Esquadrinhada por trilhas e picadas, a floresta respira com a humanidade a que dá alento, tanto à que, entranhada e quieta, se esconde, quanto à que, fronteiriça e cambiante, se exibe. Fachada para os navegantes de rios e furos que os amarram às falas e imagens ribeirinhas, a margem marca, copada massa ou roça rala, paradas e passagens para uma floresta mais profunda, não por isso, virgem. Rosa-dos-ventos na estreiteza cursiva dos igarapés e, não menos, na anchura pasmada dos igapós, a floresta contudo deflete os mapas, que ela mesma engendra, erguendo paris de labirintos tendentes à exatidão da espiral logarítmica ou vedações por trançamento de ramos e folhas para tinguijadas. Esses desvios, em que a zagaia mata os viventes encurralados, têm sentido invertido nos da embarcação que ora desencalha de um baixio, ora contorna por terra um bariri, indo, vida, deslizar adiante.
Na rosa-dos-ventos, os rumos firmam cartografias, enraizando-se a floresta no contínuo e no quantitativo da dimensionalidade. Homogênea pelo isotropismo que assinala a universalidade da mensuração, não a podem desorientar os paris e cercados por esta também reduzidos ao dimensional. Hiperbólica na extensão da homogeneidade aos desvios, esta hipotipose logra, cínica, evidenciar a desvalia da oposição da natureza ao artifício: ironizando a virgindade romântica da floresta, denuncia, no avesso de tal anseio, a retomada do desmatamento liberado pelos golpistas que, em 2016, torturaram a constituição, mas, aquém daquela pureza e desta infâmia, associa as duas noções, avizinhando-as. Pois, longe de sertão, a floresta a ambas reúne, à natureza como princípio e elemento, ao artefato como sua sequência e composição, abstraindo-se, aqui, a intervenção modificadora no vivente e, em sentido oposto, a naturalização do artifício, assim, o asselvajamento do cultivado.
Derivado do primitivo, o artifício a ele adere nos discursos que distinguem a utilidade como parte incontornável de si mesmos: em Plínio, o Velho, a História natural, encabeçando embora as matérias tratadas os elementos da natureza, a estes anexa os usos como parte versante sobre os artefatos. Elidindo-se, aqui, a discussão sobre a partição do discurso por gêneros que o constituem misto retórico, a utilidade, recorrente nos tratados de artes é explicitadora da pureza como virtude inconveniente. Menos variado do que a História natural é o Da arquitetura, em que Vitrúvio opera mais restritamente os gêneros do que Plínio, o Velho, os da narração: por ensinar, os preceitos da doutrina de Vitrúvio seguem os do gênero médio, limitando-se os do gênero epidítico ao breve louvor da arquitetura e do arquiteto, à diferença da narração da história pliniana, na qual os gêneros se sucedem e se alternam, ora variando com as coisas tratadas ou louvadas, ora até incluindo em si traços do deliberativo. As incidências dos preceitos do epidítico, conquanto não exclusivas, fazem discernir entre o discurso de tratado e o de história; enquanto Plínio efetua maravilhas com a emulação em que a arte supera a natureza na admiração suscitada pela pintura em cavalos, pássaros, homens, todos eles enganados pela descrição em que o artifício é o vencedor como natureza e artifício a um só tempo, Vitrúvio põe em evidência o apoiamento, o qual a esse implica naquela, pois sobre ela e com ela se faz.
A natureza e o artifício se encontram na floresta: a Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, seus textos, os desenhos de Joaquim José Codina e de José Joaquim Freire, assim como as coleções reunidas entre os começos dos anos 1780 e 1790 na linha do escopo pombalino de entendimento das ciências e de ocupação de territórios se constitui como feito incomparável pelos levantamentos de toda sorte na Amazônia e como desfecho miserável pela recepção inepta que dá Lisboa às sucessivas remessas da expedição, atos recorrentes neste vil 2016, a ser refechado com tampa no vaso de males conjuráveis pela ação. Com a floresta por fachada, o rio avista nos desenhos algumas raras plantações, café, anil, artifício já ameaçador da selva exposto pelo extensivista, mas também o índio, em quem a coivara a regenera, e seus ornamentos, utensílios, armas, como, ainda, o mesmo rio, as embarcações dos navegantes, tudo artefato no artefato do desenhador, abrangência que naturalistas atuais censuram por suposta falta de rigor científico, como se as relações da natureza e do artifício estivessem desconectadas das de seus antecedentes discursivos ou imagéticos e bastasse a positividade técnica ausentadora da história e dos itinerários que tecem as bacias do Amazonas e do Prata, com o fluvial a singularizar a viagem predecessora das sequentes à chegada da corte ao Rio, que se deslocam, estrangeiras, por terra firme o mais das vezes.
