“Burn, baby, burn” (1)
O encontro de Peter Reyner Banham, o historiador inglês de arquitetura e do urbanismo, com formação de engenheiro, reconhecido crítico cultural, engajado no movimento Pop, com a metrópole de Los Angeles, produziu no início da década de 1970 um livro singular: Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias (2). O seu percurso intelectual, iniciado sob a orientação acadêmica de Nikolaus Pevsner, o conduziu a interesses teóricos bastante abrangentes. Mostrou desde o início de sua enorme produção teórica e histórica grande interesse pela influência da ciência e da técnica na ascensão dos movimentos de vanguarda europeus nas duas primeiras décadas do século 20. Com a publicação de seu livro Teoria e design na primeira era da máquina, em 1960, ele logrou uma posição de destaque tanto no mundo anglo-saxão como internacional.
O alinhamento intelectual de Banham o levou no início da carreira a uma abordagem histórica-crítica do Futurismo italiano e, mais especificamente, do pensamento e proposições do arquiteto Antonio Sant’Elia (1898-1916), que foi por ele classificado com um “vanguardista revolucionário”. Em artigo publicado em 1955, analisa o Manifesto Futurista de 1914 e a série de desenhos do jovem arquiteto italiano reunidos sob o título Città Nuova. Esse apreço pelo papel que o futurismo italiano exerceu no início do século 20 de certa forma ilumina a leitura de Los Angeles, tornando mais clara a sua opção metodológica para abordar a paradigmática metrópole sul-californiana. Conceitos e artefatos centrais no livro, tais como sistemas de infraestrutura, ambiente/ecologia, sistemas mecânicos e, até mesmo, as personalizadas pranchas de surf, o hambúrguer, o cinema e, acima de tudo a freeway, ganham maior significado quando colocados na perspectiva de sua formação teórica com as questões apontadas no Manifesto Futurista de 1914 (3).
No momento de sua publicação o livro Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias foi alvo de opiniões apaixonadas. De alguma forma, os embates abriram espaço para discussões teóricas que estavam assinalando a entrada em cena de abordagens novas para descrever a relação entre cidade e arquitetura. As trocas de opiniões eram vigorosas, pois naquele momento disputava-se a liderança teórica e prática que se abriu depois do encerramento oficial dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM em 1956.
Após discussões que se tornaram históricas, geradas tanto pelas fortes críticas como pela consagração tardia do livro, a primeira edição brasileira desse livro faz ainda muito sentido. Ela nos ajuda a entender os atributos mais decisivos da denominada metrópole contemporânea, sendo que, hoje, uma importante distinção deve ser feita: o livro chega ao Brasil como um clássico, e não mais como uma vigorosa provocação como quis seu autor na conjuntura específica das décadas de 1960 e 1970.
Para um autor com a formação e temperamento de Banham, a avalanche crítica, sobretudo as mais exacerbadas, parecia comprovar o acerto de sua análise. E, no bojo dessas críticas, especialmente daquelas que vinham de setores mais ortodoxos do pensamento modernista, o alvo não era apenas o método utilizado para a abordagem da metrópole sul-californiana, mas a disposição do autor de se debruçar de forma tão determinada e, acima de tudo criativa, sobre Los Angeles, uma metrópole sem qualidades, a própria negação dos fundamentos do urbanismo e do planejamento urbano em pauta naquele período.
Tanto antimodernistas, que combatiam o conjunto de princípios estabelecidos na Carta de Atenas, como aqueles que buscavam revigorar as teses do funcionalismo, juntavam-se para denunciar os traços urbanos indesejáveis de Los Angeles e, por extensão os enormes equívocos do autor ao interpretá-los. Estava claro que Banham estava sendo julgado por uma dupla afronta: dedicar-se a uma cidade sem qualidades e, pior ainda, ao fazê-lo, exibir atributos urbanos passíveis de serem vistos como atraentes. Em outras palavras, como resume o arquiteto Anthony Vidler no seu ótimo prefácio à edição de 2000, para os seus críticos mais exaltados, Banham havia abandonado o seu compromisso intelectual para engrossar o cortejo dos veneradores da funesta LA.
Desnecessário buscar saber o que foi mais decisivo para a originalidade do livro, se a própria singularidade do objeto tratado – a Grande Los Angeles – ou, a invejável liberdade metodológica que Banham forjou para penetrá-la e analisá-la. Hoje, passado meio século da sua aventura, o que importa é o resultado seminal do exame que ele conduziu e a sua enorme disposição intelectual de se lançar naquela empreitada. O uso da palavra ecologia para designar as quatro partes que compõem seu objeto de estudo indica o ambicioso objetivo de articular nas suas análises todas as suas dimensões que vê como essenciais:
“nenhum aglomerado urbano jamais foi produzido por tão extraordinária mistura de geografia, clima, economia, demografia, mecânica e cultura” (p. 4).
