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O livro FAM, de Sergio M. Marques, relaciona – segundo Carlos Eduardo Comas – a história familiar e a história de uma escola, tentando constituir as bases para uma história da arquitetura moderna gaúcha.

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COMAS, Carlos Eduardo. Arquitetura gaúcha: história de família, história de uma escola. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 176.04, Vitruvius, ago. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.176/6148>.


Família, já disse alguém, melhor em álbum. Ou livro, como este, de Sergio Moacir Marques sobre as obras de Carlos Maximiliano Fayet, Cláudio Luis Araújo e Moacyr Moojen Marques, arquitetos modernos da primeira geração na Porto Alegre do Rio Grande do Sul. Ou seja, arquitetos formados entre 1953 e 1955, profissionais respeitados que foram professores de projeto na Faculdade de Arquitetura da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Araújo focado na microescala do design e dos interiores, Moacyr e Fayet na macroescala do urbanismo e do paisagismo. Nem sempre os três foram sócios, mas as iniciais dos três sobrenomes identificam o edifício que projetaram e construíram como moradia entre 1964 e 1968, o FAM de um apartamento por andar e família. Sim, Sergio é arquiteto, safra 1984, filho de Moacyr, e sobrinho por contiguidade do Araújo e do Fayet. Quem sai aos seus não degenera. Não bastasse, Sergio é da mesma geração que o filho de Miguel Pereira, sócio e coetâneo de Fayet, Araújo e Moacyr numa obra chave, a Refap, a Refinaria Alberto Pasqualini da Petrobrás em Canoas.

Tem desdobramento nesta história de família ampliada. Primeiro, ela é antecipada pela dissertação de mestrado de Sergio, defendida em 1999 e sugestivamente intitulada Arquitetura contemporânea no Rio Grande do Sul: mudanças de paradigmas nos anos 1980. Foi orientada por Elvan Silva, ex-aluno de Araújo, Moacyr e Fayet, que enveredara para a teoria naquela década de crise. Elvan foi um estudioso das relações entre prática profissional, conhecimento e ideologia na arquitetura, especialmente atento às questões doutrinárias na arquitetura moderna. Segundo, o presente livro se baseia na tese de doutorado de Sergio, defendida em 2012. Foi orientada pelo autor deste prólogo, outro ex-aluno de Araújo, Moacyr e Fayet, interessado desde a fundação em 1980 do Propar UFRGS na revisão dos projetos exemplares da arquitetura moderna brasileira cariocas e paulistas. Confessamente cria de Araújo, seu assistente e depois sócio menor, colaborou com Moacyr no estudo do bar da nova sede do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento Rio Grande do Sul, obra de Fayet, e integrou a equipe formada por Fayet e Araújo para desenvolver o projeto final da Central de Abastecimento de Porto Alegre.

Nem por isso a história de família em questão se esgota na genealogia ou na apologia. Ao reelaborar “A raposa e as uvas” em suas Fábulas fabulosas, Millor Fernandes argumenta que, se frequentemente “quem desdenha quer comprar”, a moral da versão antiga, nos tempos novos cabe reconhecer que “a frustração é uma forma de julgamento tão boa quanto qualquer outra”. Tão boa quanto seu contrário, a satisfação, pode-se acrescentar. Em outras palavras: inevitável, a subjetividade não é necessariamente inimiga do rigor no trato de qualquer tema. Não se trata aqui de reivindicar a familiaridade, mas de tirar partido da mesma com inteligência. Prestando atenção, como Sergio faz, às peculiaridades da experiência dos três arquitetos, que atuam na província inda que em sua capital, e província literalmente marginal na geografia brasileira, inda que não isenta de capital cultural. Para Sergio, viver na província não implica em ser provinciano, se por tal se entende ficar atrelado a perspectivas atrasadas ou superadas, ser desprovido de originalidade ou refinamento, exibir conservadorismo preconceituoso e carecer de sofisticação.

Edifício FAM, Porto Alegre RS, 1968. Arquitetos Carlos Maximiliano Fayet, Cláudio Luis Araújo e Moacyr Moojen Marques
Foto divulgação

De fato, ao menos antes da implantação da aldeia global, a província resiste à adoção de inovações formais, sejam autóctones ou gestadas na metrópole. Por exemplo, os grandes projetos do Governo Federal nos anos 1940 para Porto Alegre não prosperaram, mesmo considerando que a presidência do gaúcho Getúlio Vargas os apoiava. E que Jorge Moreira, gaúcho embora radicado no Rio, assinava sozinho a proposta do Hospital de Clínicas da UFRGS, e em equipe com Affonso Eduardo Reidy as duas propostas para a sede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Tampouco Oscar Niemeyer conseguiu aprovar seu projeto para a sede do Instituto de Previdência do Estado, que feria a estética da Avenida Borges de Medeiros segundo os todo-poderosos engenheiros municipais, muitos dos quais engenheiros-arquitetos. O Museu das Missões Jesuíticas de Lúcio Costa em São Miguel é a exceção que confirma a regra, sua modernidade camuflada pela reconstrução do passado – longe de Porto Alegre.