Impedidos de entrar na Amazônia portuguesa, Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland chegam em 1799 à Venezuela, passando a explorar o Orenoco. Das conferências que ulteriormente o notabilizam na Europa, Humboldt traz no Livro I de seu Quadros da natureza a designação por ambos lançada, Hylaea, aplicada à planície de floresta delimitada ao norte e ao sul por vegetação herbácea, a savana, aqui, fora de especificação botânica, campo‑cerrado. A geografia comparada de Quadros opera com analogias e homologias estendidas à terra toda conhecida, com a semelhança a evidenciar, por exemplo, a imperceptível separação entre a planície amazônica e a platina, divortia aquorum, com paralelismos na Polônia e na Rússia. Singular pela aparente indistinção e à maneira das ações mínimas do princípio de Maupertuis, tais separações não dramatizam vertentes abruptas, antes sussurram percolaçôes subterrâneas que afloram alhures ou algures, como em Águas Emendadas, no Distrito Federal. Desdenhando a rigidez da dimensionalidade, a geografia de Humboldt efetua, pelo concurso de não poucas disciplinas, geologia, botânica, zoologia, uma terra não quantitativa, qualitativa, considerada a diversidade dos nós das relações disciplinares, no que a homogeneidade cartográfica apenas subsidia a heterogeneidade dos aspectos geográficos correlacionáveis. Este enciclopedismo se estende à erudição letrada, já em Hiléia, tanto pela referência aos antigos, Diodoro Sículo, Eratóstenes, Arriano, quanto pela aplicação dos mitos gregos à interpretação dos autóctones ou, ainda, nos passos em que o faz relativamente a inscrições rupestres.
Não é Humboldt o primeiro a helenizar a floresta, pois no século 16, partilhando Espanha e Portugal o grego dos letrados da Itália, que o acolhem com os eruditos e suas bibliotecas vindos de Constantinopla, antes mesmo de sua tomada pelos seljúcidas, por ligações da primeira metade do século 15, anos do Concílio de Florença, como se vê na inscrição grega com o Paleólogo de medalha feita por Pisanello. “Hiléia” não é neologismo de naturalista amante neoclássico das letras: corrente nos textos gregos como termo comum e topônimo, designa lugar de florestas, como em Heródoto, que a situa a leste do Borístenes (Dniepre) ou em Plutarco, no também sármata Tanaís (Don), multiplicando-se, variados, os sítios cujas florestas abrigam as guerreiras enfim vencidas, como rústicas, na cidade, não por acaso na colina ateniense do deus guerreiro Ares. Quando localizadas na foz de rios, as florestas tocam o Mar Negro, o Ponto Euxino, ou Mar Hospitaleiro, nome dado pelos gregos por antífrase à hostilidade dos ribeirinhos citas ou sármatas, a se fiar no empirismo dessas suposições étnicas e geográficas. Mas hylé, floresta e tudo quanto toca à madeira, é nome extensivo a outras designações, assim, material de construção, lembre-se Vitrúvio, e, adiante, metal ou pedra. Essa extensão alcança a noção surgente em Aristóteles, causa, na Metafísica e na Física, que recebe ampla exposição em seus seguidores tardios no tópico das quatro causas. Como matéria, hylé dilata-se em outras direções, assim, no concernente ao discurso, às coisas de que é causa como aquilo com que algo se faz e se apresenta. Estas duas acepções podem ser reunidas: floresta da madeira com que se produz alguma coisa, matéria como massa copada e tudo quanto aqui e ali a raleia, sem desertificá-la, porém. O nome é, aqui, o artifício que apresenta a natureza, à qual está fixado por travejamento dela extraído.
