Roberto Schwarz nasce em Viena no ano de 1938 e, devido sua origem judaica e em decorrência da Segunda Guerra Mundial, se muda para o Brasil no início da década de 1940. Aqui, estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e se aproxima dos estudos de linha marxista. Chega a morar no exterior em duas ocasiões – nos anos de 1961 a 1963, quando faz mestrado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos; e entre 1969 e 1978, quando desenvolve seu doutorado após se exilar na França em decorrência da perseguição da ditadura militar. Professor, crítico literário – em especial da obra de Machado de Assis –, mas principalmente intérprete da sociedade brasileira, como é reconhecido.
Em 1973, enquanto vivia em Paris, escreve o ensaio "As ideias fora do lugar" (1), cujo texto, apesar de escrito há mais de 40 anos, ainda traz luz para o entendimento do campo ideológico contemporâneo em nosso país. O texto pretende determinar algumas contradições presentes no campo das ideias no Brasil, mas também apontar as incoerências entre o nosso discurso ideológico e a práxis. O autor, já no final do texto, evidencia seu objetivo ao escrever o ensaio:
“Procurei ver na gravitação das ideias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase uma sensação de que no Brasil as ideias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e de parasitismo no país, e nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual na Europa, revolucionada pelo capital” (p. 63).
Essas contradições perpassam diversos campos de nossa atuação – como o político, o econômico e o social –, mas chegam a gerar um "torcicolo cultural" até em nossas expressões artísticas. Sem ser exclusivos do Brasil, esses deslocamentos são encontrados em diversos países economicamente dependentes, conforme evidenciado pelo autor ao comparar aspectos incoerentes presentes nas literaturas brasileira e russa, por exemplo. Todavia, o quadro nacional apresenta aspectos peculiares, com características ocorrentes apenas em cenário tupiniquim. As ideias de origem europeias ganham aqui uma nova condição, em que a diferença, comparação e distância já fazem parte de sua definição. É interessante notar que, segundo o autor, esse deslocamento não se dá por ignorância, mas no sentido de ratificar nossa condição de nação na periferia do desenvolvimento capitalista.
Schwarz tangencia em seu texto diversos conceitos – liberalismo, escravidão, produção do trabalho, sociedade do favor –, já explorados por outros intérpretes da formação do Brasil, tais como Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, dentre outros. Observa-se, contudo, que seu objetivo não é discorrer sobre suas definições em cenário brasileiro, mas sim sobre a contradição entre eles, inicialmente enfatizada em duas ordens: na coexistência de ideários antagônicos em uma mesma sociedade; e no deslocamento do sentido original ao adentrar o território nacional. O autor opta por demonstrar esse deslocamento ao tratar do liberalismo e da escravidão, tema recorrente ao longo do texto, devido ao seu gritante contraste em relação aos ideários originais:
“Cada um a seu modo, estes autores refletem a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu. Sumariamente está montada uma comédia ideológica, diferente da europeia” (p. 48).
O liberalismo que faz parte do discurso que motivou a independência não só do Brasil, mas das diversas colônias da América, tem o trabalho livre como um de seus principais pressupostos. Por outro lado, a escravidão permaneceu intocada, mesmo quando as potências europeias se desvincularam do sistema, mantendo-se durante muitas décadas a opressiva estrutura de divisão do trabalho nas nações independentes. A rigor, enquanto imperou o sistema produtivo baseado no latifúndio, o discurso da escravidão fez mais sentido que os ideais dos liberais. “No campo das convicções a incompatibilidade é clara” (p. 49). No Brasil, o período que separa a independência e a abolição é de 66 anos, situação melhor apenas, no quadro americano, do que o caso dos Estados Unidos, onde o intervalo foi de 89 anos.
Segundo o autor, a incoerência presente no campo discursivo é apenas possível devido a nossa formação social consolidada desde a colonização, que se estruturou em três classes, simbolicamente expressas nas figuras do latifundiário, do escravo e do “homem livre”. Esse último seria o mais relevante na argumentação de Schwarz, pois sua ascensão social depende do mecanismo do favor cedido pela classe hegemônica. Qualquer profissional liberal na colônia – o médico, o tipógrafo, o comerciante, os operários, dentre outros – depende, para a realização de suas funções, da liberação por parte de algum “senhor” que exerce controle sob regiões além de sua propriedade. O favor é a mediação universal, que perdura na estrutura social brasileira com diversas formas e nomes, sendo o agregado sua caricatura (p. 51).
