no Brasil de enorme significado ao tema do habitar coletivo, questão central neste livro.
O habitar coletivo, principal desafio da modernidade no século 20 teve, aqui, um desdobramento singular, ajustado ao “desajuste” que nos caracterizou (e caracteriza) como sociedade. Um desajuste aparente entre o que se é e o que se parece ser (ou se pretende ser) (1). Aparece como questão a partir das primeiras políticas habitacionais, em debates calorosos das vanguardas como o travado por Attílio Corrêa Lima (2) na defesa da verticalização versus a casa unifamiliar no lote, considerada, então, o desejo maior das famílias operárias, dada, inclusive, a proximidade da vida e da cultura rurais a que ainda estavam conectadas.
Ou, ainda, aparece como monumento, destacado de uma realidade urbana precária, instaurando uma “ordem de novo tipo”, como bem cabia à modernidade, e que pode ser observada nos projetos e obras do Departamento de Habitação Popular do Distrito Federal dos anos 1950.
Quando o tema do habitar coletivo ganhou proporções reconhecidamente potentes por aqui (anos 1970 e 1980), foi traduzido como forma urbana dispersa, abstraindo-se a complexidade e a diversidade. Foi reduzido ao mínimo necessário, não das teses da modernidade, mas das lógicas do capital e do setor da construção civil (com o apoio do Estado).
Os momentos que se seguiram à implantação dos grandes conjuntos foram de revisão: no que diz respeito à localização, às situações de cidade, às unidades urbanas de referência, às tipologias arquitetônicas e às unidades habitacionais. Entretanto, essa revisão não se configurou como definitiva ao tema. Pelo contrário, ainda que fundamental pelas questões colocadas, foi inexpressiva quando considerada a produção que ainda se deu (perdurando até hoje) a partir das “lógicas” dos núcleos habitacionais isolados.
Nos últimos anos, a problemática do habitar a metrópole se impôs de tal maneira que acabou por desencadear um outro momento que vem sendo reconhecidamente destacado como questão: os centros esvaziaram-se de moradores, o patrimônio material deteriorou-se e as periferias ampliaram-se de tal maneira que são quase irreconhecíveis como lócus urbanos.
As solicitações de projeto, nesse momento, demandam formulações teóricas de novo tipo, que aproximem os desafios sociais e territoriais das questões da arquitetura e do urbanismo, atualizando seus conteúdos. Revendo as tarefas, a partir de novas questões (3).
Héctor Vigliecca tem construído uma trajetória na área da arquitetura e do urbanismo caracterizada por singularidades.
Acompanhou os debates resultantes da revisão crítica das propostas modernas ao mundo urbano, que culminaram nas teses dos anos 60; atuou junto ao centro Cooperativista Uruguaio, que agregava política, projeto e organização social e tem trabalhado essencialmente em políticas públicas no Brasil.
O grande desafio de Héctor e sua equipe tem sido, considerando o território e o trabalho humano, elaborar estratégias teóricas e projetuais de enfrentamento da condição urbana, na maioria das vezes, no nosso caso, precária. Esse desafio passa por aproximar-se de processos de apropriação, legibilidade e legitimação, ou seja, da forma como as pessoas usam o território, identificam-no e legitimam o uso público.
Reconhecer essa condição, para além de reproduzi-la literalmente, tem significado articular e propor situações de cidade que valorizem a experiência e desencadeiem transformação, considerando-se sempre o caráter especulativo, mais que assertivo, de cada uma das propostas projetuais.
Os projetos apresentados no livro “O terceiro território. Habitação coletiva e cidade” representam algumas dessas investigações anunciadas. As diferenças são sempre dadas pela condição urbana que se apresenta como desafio.
A idéia é a de que cada um deles possa desencadear o debate e, para isso, serão expostas as questões motivadoras e explicitadas as investigações construídas.
Dividimos o livro em temas porque eles têm sido apontados pela demanda e porque têm desencadeado reflexões e ensaios projetuais específicos.
Isso não significa que os assuntos não se interconectem, complementem-se, que um não tangencie o outro, como um processo constantemente aberto, não conclusivo.
Os temas têm a ver, essencialmente, com condições de cidade que são referenciais para a construção de um conteúdo de projeto. Serão apresentados quatro:
- o desafio das áreas centrais, consolidadas, em que vazios - precisamente já conformados por estruturas preexistentes – apresentam-se como questão;
- a utilização da quadra como “unidade urbana de referência” (4) para se estruturar arranjos complementares a uma ocupação já existente, que se articule a ela e crie condições novas, a partir de uma escala de cidade reconhecida e legitimada;
- o reconhecimento de estruturas nas áreas urbanas críticas que sinalizam possibilidades ao projeto, à construção de um possível “terceiro território”, em que se somam preexistência e o “novo”;
- a utilização de “estruturas habitacionais urbanas” e de experiências de referência como “embriões contaminadores” ou matrizes multiplicadoras de urbanidade para o enfrentamento das áreas de difícil urbanização.
Os projetos foram apresentados a partir da condição urbana, das concepções que os geraram e das opções adotadas (alternativas espaciais, de implantação, variação das unidades habitacionais, técnicas construtivas etc.).
Vale, ainda, destacar que o desejo de se apresentar as ideias condutoras dos projetos elencados é o de colocar em questão as formulações, estratégias e decisões. Esse livro é uma oportunidade de compor o debate sobre o tema da habitação coletiva no Brasil, sobre nossas cidades e sobre o papel do projeto, sua potência e seu desejado vínculo com as estruturas sociais e com a maneira com que nos tornamos, por aqui, cada vez mais urbanos.
O livro conta com 2 textos de análise e apresentação de Luiz Recamán e Héctor Vigliecca, respectivamente.
notas
1
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
2
LIMA, Atilio Corrêa. Parecer sobre o Plano da Cidade Operária da Fábrica Nacional de Motores. Arquitetura, n. 14, 1963, p. 7-8.
3
TAFURI, Manfredo; DALCO, Francesco. Modern Architecture. New York, Harry N. Abrams, 1976.
4
PANERAI, Philippe; et alii. Formas urbanas: de la manzana al bloque. Barcelona, Gustavo Gili, 1986.
sobre a autora
Lizete Rubano é formada em arquitetura e urbanismo na FAU-Mackenzie e doutora pela FAU-USP. Atualmente é professora adjunto II da FAU-Mackenzie, com extenso trabalho em pesquisa na área de habitação coletiva e urbanismo.