Guerreiras tanto em textos quanto em pinturas vasculares e relevos comemorativos, vencidas na cidade, as amazonas entretanto fundam cidades, Éfeso, sem abandonar a caça nas florestas, ações que, aparentando divergência, ressaltam a dualidade do marcial e do venatório, a passagem de um ao outro, substituição decerto ritualizada que já se figura em relevos assírios e que, embora variada na significação, segue a flecha do tempo. Acresce-se a este jogo a indeterminação corográfica, deslocando-se a floresta e suas amazonas segundo as versões, com o que o rigor cartográfico das localizações, proporções e dimensões fica caracterizado como um artifício na paródia efetuada por outro artifício, que torce o reto da regra com a retidão do desregramento. A complexidade heterogênea das amazonas se simplifica, instalando-se a justiça no claro areópago, cuja integridade pressupõe a eliminação das protegidas de Ártemis, dominadoras por amputarem o seio impeditivo do desempenho de suas arqueiras: em a-mazon, o a não é privativo na acepção de carência, pois, removido como estorvo da anatomia da selvática guerreira e cujas implicações, variadas nos textos, incidem nas aporias de tal povo, a maternidade, o acasalamento, a misandria. Epônimas da floresta humboldtiana, povoam a megalo-hiléia nos atos que as escrevem.
Entrado o ano de 1500, poucos meses antes da chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia, Vicente Yáñez Pinzón toca a ponta de Mucuripe no Ceará, sendo sua frota logo alcançada pela de Diego de Lepe. Seguindo a costa, as caravelas de Pinzón caem no vasto mar tornado doce e sofre a pororoca na foz do grande rio, menos dramática contudo do que a do impronunciado Araguari mais ao norte. Na foz, é repelido pelos índios, prossegue e, na altura do Oiapoque, divisa a Estrela Polar; retorna à Espanha, tendo serrado pau-brasil e, sem temer, escravizado índios, ações que inauguram o tráfico que alegoriza profeticamente o País saqueado pelo pugilo de ignóbeis de 2016. Em sentido inverso, a primeira expedição a atingir a Amazônia brasileira a partir dos Andes tem no comando o companheiro de Francisco Pizarro, Alonso Mercadillo; em relação à de Pinzón, é tardia, 1538, sendo interrompida por motim dos comandados na então referencial província de Machiparo, situada entre as atuais Tefé e Coari, e sobre a qual se lê em Apontamento feito para D. João III pelo mameluco Diogo Nunes, que menciona os mantimentos e o comércio, como o de peixe seco, estabelecido entre as tribos pelos caminhos da floresta. Mas é Francisco de Orellana quem faz a primeira viagem dos Andes ao Atlântico em 1541-1542, cuja Relação incumbe ao frade dominicano Gaspar de Carvajal, seu acompanhante, que logo discerne a disjunção involuntária das vias seguidas pelo Capitão e pelos homens dirigidos pelo governador de Quito, Gonzalo Pizarro. Já a primeira subida amazônica é a de Pedro Teixeira com mais de dois mil homens, que a conduz entre o Maranhão e Quito nos anos de 1637-1638, sendo também sua a Relação, escrita no ano seguinte.