Nesse cenário, as ideias fora do lugar ultrapassam o campo do discurso e registram igualmente a relação dissociada entre pensamento e práxis dos brasileiros. Essa seria uma segunda relação a ser observada no cenário dos deslocamentos das ideias. O favor é símbolo da dependência, da exceção à regra, da cultura desinteressada, da remuneração de serviços pessoais, ou, seja, uma contradição escamoteada que permite converter os valores em seu anverso: “assim, com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc.” (p. 53).Vale ressaltar que o quiproquó das ideias e sua aplicação no cotidiano é do interesse de poucos, sendo de fácil esgarçamento e esquecimento. Assim, as incoerências precisam ser constantemente reinventadas, mudando suas feições e nomenclaturas. Contudo, o favor é sua sustentação em todas as circunstâncias.
Talvez, o principal problema dessa situação brasileira evidenciada por Schwarz é sua perpetuação na história do país, mantendo validade nas mudanças de cenário da colônia, reinados, república... Originárias da gênese da nossa nação, a apropriação de ideias europeias sempre em sentido impróprio perdura e se torna um elemento ativo de nossa cultura: “conhecer o Brasil era saber desses deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécies de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza” (p. 60). E, de fato, esse ensaio permanece atual, pois os deslocamentos tais como evidenciados no texto continuam ativos, em especial nos campos conceituais que se propõem a entender nossa formação social.
Para os arquitetos e urbanistas, que lidam com o espaço gerado pelas dinâmicas de reprodução social, o texto do Schwarz é especialmente pertinente, pois elucida diversas incoerências que têm sido marcas da formação dessa profissão que almeja observar, identificar, discutir, analisar e planejar a cidade, atuando na complexidade de suas relações sociais. A proeminente urbanista Ermínia Maricato publica no ano 2000 um capítulo de livro denominado “As ideias fora do lugar, e o lugar fora das ideias” (2) e apresenta o texto de Schwarzda década de 1970, como ferramenta analítica para entender o pensamento e a práxis do arquiteto-urbanista contemporâneo.
Segundo Maricato, há uma grande lacuna entre a “retórica e a prática” do planejamento urbano no Brasil. No campo discursivo, os textos que pretendem nortear o desenvolvimento urbano estão fincados nos direitos universais, pautados pela igualdade preconizada na constituição brasileira, na normatividade cidadã, enquanto em sua prática prevalecem a cooptação, o favor, a discriminação e a desigualdade (p. 135). A principal regulação urbanística em contexto nacional é o Plano Diretor Estratégico, que tem ao longo da história defendido em seus conceitos, princípios e objetivos a necessidade de se prever uma função social aplicada ao desenvolvimento da cidade. Esse é um texto recorrente em diversas cidades brasileiras desde a década de 1970. Entretanto, esse arcabouço legal é antagônico à prática de crescimento da cidade, e não apenas em seu território informal, mas, sobretudo, nas ações da cidade formal, sob liderança do poder executivo. Maricato cita diversos exemplos dessas incoerências ocorridos na cidade de São Paulo (p. 140-143)
Em um primeiro momento, esse descompasso é notado na importação de modelos tecnológicos, culturais e estéticos na tradição da escola urbanística. O desenvolvimento da cidade de São Paulo, por exemplo, foi almejado em nossos planos pela ótica de ideários ora de embelezamento, ora tecnicista, tanto estadunidenses como europeus, sendo observáveis nos diversos planos de urbanísticos ao longo do século 20: Plano Bouvard (1911), Plano de Avenidas (1930), Plano Urbanístico Básico (1969) e os Planos Regulatórios – PDDI, 1971; PDE 1988; PDE 2002, PDE 2014, sendo estes os principais. As bases conceituais para desenvolvimento dos pressupostos que embasaram a constituição desses planos estão alinhados aos pensamentos urbanísticos contemporâneos em cada época, e alguns deles chegam a ser protagonizados por autores internacionais renomados. No plano da retórica, o planejamento urbano paulistano importa o que havia de melhor acerca dessa temática no contexto internacional.
Uma segunda incoerência apontada por Maricato tem como base o momento em que o planejamento urbano ganha notoriedade em âmbito nacional, em especial a partir de 1970, acarretando um incremento do interesse pelo assunto nas escolas de arquitetura, impulsionado pelas demandas de mercado. “Sua eficácia, entretanto, foi, segundo Villaça, fundamentalmente ideológica, ou de aplicação restrita, eu acrescentaria. Durante esse período, o tema do planejamento urbano no Brasil alimentou muitas e diferentes atividades intelectuais: teses, dissertações, congressos, reuniões, cursos, etc” (2000, p. 139). Os urbanistas acabam centrando sua atenção em propostas formais legislativas, como se o problema urbano fosse a ausência delas. A realidade, porém, é o crescimento da cidade a partir de uma lógica que não reflete o esforço formal e conceitual dos urbanistas à época.
