Sentados em um verdadeiro pátio aberto, estiveram neste mês de agosto Marcelo Ferraz e Cyro Lyra no Paço Imperial do Rio de Janeiro, sob os arcos do tempo apresentando seus livros: Coleção Lina Bo Bardi, contendo cadernos da arquiteta, e Preservação do patrimônio edificado: a questão do uso. Pela comemoração dos 80 anos do Iphan, a eles se juntaram Katia Bógea e Andrey Schlee.
Em uma roda de autoridades do Iphan, Ibram, Inepac, IRPH, amigos, alunos, ex-alunos e um bebê acompanhado da mãe, teve início a apresentação com as palavras da presidente Katia com sérias intenções de tombar o próprio mestre Cyro, que logo se preocupou com a sua conservação. Ela contou da sua experiência com Cyro e sobre a sua missão em São Luiz; emocionada de estar junto aos seus mestres, falou sobre as suas experiências.
Depois dela, prosseguiu o responsável pelo patrimônio Andrey, que mostrou em uma breve cronologia fatos cruciais do patrimônio e alguns relacionados às obras citadas pelos autores em seus livros. Recordamos o surgimento do Iphan, a preservação das Missões e o centro de Lúcio Costa, a ousadia de Lina no Solar do Unhão e Sesc Pompeia e outras obras. Contou a trajetória dos diretores e heróis do Iphan e suas ações até os dias de hoje.
Aos poucos o pátio foi se cobrindo de novos convidados e acabou lotado de novos olhares.
Cyro
Passou-se a palavra para Cyro Lyra, que recordou a restauração do Paço nos anos 80, falou das adições e remoções e como se obteve um meio termo histórico que justificasse a intervenção.
Talvez neste mesmo edifício tenha surgido a reforçada ideia de que a arquitetura não é apenas e somente uma arte que pode ser mantida, preservada, guardada ou observada através de uma redoma. “A obra arquitetônica, por ser uma arte eminentemente utilitária, necessita ser continuadamente usada para sobreviver. As ruínas, em sua maioria, são testemunhos de edifícios que ficaram ociosos” (1).
A arquitetura possui uma outra dimensão que é o seu uso e como serve ao homem. Ela, quando da sua criação, ganha um uso que com o tempo, por vezes, tem que ser adaptado para que ela possa ser mantida viva ou se arruinaria. Cyro recordou em sua fala que “casa vazia ruina anuncia”. A adaptação deve atender à vocação específica da sua tipologia arquitetônica. Lembrou de Carlos Nelson F. dos Santos, que em 1984 escreveu o artigo “Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo” (2). Mostrou uma imagem do abandono do Solar do Visconde de São Lourenço, tombado na primeira lista de 1938, edifício coetâneo ao Paço. Ao mostrar alguns exemplos de requalificação com novos usos no exterior – dentre eles a adaptação em torre de defesa do mausoléu de Cecília Metela, na Via Ápia – chegou ao Convento do Carmo de Salvador com seu novo uso hoteleiro e confirmando que monumentos que receberam novos e adequados usos, bem resolvidos, se adaptaram e acabaram se mantendo.
Outro exemplo, foi o Paço da Liberdade em Curitiba, uma arquitetura feita para “se mostrar”, e que numa primeira restauração nos anos 1970 se transformou em museu, ou seja, uma difícil missão para museólogos que para este novo uso tiveram praticamente que esconder a sua abastada e rica ornamentação interna com vedações e cortinas, para poder receber um novo acervo com mais destaque, em exposição. “Ou seja, para atender à nova função era necessário uma nova arquitetura de interior e calar a existente”. Com o tempo ele novamente foi readequado em 2007 e passou a ser um Centro Cultural que se utiliza de todo o edifício sem mais ter que cobri-lo, ficando mais próximo de sua vocação.
Já a Casa da Hera em Vassouras mostra o tempo e o modo de vida da família de Joaquim José Teixeira Leite, esposa e suas filhas, uma delas Eufrásia. Importante no período do apogeu do café do Vale do Paraíba, a casa já abrigou o escritório técnico do Iphan. Estes usos são realmente mais adequados a esta construção histórica.
Comentando usos, realmente não se deve voltar atrás e, comentando este fato, mostra o aspecto interno da Igreja Matriz de Valença em uma imagem antiga e em textos históricos que nos seus primórdios não tinha bancos, o que hoje em dia seria inviável.
No Sesc Pompeia e no Solar do Unhão se viu como Lina aproveitou uma arquitetura industrial para criar um ícone da arquitetura utilizado intensamente e preservando a maioria das estruturas antigas.
Mostrou a vocação histórica e turística das fortalezas militares, destino de alguns fortes, dentre eles o de Copacabana no Rio de Janeiro, como um bom exemplo de novo uso. Segui a imagem de um grupo liderado pelo arauto do “ataque aos fortes”, um homem de iniciativa que de forte em forte foi redescobrindo as belezas esquecidas de antigas fortalezas catarinenses, cultivando em seus colaboradores um amor pela arquitetura. Assim, segui a imagem do vendedor de cartões telefônicos de São Luís, peças que continham imagens de monumentos da cidade.
Contou como arautos e amigos do patrimônio se foram e as construções foram ficando e resistindo para contar e guardar tantas histórias, algumas que ele escreveu.
