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português
Na análise de Foucault a tragédia grega Rei Édipo traz o relato da construção da verdade a partir de profecias e fatos. No entender do autor, a tragédia grega inicia uma forma jurídica de confrontação de informações, o inquérito.

english
In Foucault's analysis of Greek tragedy Oedipus Rex brings the story of the construction of truth from facts and prophecies. In the author's view, the Greek tragedy begins a legal form of confrontation of information inquiry.

español
En el análisis de la tragedia griega Edipo Rey de Foucault trae la historia de la construcción de la verdad de los hechos y las profecías. En opinión del autor, la tragedia griega comienza una forma legal de confrontación de investigación de la informació

how to quote

VALADARES, Raquel Gomes. Édipo segundo Foucault. O poder, o saber e a construção da verdade. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 176.02, Vitruvius, ago. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.176/6143>.


A conferência integrante do livro A verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault é uma releitura da tragédia grega Rei Édipo. Segundo o autor, a história de Édipo revela o complexo de nossa civilização, o conflito do poder e do saber, e, em virtude deste conflito, o surgimento de uma forma jurídica de construção da verdade, o inquérito. Embora esta tragédia grega, ao longo dos anos, tenha sido limitada à psicanálise, sendo considerada, simplesmente, como uma análise do desejo e do inconsciente humano, a conferência sugere outro aspecto. Inicialmente, retoma às antigas formas de construção da verdade existentes antes da história de Édipo, o jogo de provas, onde o simples desafio lançado compelia os envolvidos a se inocentarem ou se acusarem, sob pena do castigo atribuído pelas divindades.

A história de Édipo inicia com o questionamento do soberano a respeito do motivo do castigo dos deuses para a população do seu governo. Invocando as divindades através do Oráculo, Apolo responde que a punição permanecerá sobre a cidade, até que seja expulso ou punido o culpado da morte de Laio, o príncipe que reinou outrora em Tebas. Não sendo claro o relato de Apolo, os nobres de Tebas convocaram Tirésias (adivinho com atributos de divindade), para auxiliar no desvendamento deste mistério. Como resposta, Tirésias afirmou que, para o fim dos castigos, Édipo deveria cumprir em si mesmo todas as punições prometidas. Édipo se sente coagido a buscar a veracidade dos acontecimentos, uma vez que, o relato de um homem que não vê, pois Tirésias era cego, ameaça seu poder como Rei.

Não satisfeito com estes dois relatos, Édipo continuou sua investigação na tentativa de construir a verdade. Ele ouviu Jocasta, sua esposa e viúva de Laio, que afirmou que o soberano morto fora assassinado por um grupo de homens. Assim, ele trouxe a memória os fatos que constituíram seu passado, incluindo a profecia de que ele seria o assassino de seu pai e o profanador do leito de sua mãe. Diante destes relatos sobre o seu futuro, Édipo revelou o motivo pelo qual fugira de Corinto; se atemorizou ao lembrar que ele matou alguém antes de chegar à Tebas, porém estava sozinho. O que causa tranquilidade momentânea é saber que o seu ingresso à Tebas foi marcado com a destruição da Esfinge, quando este decifra seu enigma. Édipo detém o saber, mas este excesso de confiança no próprio saber proporcionará sua queda do poder. Jocasta, perturbada com a verdade que poderá aparecer, instigou o seu esposo a deixar as investigações, pressentia que desvendar completamente a verdade não traria a paz para o Rei.

Por fim, um mensageiro de Corinto chegou a Tebas informando que Políbio, o pai de Édipo, estava morto. Édipo sentiu-se livre, porque o decreto dos deuses estava frustrado, ele não era o assassino do seu pai; contudo, angustia-se novamente, pois ainda há a previsão das divindades que ele profanaria o leito de sua mãe. A partir deste momento, a construção da verdade para Édipo assume outra direção, o depoimento de quem vivenciou os fatos mencionados, decisivos para o desfecho da história. O mensageiro revelou que Édipo não era filho do soberano de Corinto, fora deixado por um pastor que, num gesto de piedade, não matou a criança filho do Rei de Tebas. Este pastor era o mesmo que acompanhava o Rei Laio no dia de seu assassinato, e foi ele quem revelou que Édipo era o filho de Laio e Jocasta. Por ordem de Laio, o pastor fora compelido a matar a criança recém-nascida, abandonando-a pendurada pelos pés, por isso seu nome é Édipo (que significa pés inchados). Uma profecia declarada pelo Oráculo imputou a Laio uma morte cruel, ser assassinado pelo seu próprio filho, além do que, este mesmo filho traria a vergonha à sua mãe. O pastor é a peça fundamental para o encerramento das investigações de Édipo; é ele quem revela que Édipo é o assassino de Laio e o profanador do leito de Jocasta. A tragédia encerra com o suicídio de Jocasta e a cegueira provocada propositalmente a Édipo.

Os depoimentos mencionados formam o que no texto é denominado a lei das metades. Um destes depoimentos se encaixa ao outro de mesmo nível, na mesma hierarquia de classificação de poder e de tempo. O relato de Apolo (nome que significa Luz) ajusta-se ao depoimento de Tirésias (adivinho cego), ambos possuem algo de divino em suas condutas, Apolo é um deus e Tirésias possui uma humanidade divinizada. As metades falam através de profecias, produzidas por metáforas. Os dois depoimentos são enigmáticos, decretam o futuro da cidade (ficar livre do castigo através da punição do homicida) e o futuro do Rei (cumprir as punições prometidas em Édipo).