Bordejada na foz, atravessada da montanha ao mar, a floresta aparece para os navegadores como uma fachada a ter dimensionadas as águas segundo o comprimento, a largura e a profundidade, significando as medições o domínio das distâncias entre os pontos do percurso e entre as margens, assim como a altura do calado: definição de extensão territorial e de seu caminho navegável, associado tanto à busca do brilho, quanto, principalmente aqui, ao seu transporte, do ouro e da prata tomados nos Andes, para a Espanha, depois, em grau menor, para Portugal. Como nos discursos há os que ensinam e há os que louvam, o mais das vezes mesclados em um gênero dominante, Carvajal, dos embarcados de Orellana, censurado por pósteros por fantástico, mas louvado por Mário Palmério ao dar o seu nome ao barco que constrói e em que navega no Amazonas, por isso, incrível nas descrições, põe em questão o historiador: ao exigir destas a instrução que o gênero desautoriza, o estudioso moderno equivoca-se pois se apóia no chão das positividades que ignoram o preceptivo de um determinado gênero, impondo um verossímil tirado às suas tópicas de invenção ou elocução como realidade e fato. Longe de tal contrabando, o discurso de Carvajal é o que mais esplende no epidítico entre os trazidos da Amazônia: é o que mais alto ergue o louvor, como na defesa de Orellana que o desespero e a fome separam de Gonzalo Pizarro em outra embarcação ou no encômio em que avança o nome do Capitão para o rio: o rio de Orellana, epônimo que se avoluma contra o Marañon, nhambá nhã, mar corrente no tupinambá a se tornar nheengatu, é contudo vencido pelo nome, por ele mesmo trazido sem propósitos toponímicos, do outro lado do Oceano, das habitantes, como escreve, separadas por sete jornadas da beira, segundo seu interlocutor indígena, e por séculos e mais séculos dos helenos que as celebraram como vencidas.
O senhor Aparia, um velho que afirma ter-se embrenhado nas terras das amazonas, menciona o riquíssimo em ouro senhor Ica, também ele índio, que mora longe do rio. Personificando os dois senhores a conjunção do ouro e das amazonas, assim de termos do não visto, é o apartamento deles que sustenta os discursos, o depoimento direto de um, a fala alegada do outro, como também o do próprio Carvajal. A essa primeira referência, à do ouvir dizer, responde, rio abaixo, a segunda aos dois, ao ouro que se cobiça e à amazona que o possui em excesso. Aqui, o ouvir dizer é substituído pela contemplação: os navegantes entram em um povoado médio, com uma praça muito grande e, no meio desta, um painel de dez pés por dez, com uma cidade murada, sua cerca e uma porta; nesta, duas torres muito altas com janelas, cada qual com uma porta à frente da outra e, em cada porta, duas colunas; toda a obra, suportada por dois leões ferocíssimos a olhar para trás, recatados um do outro, com braços e unhas a suster toda a obra, no meio da qual, uma praça redonda em cujo centro há o furo por onde se lança chicha para o Sol, o deus adorado. Embora este resumo em guisa de didascália rebaixe a maravilha da descrição ecfrástica de Carvajal, a lembrar o começo de Imagines de Filóstrato, o Velho, sua direção instrutiva atalha o passo seguinte, em que o Capitão pergunta a um índio sobre a memória e o ser da obra, sua monumentalidade, e sabe que a nação dele é súdita das amazonas, que recebem como tributo penas de papagaios e guaiamaios com que revestem os tetos dos adoratórios, afirmação que ergue a memória da Senhora das amazonas à posição de monumento com valor de insígnia. A plumagem bate: guardando uma casa mediana da mesma praça as vestes de penas multicoloridas usadas em festas e sacrifícios produzidos diante do painel, é, além da visão, a própria arte dos índios magnificada; não por acaso, Carvajal, ao concluir a Relação, louva-lhes o engenho nas obras, tanto nas de vulto quanto nas de desenho e pintura, vivazes em todas as cores. A terceira referência na ordem da viagem e do texto é a chegada ao domínio das amazonas: cercados pelos índios que ameaçam levá-los diante delas, os viajantes os enfrentam em luta encarniçada dos dois