Tudo isso posto, as obras que Sergio examina mostram que viver à margem dos centros de cultura e poder tem suas vantagens. Há mais tempo para pensar antes de agir, e pode-se cultivar um certo grau de autonomia e independência de pensamento em relação aos centros. Afinal, o conceito de centro é relativo: toda margem encerra uma vocação de centro, e no presente São Miguel é periferia comparado a Porto Alegre. Além do mais, a margem gaúcha é especial na sua proximidade com os países do Prata, e se torna ponte entre duas línguas irmãs, mas não univitelinas. As Missões Jesuíticas eram espanholas e não portuguesas, como Lúcio Costa argumentava, mas a discussão da maior ou menor influência platina na formação do gaúcho não pode esquecer a familiaridade entre os de cá e os de lá.

De outro lado, no campo do urbanismo, nos anos 1950, como Sergio reitera, a formação em Montevidéu deixa seus traços na atuação de Evaldo Paiva e Demétrio Ribeiro, enquanto o uruguaio Fresnedo Siri presta homenagem à arquitetura moderna carioca no Hipódromo do Cristal do Jockey Club do Rio Grande do Sul e no edifício de apartamentos Esplanada. Não menos importante, a Ceasa-RS teve o engenheiro uruguaio Eladio Dieste por consultor. O paulista Abrão Sanovicz, em visita ao escritório da Ceasa, debruçou-se na minha prancheta e criticou as abóbadas e cúpulas no desenho, dizendo que não eram arquitetura brasileira. Não admitia que a bandeira do racionalismo estrutural pudesse se desfraldar de outro jeito que não aquele estipulado pelo eixo Rio-São Paulo.

Praia de Belas, Porto Alegre RS, 1959. Arquitetos Carlos Maximiliano Fayet (coordenador), Edvaldo Pereira Paiva, Roberto F. Veronese, Moacyr Moojen Marques e equipe
Imagem divulgação

Evidentemente, era sua visão, ou falta de. Pois a história que Sergio relata e sustenta é a reivindicação de uma arquitetura feita no Rio Grande que é capaz de falar em termos mais abstratos e universais que o eixo Rio-São Paulo. Em parte, poder-se-ia argumentar, porque os programas podem ser complicados e extensos como uma refinaria, mas não tem vocação monumental, e os orçamentos não deixam muito espaço para arroubos, curvas ou mega-balanços. De outra parte, porém, trata-se mesmo de convicção, ainda que não seja explícita em palavras. Mais que Le Corbusier, Niemeyer e Artigas, as referências inferidas incluem Los Angeles e Chicago, Mies van der Rohe como Craig Ellwood e algum Richard Neutra, talvez mesmo Rudolf Schindler. Por baixo do pano, às vezes em óbvia ressonância com o Crown Hall e o edifício Seagram de Mies tanto quanto a casa Rosen de Ellwood, outras vezes sugerindo comparação com a casa de praia Lovell de Schindler, sempre fundamental, está a composição modular apoiada em grelhas e eixos, em última instância herança de Durand, ponto de convergência entre Belas-Artes e Politécnica. A simetria, dizia Julien Guadet, último teórico da Beaux-Arts parisiense, é a regularidade inteligente. A arquitetura, dizia Auguste Perret, aluno de Guadet, é a arte de fazer cantar o ponto de apoio, e não lhe importava, como aos engenheiros de Porto Alegre, que as vigas estivessem aparentes, dificultando a liberdade de planta.

A esse cantar gaúcho se associa pelo menos o quarto homem na Refap, Miguel Pereira, e esse cantar, nos mostra Sergio, não é enfático. Nem exacerba o debate expressivo entre estrutura e vedação, nem se exibe heroico ou primitivo. Tem uma certa afinidade com o jeito manso de Lúcio Costa, para quem a arquitetura moderna não queria se furtar às imposições da simetria, simplesmente a entendia no seu sentido original: “com medida”. Enfim, se acompanha de uma materialidade modesta e austera mas nada brutal, apenas apropriada, que busca ser racional no sentido de razoável. No plano da cidade, as evidências sugerem a defesa de um traçado racional mais estrito que o de Brasília, formalizado com traços germânicos pronunciados no seu racionalismo de barras paralelas. Sem nenhum preconceito contra o subúrbio jardim, de fato insistente no endosso do recuo de jardim. Tudo devidamente referendado pelo peso da colônia alemã no meio da construção porto-alegrense.

De repente, a ficha cai. De acordo com o dicionário, escola é o termo correto para designar conjunto de pessoas que segue um sistema de pensamento, uma doutrina, um princípio estético. A definição não implica multidões, mas consistência num certo período, ar de família. Sergio mediante, salta uma escola de arquitetura gaúcha, e a gente não sabia? Pois é. Parece. A história de família é a história de uma escola, assunto público e não privado. Para além do reconhecimento de uma produção de qualidade inconteste, a ideia pode virar baliza, e estimular a discussão sobre a arquitetura gaúcha e brasileira no passado e no presente, sobre quem fomos, quem somos e o que queremos ser. Está de bom tamanho, boa medida. Pertinente e oportuno em tempo de nova crise profunda no estado e no país, não deixa de aportar um fio de esperança. Porque, expandindo palavras de Alvar Aalto, outro mestre do moderno, nada antigo pode renascer, mas nunca desaparece totalmente, e o que um dia nasceu sempre reaparecerá de outra forma. Eia, sus!

nota

NE – O presente texto é o prefácio do livro comentado.

sobre o autor

Carlos Eduardo Dias Comas é arquiteto e professor titular da FAU UFRGS.

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FAM

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Sergio M. Marques

2016

176.04
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