Diante dos relatos futurísticos, o não entendimento das profecias impulsiona Édipo a buscar incessantemente o desvendamento da verdade. O que Édipo fez no passado (decifrou o enigma da Esfinge) revela seu saber, fato importante para que ele fosse constituído soberano em Tebas. Os relatos de Jocasta, nobre componente da sociedade tebana, estará no mesmo nível do depoimento de Édipo, também nobre soberano. Ambos mencionam os fatos do presente e relatam apenas suas vagas lembranças.

 Os depoimentos do pastor e do mensageiro se associam; estes dois últimos integrantes da tragédia grega encontram-se no mesmo nível (servidão) e retomam ao passado para a construção da verdade. O exercício do poder se ajusta com a junção das metades constitutivas da verdade. A verdade da divindade se ajusta à verdade do divino homem; a verdade da nobreza se ajusta entre si; e a verdade daqueles que nasceram para servir também se ajustam.

Édipo não questiona seus valores de inocência, sobretudo deseja preservar sua permanência no controle do poder como soberano; o poder dos soberanos (Laio e Édipo) é ameaçado com as profecias lançadas pelas divindades, fugir das terríveis profecias é o objetivo de ambos.

 No início da tragédia, quando Édipo se sente ameaçado, ele interpela Creonte, irmão de Jocasta, supondo uma tentativa de usurpação de poder. No entanto, Creonte, mediante uma antiga prática para a obtenção da verdade (jogo das provas), desafia Édipo e comprova sua inocência.

 A história não pode ser analisada sob uma perspectiva linear, ela é resultado de múltiplas rupturas; a sociedade é analisada como um ato contínuo. Ao contrário do que se vê nas demais ciências, não existe uma cadeia evolutiva rigorosa e sistematizada nas relações sociais. O que se vê é a existência de condições pertinentes ao surgimento de relações descontinuas que podem se repetir ao longo dos anos, de acordo com a necessidade do ser individual, isto é, a sobreposição. O inquérito surge a partir de Édipo, o primeiro testemunho das práticas judiciárias gregas, entretanto, desaparece na Idade Média, e muito tempo depois reaparece como o meio legítimo de pesquisa da verdade.

A tragédia grega não é uma representação, trata-se de uma produção da sociedade. O uso desta tragédia como balizadora das teorias que propõe a existência do desejo relacionado à ideia da falta, como propõe a psicanálise freudiana, é contraposta, pois nada falta ao desejo. Ele produz e é produzido incessantemente, portanto, a história de Édipo não está relacionada à questão de desejo. Não é uma história isolada, trata-se de um romance histórico-mundial, constituído nas premissas da história universal. Seria um ultraje ver a história do Soberano Édipo sob a visão da estrutura e ordem familiar, a questão trata da limitação do saber pelo poder.

O temor de Édipo pela busca incessante da verdade não se encontra em descobrir sua verdadeira origem, o que lhe causa maior angústia é a possibilidade de ser desconstituído do poder que ele possui.  Édipo confunde-se com o próprio Estado; ele não distingue sua vontade dos interesses estatais. Para o bem social de Tebas ele necessita descobrir toda a verdade da sua origem, além de banir qualquer ameaça que o possa desconstituí-lo do poder, ninguém pode saber mais do que o Rei. Como soberano, ele concentra em suas mãos todos os poderes (executivo, judiciário e legislativo), perder tais poderes lhe impulsiona a não desistir da elucidação destes mistérios.

Por haver decifrado o enigma da Esfinge e reerguer a cidade das lamúrias, Édipo sente que ao revelar a verdade, mais uma vez, através do saber, deixará a cidade de Tebas livre dos castigos e maldições das divindades e toda a cidade será eternamente grata, louvando-lhe. Todavia, o seu saber requer a solidão.

Gustave Moreau, Édipo e a Esfinge, 1864
Imagem divulgação [Metropolitan Museum of Art]

A história de Édipo simboliza o controle estatal na limitação do saber. Por conta da busca incessante da elucidação da verdade o seu saber está atrelado ao sofrer. Enquanto Jocasta suplica a Édipo que encerre com as investigações, ele a ignora completamente e pede para que ela não lhe importune. A palavra grega que define saber também significa ver, de modo que o saber e o ver estão atrelados. O fim de Édipo é a cegueira total, o abandono e a desconstituição de seu poder. A expulsão de Édipo de Tebas ocorrerá porque ele mesmo imputou esta pena ao transgressor e provocador dos castigos.

O saber excessivo será sinônimo de sofrimento e solidão, por isto, esta é uma tragédia que simboliza o poder opressor em velar o saber. O excesso de saber é apresentado como fato gerador do sofrimento da sociedade, na tentativa de justificar porque só alguns devem possuir o saber em detrimento dos demais.

sobre a autora

Raquel Gomes Valadares é especialista em Gestão Pública Municipal pela UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFV – Universidade Federal de Viçosa.

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resenha do livro

A verdade e as formas jurídicas

A verdade e as formas jurídicas

Michel Foucault

2013

176.02
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