lados, pois os locais são acudidos por umas dez amazonas, que, enfim, se tornam visíveis, hiperbólicas na força decuplicada dos índios; não havendo mais o ouvir dizer ou a contemplação dos signos versicolores, mas a força da presença, no combate que as qualifica entre os gregos, as amazonas impedem os índios de dar as costas ao inimigo. Aproximadas, as amazonas aparecem, vivíssimas na peleja, e, como escreve Carvajal, suas flechas atravessam o casco do bergantim dos atacados, contra os quais açulam os índios seus vassalos, ameaçando-os de morte e passando ao ato quando um deles recua; mesmo mortas, sua presença inerte continua a impeli-los contra os navegantes, que recuam após intermináveis investidas. Altas, brancas, membros robustos, a cabelama trançada e revolta na cabeça, nuas a pelo, arco e flechas na mão a cobrir as vergonhas, as amazonas são completas, nada, nem mesmo um seio, lhes faltando. A esta descrição militar, segue-se, descido um trecho do rio e do texto, a quarta e última referência, em que Carvajal encena o Capitão a interrogar um índio tomado em combate: vistas as amazonas guerreando, o texto entra no institucional, político e jurídico, com a Senhora, Coñori de nome, a sobressair entre as mais senhoras principais e, não menos, sobre as mulheres plebeias. Preserva-se também aqui quanto se possa o léxico nocional de Carvajal, especificamente os lugares de seu discurso instrutivo, pelos quais a Espanha não se configura como discordante, mas como isomorfa à exposta pelo indígena. A distinção hierárquica de Coñori não impede que se a assemelhe às senhoras principais, ao passo que as plebeias destas difiram por usarem, não vasilhas de ouro e prata, mas de madeira, quando muito de barro, sendo empregado o fogo. Ausente dos olhos, o ouro pertence à amazona vista na refrega e não se mantém afastado mesmo quando ela não é vista, pois, narrada, prescreve-se que a riqueza se desprende da visão, inflamando a cobiça do viajante, perseverante na busca desejante. A jurisdição de Coñori compreende setenta povoações, que, aliás, lembram o leitor do fantasmático Eldorado e cuja cabeceira, ou capital, contém cinco adoratórios, não de palha, de pedra, muito grandes, com tetos pintados e ídolos de ouro e prata figurando mulheres associadas ao serviço do Sol; essa riqueza é replicada pelos tecidos das vestimentas, direta ou indiretamente peruanos, pois as ovelhas, os cavalos e outros animais vêm da montanha ou são designações forâneas. Contribui para esse refinamento o vassalo, como se viu, protegido, como também o Senhor Couynco mencionado pelo informante, que é o encarregado dos pagamentos deste senhor às amazonas, finalidade que toma o caminho calçado e protegido que a elas conduz, no que também paga a tarifa de pedágio. Quanto à população dessas cidades, é toda ela feminina, ficando os acasalamentos pendentes do desejo das guerreiras, que, para tanto, aprisionam homens de outras tribos, soltando-os depois. O nascimento, nesta cidade de mulheres, de um menino desencadeia a sua morte imediata e a remessa do cadáver ao pai estrangeiro, ao passo que o de uma menina é seguido por uma educação solene, visada a guerra. Nesta viagem encerrada no Oceano, as amazonas de Carvajal, que designarão a imensa região, depois também chamada “Hiléia”, não por acaso nome grego da floresta por elas habitada na foz de um grande rio lançado no Ponto Euxino, procedem da bastante controversa opinião contida na bibliografia antiga e diversamente interpretada nos tempos em que chega renascida, não concluída, ao autor, cuja Relação lhe acrescenta os louvores para o seu engenho e cuja publicação pelos pesquisadores do Museu Emílio Goeldi de Belém tem reconhecimento geral. Entre as montanhas de Quito e o Oceano ocidental, a navegação de Orellana desloca, pela escritura de Carvajal, as amazonas das vizinhanças do Mar Negro para o interior remoto do grande rio, com o nome na parte inicial, Marañon, mantido, sucedido pelo das guerreiras, que se apossam de vastíssimo território, carente de sua proteção redobrada frente aos golpes dos celerados agora prontos para consumar seu crime.