Após calorosos aplausos, seguiu-se a vez de Ferraz.
Ferraz
Marcelo Ferraz iniciou explicando o conjunto de livros que valoram a já conhecida obra da arquiteta Lina Bo Bardi, italiana naturalizada brasileira, e ressaltou a sua Igreja no interior de Minas. Comentou sobre sua proximidade e trabalhos com ela enquanto buscava na rede um vídeo dela. Contou sobre seus vários anos junto ao projeto e obras do Sesc, também com André Vainer. “Os escritos de Lina revelam uma grande pensadora humanista. Lina sempre pensou a arquitetura do ponto de vista do homem que a utiliza e nunca como objeto formal ou plástico”.
Começou com um antigo projeto sobre um sobrado no Centro Histórico do Rio de Janeiro em que ela já se preocupava desde então com um novo revestimento sobre a antiga ornamentação marcando a modernidade, mas criando uma transparência que permitiria uma continuidade da vida exterior até o interior.
Falou da Casa de Vidro, a primeira casa do Morumbi projetada e construída para sua morada com Pietro Maria Bardi. Sua primeira obra construída de estrutura leve e ousada, que apesar do tempo que passou é super contemporânea; recém restaurada, está aberta à visitação. Ela descreve em seu caderno o local, a casa grande, a mata e as lendas locais.
O Solar do Unhão é um sucesso de uso intenso e variada programação, mesmo com sua localização ruim, marginal a uma estrada. Ferraz comentou as assanhas de Lina para vencer e/ou conquistar o patrimônio e propor uma verdadeira renovação; e comentou sua relação com as pessoas da Bahia. Contou como de convidada para o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, seguiu em busca de uma ampliação para a sede e escolheu um bem tombado e abandonado, o Solar, local ideal para com poucos recursos e em prazo curto criar e recuperar um novo museu. Neste caderno há um texto inédito onde ela mostra critérios para a recuperação do conjunto de edificações.
Ela acompanhava intensamente sua criação para que tudo fosse feito de acordo com sua concepção e que seu resultado fosse realmente atender às pessoas. Ferraz destacou as dificuldades da época e do fato de ser uma mulher.
De São Paulo, comentou sobre o Teatro Oficina com o arquiteto Edson Elito e o diretor José Celso Martinez Corrêa. Uma obra sem palco e sem plateia, um teatro de estrada, de passagem que liga dois lados da cidade, um lugar quase sem paredes.
Falou sobre o Masp e as condições do projeto e novamente a sua intensa participação, tanto na localização como já pensando seu próprio uso. Relata que neste caderno há um artigo de Aldo Van Eyck, amigo dela, que escreve em defesa da sua proposta expográfica de destaque para a obra, com transparência do conjunto, e cita a preocupação dela com o verso educativo dos quadros. Também comentou a sua relação com a implantação do museu no belvedere e sua relação com a Avenida Paulista.
Falou da Igreja Espírito Santo do Cerrado e de como foi receptiva à ação participativa das pessoas dos arredores, todos muito envolvidos, como ela desejava e propôs. Uma construção do povo para o povo, com materiais de fácil construção e um projeto inovador e acolhedor para esta nova igreja. Uma experiência inédita de “mutirão”.
Comentou sobre o Sesc Pompeia e de como foi duradoura a sua participação no processo de projeto e transformação, um processo diário e intenso com precisão e muitas brigas por suas ideias. As intervenções e o mobiliário se adequam com perfeição aos antigos galpões. É um local fascinante e de intenso uso que atende a todos, desde livres passantes, leitores, esportistas a eventos educacionais, teatro e shows de música, que deram espaço para muitas bandas do rock brasileiro surgir. É sem dúvida um exemplo de aproveitamento de uma edificação industrial apropriada ao máximo, sem muitas intervenções na preexistência e consolidadas com as novas construções anexas de porte.
Final
Ao término foi aplaudido intensamente e ficou devendo o trecho do vídeo com as falas de Lina.
Seguiram-se então os autógrafos, fotos e as selfies!
Certo de que todos saíram do Pátio dos Archeiros como quem sai de um refúgio, um jardim secreto, renovados após o encontro com croquis, imagens e memórias.
“Na negociação que a teoria moderna de restauração deseja, os futuros usuários tem que desempenhar um papel relevante e muito provavelmente são os técnicos que terão que falar por eles. Naturalmente esta não é uma tarefa simples, ainda que seja muito fascinante” (3).
Agora, com uma visão mais contemporânea do projeto de restauração – que deve também dar oportunidades às pessoas e aos usuários dos monumentos – seus verdadeiros cuidadores devem ser ouvidos.
Afinal, de que serviriam para estas pessoas uma igreja ou uma fábrica abandonadas, sem os traços de Lina e suas “discussões” com o patrimônio que as tornaram úteis novamente.
notas
1
LYRA. Cyro Correa. A importância do uso na preservação da obra de arquitetura. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA. Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
2
SANTOS. Carlos Nelson Ferreira dos. Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo. Projeto, São Paulo, n. 86, 1984.
3
VIÑAS. Salvador Muñoz. Teória contemporánea de la restauracion. Patrimonio Cultural. Madrid, Sintesis, 2003.
sobre o autor
Jorge Astorga Garros é arquiteto, professor da Unesa, do Proarq FAU UFRJ e mestre pelo Prourb FAU UFRJ.