Segundo a autora, vivenciamos, no campo conceitual, as ideias fora do lugar e, no campo real, o lugar fora das ideias. As cidades brasileiras têm grande parte do seu território, talvez a maioria, formado por um tecido urbano cujo processo constitutivo está fora das lógicas conceituais ensinadas na maioria dos ambientes acadêmicos. Em contraponto, a realidade das dinâmicas do desenho citadino é ignorada. São citadas por ela três características presentes no processo de urbanização real, que é o arcabouço da sua lógica de reprodução: industrialização com baixos salários associada ao mercado residencial restrito; gestões públicas do urbano pautadas na tradição de investimento regressivo; legislação ambígua ou aplicação arbitrária da lei (p. 152-164). Nesse sentido, Maricato afirma que a representação discursiva que se faz da cidade não equivale à sua realidade física; ao contrário, contempla interesses específicos: “é evidente que a representação ideológica é um instrumento de poder – dar aparência de ‘natural’ e ‘geral’ a um ponto de vista parcial, que nas cidades está associado aos expedientes de valorização imobiliária” (p. 165).
Ermínia Maricato, encantada com a eficácia dos conceitos desenvolvidos por Roberto Schwarz para entender a realidade urbana atual, discorre sobre a perpetuação das ideias fora do lugar mediada pela sociedade do favor no campo específico do planejamento urbano. Assim, a relevância interpretativa do conceito de “ideia fora do lugar” se evidencia ao se observar a continuidade da estrutura social sob o pilar do favorecimento pessoal, que nos alerta sobre a reprodução inconsciente de um conhecimento que reitera a condição de dependência. Nas escolas de arquitetura e urbanismo, por exemplo, ainda se perpetua o estudo da nossa cidade mais emblemática, Brasília, apenas sob seu ponto de vista da cidade oficial planejada preconizada em seu plano diretor. Poucos estudam a real cidade de Brasília, com todas as suas características, desigualdades e incoerências (3). Isso é para nós um alerta sobre a necessidade de reflexão ao desenvolvermos ciência nas áreas da formação social brasileira, e evidencia a pertinência contemporânea em se estudar Roberto Schwarz.
notas
NA – o presente texto é desenvolvimento da apresentação realizada na disciplina “Teoria do conhecimento: história e cultura”, ministrada pelos professores Carlos Guilherme Mota e Abilio Guerra no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, segundo semestre de 2016.
1
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Ensaios selecionados. São Paulo, Companhia das Letras, Penguin Books, 2014, p. 47-64.
2
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar, e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Coleção Zero à esquerda, Petrópolis, Vozes, 2000.
3
NE – destaca-se nesse campo da exceção o trabalho hercúleo de Aldo Paviani, professor aposentado da Geografia da UnB, no sentido de entender a Brasília real, com o plano piloto e suas cidades satélites. Organizador de diversos livros sobre a capital federal, Paviani tem uma série de artigos sobre a questão publicados no portal Vitruvius:
PAVIANI, Aldo. “Vazios” urbanos: terra para preservar ou para especular?. Minha Cidade, São Paulo, ano 09, n. 105.03, Vitruvius, abr. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.105/1856>.
PAVIANI, Aldo. Brasília, a geografia da capital e da metrópole. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 185.03, Vitruvius, dez. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.185/5854>.
PAVIANI, Aldo. Brasília: conceito urbano espacializado?. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 051.00, Vitruvius, set. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.051/552>.
PAVIANI, Aldo. Patrimônio urbano em Brasília. Passado e futuro em confronto? Minha Cidade, São Paulo, ano 12, n. 144.09, Vitruvius, jul. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.144/4443>.
PAVIANI, Aldo. Planejamento urbano versus improvisos. Há limites para a expansão urbana? Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 159.02, Vitruvius, out. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.159/4901>.
PAVIANI, Aldo. Políticas públicas. Os problemas "brasileiros" da periferia de Brasília. Drops, São Paulo, ano 05, n. 010.02, Vitruvius, jan. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/05.010/1639>.
sobre o autor
Matheus de Vasconcelos Casimiro é arquiteto e mestrando pela FAU Mackenzie, e diretor técnico da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente do município de São Paulo.