Lançando este texto no rio das navegações, as fotografias de Antonio Saggese (1) reafirmam-se amazônicas no discurso que suscitam e que a elas se remete, imensamente. Contra os dimensionamentos, apresenta-se a heterogeneidade das referências textuais e as das imagens: imensidão não só das florestas rebatida sobre o mito das guerreiras transportadas de um continente para outro, mas também da matéria como causa e da madeira como material, Hiléia, na noção humboldtiana como a contida entre zonas de campos‑cerrados e, ao mesmo tempo, superação de limites onde se juntam as águas de bacias separadas por vertentes, mas cujos aquíferos, por percolantes, afloram ligados. Na conjunção de natureza e artifício, que o Saggese das águas personifica, a floresta, heterogênea, reúne a imagem e a contemplação, recíprocas em suas associações singulares, uma dando existência à outra a seu modo, pois diferenciadas pelas circunstâncias de seus atos. Na intersecção existencial do contemplador com a fotografia amazônica, aquele discerne o que singulariza a imagem vinda à existência também por comparação com as precedentes, agrupáveis em figurações soturnas, em que os objetos suportam toda a sorte de pesos, e nas subsequentes, culminantes na série Pittoresco, em que se sacode o pesadume com a acolhida da natureza airosa; matizada, a figuração airosa não subsiste na atual, porque o cortante e o contrastante do branco e do preto passam a comandar os tons, deixando de ser os seus extremos. Por isso, não é o objeto o princípio da fotografia amazônica, nem as tonalidades que nele se subsumem, como também o fazem as regras, assim as da óptica. A redução saggesiana do objeto e das regras que o constroem implica a introdução da técnica, sendo a imagem acrescida de linhas, que, pretas e brancas, saem do computador como nitidez, devido ao emprego da câmera de alta resolução transformada para captar o infravermelho, cujo resultado é, por exemplo, a claridade da vegetação e a obscuridade da água, efeitos não prefixados e mutáveis, a demonstrar a ausência de critérios naturalistas nas escolhas.
Inseparáveis, a imagem e o procedimento técnico são recíprocos; essa adequação põe em evidência a historicidade do trabalho e o seu poder de evocação: além dos contrastes dos chapados pretos e brancos, Saggese valoriza a pormenorização, que, como a calcogravura e o bico-de-pena, confere à imagem traços que a assemelham a estas artes no século 19 e que, ulteriormente abandonados, reaparecem no fotógrafo, adquirindo outros sentidos, como os da revivescência. Por alhear o objeto, Saggese elimina a fotografia de natureza, pois propõe, para a contemplação, não uma vista tirada à floresta, mas a imagem em que esta figura como alusão. Com isso, não é a objetalidade do pitoresco, do que é digno de ser pintado no gênero da paisagem, que propõe as escolhas, pelo fotógrafo, de um enfoque, de uma luz, de um arranjo, de um momento, de tudo, enfim, o que se derive dela, que se impõe, e sim a conjugação do fotografado e de seu tratamento digital. Não sendo, tampouco, o artistismo, como aquilo que a si mesmo basta, admitido, não se avança a indiferença ao objeto como direção positiva de trabalho. Pois a floresta não é qualquer coisa, nem qualquer floresta, e sim esta floresta amazônica sob tal ou qual aspecto. Não sendo necessitante, antes, contingente, tal floresta é a conjugação do computador com a fotografia que se estende à natureza a eles adequada que se torna imagem. Com isso, não é documental ou jornalística a investigação de Saggese. Pois, com a floresta surgem imagens cuja determinação está na relação da fotografia de um objeto com os olhos postos no computador e suas operações: uma imagem fotográfica corresponde, assim, a uma determinação ordenadora da floresta.
Excluindo as convenções fotográficas tiradas às artes figurativas, à óptica ou à geometria, Saggese ilumina do alto a floresta até com um céu preto e com partes da imagem de intensidades descontinuadas. A recusa do princípio da gradação luminista, como também das proporções que unificam a composição e a perspectiva linear que a esta regula no sentido da profundidade, construções que não configuram qualquer realismo ou naturalismo, desmonta o dispositivo da imagem regulamentada. O computador não cabe neste dispositivo, de modo que as luzes e as sombras podem valorizar os recortes de chapados e os cortes de traços, transgredindo as projeções e disseminando os pormenores, que, heterogêneos, não são atenuados por atmosfera em seus contornos, pois se justapõem como elementos, não como partes de um todo unificado. Com o contrastado e o cortado, a especularidade da água não corresponde, objetalmente, aos procedimentos da pintura e da fotografia de dispositivo, não sendo a deformação do projetado opticamente analisável, indiscernibilidade estabelecida entre muitas linhas separativas da água e da terra e nos aningas-da-água, cuja parte submersa não é mostrada, só refletida, mas em passagem sem emenda, pura suspensão da figuração convencional. As ciências da óptica e da geometria vindas da antiguidade estando abandonadas, também o é a paisagem, surgente como gênero na passagem do século 16 ao 17. Ainda assim, pode-se empregar o termo, restringindo-se o uso à alusão, como se viu acima, pois a justaposição e a heterogeneidade eclipsam a composição e a homogeneidade.
