No dia 28 de agosto de 1965, sábado, o Jornal do Brasil trazia a matéria “Coração mata Le Corbusier afogado em praia da Riviera”. A matéria estava na não muito importante página 8 do primeiro caderno. Na capa, mereceu uma pequena chamada, no canto inferior esquerdo: “Le Corbusier morre aos 79 anos na Riviera”. A manchete principal anunciava que “Castelo aceita reunião de chefes revolucionários”, noticiando os contratempos intestinos do governo militar. Ainda na primeira página, temos outras notícias com destaque: “Aumento de servidor em estudo para 1966”, aumento que provavelmente não veio até hoje, e “Gemini-5 cumpre bem sua missão”, atenta à corrida espacial. Mesmo considerando que a morte do arquiteto está na primeira página, é latente o quanto a hierarquia da disposição das notícias nos jornais diários nem sempre retrata a importância histórica dos fatos registrados. O tempo pode ser implacável com os responsáveis por estas decisões. É o caso da morte do maior arquiteto do século 20, que deveria ter um destaque condizente com sua importância.
A cobertura do JB
Contudo, a cobertura da morte reflete a importância do personagem histórico, com mais duas reportagens – “Brasil representado no funeral” e “Arte do concreto e seu pioneiro” – e um artigo assinado – “Um homem chamado Jeanneret”, do editor internacional Luís Edgar de Andrade. A matéria principal, reproduzida na íntegra a seguir, narra os fatos que resultaram na tragédia:
“Nice (AP-UPI-FP-JP) Le Corbusier, o mais famoso arquiteto francês e um dos pioneiros da arquitetura moderna, morreu ontem de um ataque cardíaco, quando nadava numa praia de Roquebrune, Cap Martin, na Riviera Francesa.
Um turista viu Le Corbusier – que tinha 79 anos de idade – em dificuldades na água, advertindo imediatamente a Polícia, mas ao ser trazido à terra o arquiteto já havia perdido o conhecimento, resultando inúteis o tratamento de respiração artificial e aplicação de oxigênio.
Férias
Le Corbusier estava de férias no balneário de Roquebrune, Cap Martin, próximo à fronteira italiana, num hotel de amigos seus. Nadava pouco antes do meio-dia, quando repentinamente desapareceu.
Outro banhista viu que o arquiteto se afogava, e logo deu o alarme. Apesar da rapidez dos socorros, com a participação de bombeiros e de um médico, foi impossível salvá-lo. Seu corpo foi transportado para Menton.
Um gênio
Em Paris, visivelmente emocionado, Oscar Niemeyer declarou, ontem, ao tomar conhecimento da morte de Le Corbusier: o mundo perdeu hoje seu maior arquiteto, o verdadeiro gênio da arquitetura de nossos dias.”
A relevância de Le Corbusier
A já mencionada reportagem “Brasil representado no funeral” apresenta as declarações dos arquitetos Maurício Roberto – na ocasião, presidente da seção Guanabara do Instituto de Arquitetos do Brasil, que solicitou ao ministro das Relações Exteriores que um membro de sua entidade fosse designado representante oficial no funeral em Paris –, Jorge Machado Moreira e Sérgio Bernardes. Moreira, que chegou a passar mal ao saber da notícia, lembrou a intensa interlocução do arquiteto suíço-francês com o grupo carioca liderado por Lúcio Costa no início dos projetos da Cidade Universitária e do Ministério da Educação. Por falar em Costa, a falta de seu depoimento é estranha e só se explica pelo fato que estava na França, ocupado com o translado do corpo de seu amigo para Paris.
A reportagem “Arte do concreto e seu pioneiro” faz uma passagem pelas principais contribuições do mestre – a conceituação e difusão da nova arquitetura baseada em novas tecnologias, sua visão inovadora para o urbanismo, seus planos urbanísticos para Paris e, de forma surpreendentemente correta, sua inserção mais forte no contexto cultural sul-americano: “Enquanto as suas teorias revolucionárias não eram aceitas pela Europa, Le Corbusier realizou numerosos trabalhos na América do Sul, honrado como o fundador da arquitetura moderna”.
O último texto, de Luís Edgar de Andrade, é mais anedótico e fundado em sua própria experiência – narra na parte inicial do texto como descobriu o personagem ao ler um romance onde uma garota queria ser uma arquiteta como Le Corbusier, depois o fato dele próprio ter morado na Casa do Brasil, na Cidade Universitária de Paris, obra que o mestre suíço-francês desenvolveu e construiu a partir de risco original de Lúcio Costa, seus encontros fortuitos com o vizinho quando mudou para as imediações da casa do arquiteto e o via tomando táxis de gravata borboleta, e, por fim, um comentário que ouviu involuntariamente de um desconhecido: “Um mês atrás, vendo a exposição de Oscar Niemeyer, no Louvre, ouvi de um visitante este comentário: o grande complexo de Le Corbusier é não ter feito Brasília”. Andrade ainda tem tempo para lembrar o quanto os franceses eram resistentes às ideias do arquiteto e afirma que a Unidade de Habitação de Marselha era popularmente conhecida na cidade como “A casa do louco”.
Pensando bem, uma cobertura tão completa como esta, mesmo estando na página 8, é algo impensável nos jornais brasileiros atuais, com seus cadernos culturais pautados pela pressa e pelo efêmero, onde “celebridades” ocuparam o lugar dos cérebros. Melhor terminar aqui, com meus parabéns ao JB.
nota
NA – A ideia deste artigo me ocorreu ao receber por email o recorte da reportagem principal, que está transcrita no artigo. Os outros três textos eu consegui encontrar no banco de dados digital do JB, disponível no link https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.