Publicado originalmente entre 1851 e 1853, e, portanto, já bastante lido em língua inglesa, e certamente também em italiano, As pedras de Veneza saiu em edição brasileira pela primeira vez em agosto de 1992. É esta a edição que li logo que o livro foi publicado no Brasil. Esta obra nos permite cursar um percurso por paisagens eminentemente urbanas na literatura.
Em As pedras de Veneza, o sociólogo, crítico de arte e escritor inglês, John Ruskin (1818-1900), estudioso apaixonado da arte, da arquitetura e da cidade apresenta um arrebatado painel de Veneza. Nesse painel, a afinidade entre arquitetura e literatura se desenvolve abertamente, o que é justificado desde o motivo do autor ao escrevê-lo: registrar a cidade de Veneza antes que ela se perca. Em suas palavras:
“Gostaria de traçar sua imagem antes que ela se perca para sempre e lembrar, tanto quanto estiver ao meu alcance, o ensinamento que parece murmurar cada uma das ondas invasoras que, como sinos errantes, vêm quebrar-se contra As pedras de Veneza” (p. 4).
Conclui-se claramente que, em sua visão, é a literatura o que permite uma materialização desse registro de natureza, cidade e paisagem como um todo, eternizando-o para além de uma possível destruição ou transformação de qualquer ordem. Isso demonstra o que a literatura pode preservar uma realidade antes materializada em dados naturais ou construídos, mas passíveis de destruição ou esquecimento.
O que Ruskin relata nesse livro é o resultado de uma “pesquisa”, uma iniciativa que ele esclarece como uma reconstituição das belezas de Veneza que remontam aos doges Enrico Dandolo e Foscari. Em suas próprias palavras:
“Nossa tarefa será recolhê-los e restabelecer, na medida do possível, um fraco esboço da cidade perdida, mil vezes mais esplêndida do que a que sobreviveu a ela, [...]
Nossa pesquisa não reconstituirá essa maravilhosa beleza de maneira imaginária. Terá por objeto a verdadeira natureza desse lugar selvagem e solitário, cujas águas agitadas e cujas areias trêmulas foram o berço da cidade à qual, durante muito tempo, elas se recusaram a se submeter” (p. 30).
Apresentada desde seu sítio natural primitivo, a história de Veneza nos é contada desde a sua fundação, passando por momentos decisivos de suas transformações arquitetônicas e urbanas. Tal narrativa conta inclusive com as respectivas apreciações críticas do autor quanto aos motivos e valores que as induziram ou nortearam. Nessas apreciações, Ruskin não se furta a expor seus próprios valores. Exemplar disso é o fato de o escritor afirmar a indissociabilidade entre arte, arquitetura e a noção de moralidade.
Sua narrativa culmina na exposição do que considera as causas de uma “decadência” de Veneza à sua época. O relato inclui ainda um curioso guia dos atrativos arquitetônicos e artísticos da cidade, em ordem alfabética, sempre acompanhado das apreciações críticas do autor. Intitulado “Índice Veneziano”, este guia é um roteiro que preconiza os atuais guias turísticos, enfatizando o que vale e o que não vale a pena ver numa cidade, segundo seu juízo de valor. Clara ilustração disso é flagrante, por exemplo, na passagem que encerra o texto sobre a Igreja dei Servi, em que o escritor faz uma apologia do caráter didático das ruínas: “Não há escola ou professor que proporcione um ensino semelhante ao que provém das ruínas” (p. 207).
As passagens mais interessantes de abordagem da obra de arquitetura isoladamente são, sem dúvida, as pormenorizadas descrições das construções, nas quais se depreende a obsessão de Ruskin pelo detalhamento arquitetônico e seus aspectos estilísticos. Sob a ótica da formação do patrimônio construído da cidade, é relevante a correlação que o autor faz de sua formação com o poderio político e bélico. A título de ilustração disso, vale destacar a informação com ares de denúncia:
“A nau de guerra trouxe a Veneza mais mármores triunfalmente conquistados do que a nau mercantil comprou, e o frontão de São Marcos tornou-se muito mais um relicário que recebe os despojos dos países subjugados do que a expressão de uma lei arquitetônica ou de uma emoção religiosa” (p. 55).
Da perspectiva do urbanismo, são reveladoras as passagens em que o sociólogo se revela no crítico. Entre elas, destacamos aquelas em que Ruskin critica os solavancos de uma parada em ferrovia pelo quanto desmerecem a viagem por trem, e o quão pior a ferrovia torna a apreciação da paisagem. A esse respeito, é de se ressaltar a nota que faz o tradutor, lembrando que Ruskin era um apaixonado por viagens de caleça e inimigo das ferrovias, que culpava pela desnaturação da paisagem.
No tocante à contemplação da paisagem da cidade e seu entorno como um todo, são as chegadas por mar as que Ruskin mais valoriza. Isso é o que se pode depreender de uma de suas muitas decantações das chegadas marítimas, entre as quais destacamos, pela riqueza de detalhes e beleza literária, a descrição da experiência de um viajante embarcado:
“Quando, enfim, seu barco arremetia sobre o largo lençol prateado através do qual a fachada do Palácio Ducal, colorida de veias sanguíneas, contempla o domo branco da igreja da Madonna della Salute, não surpreende que sua imaginação fosse tão profundamente presa do encanto ilusório desse admirável e estranho cenário, [...] Deixava-se levar a acreditar que aquela cidade devera sua criação muito mais à varinha de um mágico do que a fugitivos atemorizados; que as águas que a cercavam haviam sido escolhidas antes para servir de espelho do que para abrigar sua nudez e que tudo aquilo que na natureza é feroz e implacável – o tempo e o declínio, bem como as ondas e a tempestade – se havia reunido para orná-la e não para destruí-la e para poupar ainda, nos séculos vindouros, essa beleza que, para aí estabelecer seu trono, parece ter parado a areia da ampulheta ao mesmo tempo que a areia do mar” (p. 29).
A passagem acima evidencia o que esse livro permite depreender de vinculação entre literatura e arquitetura no tocante às paisagens. O aspecto que parece mais marcante a este respeito é o próprio fato de que ao longo de todo o livro, o texto seja estilisticamente literário. Isso se confirma não só pelo entendimento do termo literário, em sua mais corrente acepção: – a do texto em que pesa a feição decorrente do uso estético da linguagem – , mas também pelo fato de ser um texto que reflete uma cultura adquirida pelo estudo e a leitura. Mais ainda: leitura não só de livros, mas, atentamente, de paisagem e arquitetura.
Ruskin faz sua literatura de Veneza a partir da leitura do que a paisagem dessa cidade lhe descortina. Desse modo, demonstra acreditar que a paisagem e arquitetura induzem a uma leitura acurada, detida e passível de transformação em literatura. Para perenizar essa cidade que assim se oferece à leitura, Ruskin, tendo-a como musa, transformou-a em literatura.
sobre a autora
Eliane Lordello, Arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), Doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). É Arquiteta de Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.