Heterogênea, a fotografia amazônica de Saggese está alinhada com o discurso de Carvajal, que escreve perto dos distantíssimos Heródoto e Ctésias sua Relação. Justapondo sequencialmente trechos de diversos gêneros na descida do rio, Carvajal não se situa no instrutivo por fornecer distâncias entre pontos do percurso, pois também se estende pelo gênero alto da história com maravilhas. Mista como discurso, a história de Carvajal desdenha a unidade compositiva, no que Saggese se torna companheiro de viagem, principalmente pela efetuação dos chapados e das linhas no preto e no branco. Pois a imagem de Saggese também maravilha, não deixando o contemplador quieto, porque submetido sem cessar às tensões geradas dos contraste sem transição a que adiram valores intermediários. Não por acaso, essa moção se lê em Gregório de Nisa em plano teológico, cujos antecedentes remotos, Platão e, ainda mais, Plotino, não podem ser desprezados. Gregório Niseno, entretanto, de ambos difere, pois apresenta dois percursos, o que leva da obscuridade do pecado e da ignorância à luz cristã, sendo o movimento seguinte o da luz, que leva a uma compreensão mais profunda de Deus, coincidente com a da incapacidade de compreender inteiramente a transcendência divina. Quanto mais se conhece, luz, tanto mais se conhece que se a desconhece, obscuridade. Diz Gregório que, abandonando tudo o que percebem os sentidos e o que a inteligência crê ver, esta entra no invisível e no incompreensível, onde vê Deus sem vê-Lo. Pois o verdadeiro conhecimento de Deus está em que não pode ser visto por transcender todo conhecimento. Esses paradoxos da visão estabelecem a tensão que leva a buscar o desconhecido, caminho com a perda prevista: via do desejo, portanto, que leva incessantemente da luz à escuridão e da escuridão à luz. Não há gradação, mas polarização, que a fotografia de Saggese fixa para que o contemplador siga os itinerários que as duas zonas sustentam com o reforço das linhas incisivas, não menos admiráveis.
notas
NE – texto de apresentação da exposição Hiléia, exposição de fotografias de Antonio Saggese, Galeria Rabieh, São Paulo, de 9 de novembro a 3 de dezembro de 2016.
1
Antonio Saggese (São Paulo, 1950) é arquiteto pela FAU USP, mestre e doutor em Filosofia (Estética) pela FFLCH-USP. Dedica-se à fotografia desde 1969 e torna-se rapidamente profissional. Bolsista do Governo Italiano, vive em Milão entre 1983/84, fazendo estágios em estúdios de fotografia de móveis e design e cursos de aperfeiçoamento. Docente no Bacharelado em Fotografia e na Pós-graduação em Fotografia do Senac, Pós-graduação em Fotografia da FAAP e Professor Convidado na ECA USP. Seus trabalhos já foram expostos no Masp, MIS/SP, MAM/SP, Pinacoteca do Estado, Instituto Tomie Ohtake, SESC Pompéia, Bienal de SP, Bienal dos 500 anos, MAM/RJ, Funarte/RJ, Galeria Tempo, Individuais na Galeria Diaframma e Ken Dammy em Milão. Participou da Bienal de Havana em 1996. Participou do primeiro Arte-Cidade bem como da primeira seleção da Coleção Pirelli Masp. Suas fotografias fazem parte da Coleção do Masp, MAM-SP, MAM-RJ, MIS-SP, Museu da Fotografia de Curitiba, Coleção Joaquim Paiva, além de coleções particulares. Bolsa Vitae em 1992, Marc Ferrez em 1986, 1996 e 2014. Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, Melhor Exposição de Fotografia 1988. Prêmio na I Quadrienal de Fotografia do MAM-SP.
sobre o autor
Leon Kossovitch é filósofo, mestre e doutor pelo Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde atua como professor na área de Estética.