A consciência de seu empreendimento obrigou o autor a enfrentar o desafio de criar um método de análise novo se quisesse permanecer à altura do seu objeto. A começar pela própria estruturação, nada convencional do livro, ele embarca num método narrativo desobrigado dos padrões acadêmicos, oferece às imagens, produzidas por ele mesmo e por fotógrafos consagrados, um papel analítico e não apenas ilustrativo, expõe de forma a sustentar suas teses passagens de seu trabalho de campo. Um aspecto que em tese poderia ser visto como trivial, mas que se tornou um ponto bastante explorado pelos seus críticos, foi a decisão tomada para implementar seu plano de pesquisa: aprendeu, tardiamente, a dirigir um veículo para poder deslocar-se no interior de suas quatro ecologias. Toda a atitude de Banham diante de seu objeto de estudo indicava uma genuína disposição de produzir uma abordagem criativa, que por isso mesmo, tornou-se muito estimulante para o leitor.
Consciente da impossibilidade de enfrentar Los Angeles com os instrumentos críticos convencionais, de definir e abordar a arquitetura da cidade com métodos tradicionais, Banham expandiu conceitos e os levou para um patamar que ele enxergou como adequado à sua obra. Depois de fazer a sua escolha metodológica e narrativa ele ainda interroga, como se estivesse estabelecendo um diálogo com seus leitores mais recalcitrantes:
“Monografia histórica? Será que esse conceito do velho-mundo, tão acadêmico e carregado de precedentes, pode ter a pretensão de abarcar um fenômeno humano tão inusitado quanto a cidade de Nossa Senhora Rainha dos Anjos da Porciúncula – também conhecida como cidade da Combustão Interna, Surfubia, Smoville, Cidade Aeroespacial, Terra dos Sistemas e Fábrica dos Sonhos do mundo ocidental?” (p. 1).
A partir desse exigente exame de seu próprio ofício de pesquisador e de historiador do urbanismo e da arquitetura, Banham foi buscar no livro de Paul Valery, Eupalinos ou o arquiteto publicado originalmente em 1921 (4), uma observação sobre o esforço necessário ao historiador para reconhecer naquilo que se propõe observar, o que é efetivamente novo. E, o seu alerta para o perigo de rejeitar o inescrutável, lançando-o “no oceano do desconhecido”. Ciente da importância de expor o que via como novo e original, ele assume com convicção e sem nenhuma arrogância:
“quando a maioria dos observadores registra monotonia e não unidade, e, dentro da monotonia, confusão e não variedade, em geral é porque o contexto lhes escapou; e lhes escapou por ser absolutamente singular e excepcional e não apresentar termos de comparação convenientes” (p. 2).
Essa frase-tese está no primeiro capítulo, cujo belo título – Pelo retrovisor – deu muito pano para manga, sendo interpretada de formas distintas, segundo a conveniência dos críticos. Mas, ele mesmo oferece uma boa pista para entender a sua escolha. Enquanto percorre as vias expressas ele olha pelo retrovisor na esperança de encontrar as “luzes da história”, de descobrir a resposta para uma pergunta que se apresenta para todo autor sinceramente investigativo e criativo: “qual deve ser a rota?” O que equivale dizer: qual o melhor caminho para produzir essa análise sem amesquinhar, ou até mesmo destruir, através de um método equivocado esse objeto total que constitui a Grande Los Angeles? Sua pergunta é criteriosa e busca uma resposta alternativa, pois já antevia com clareza o caminho que não queria trilhar, sob pena de fracassar na sua missão, qual seja, a de estabelecer percursos cronológicos, tanto para falar da cidade quanto da sua arquitetura. Tal plano seria, em sua opinião, enfadonho e, ainda pior, nada revelador. Acabaria caindo em observações e comparações com outras metrópoles e suas arquiteturas, já mil vezes descritas e nada acrescentaria à realidade urbana que tinha diante de si e que estava prestes a adentrar.
Para escapar de tal malogro Banham se impôs captar e distinguir os aspectos mais evidentes daquilo que denominou a língua local. Cumprindo esse objetivo, sua análise começa reconhecendo que no caso da arquitetura e do urbanismo, em Los Angeles, imperava o movimento. E que, somada a esse atributo primordial, existia uma relação entre a grande extensão geográfica e a história urbana, ainda muito recente e rala, o que para ele, um típico intelectual europeu, tornava-se um dado perturbador. Quase em tom de lamento ele observa:
“Uma cidade de 180 quilômetros quadrados, mas sem profundidade, onde raras áreas têm mais de setenta anos” (p. 1).
E ainda,
“Los Angeles é arquitetura instantânea em uma paisagem urbana instantânea” (p. 1).
Tais observações justificavam sua busca de um método adequado para abordar esse mundo em movimento permanente, no qual a história, de acordo com sua observação, não havia criado ainda pontos de referência permanentes. Ao definir as quatro ecologias que organizam a estrutura de sua narrativa, Banham enfrenta o território da metrópole a partir de cada uma delas para atingir a essência do conjunto – a grande Los Angeles - que de acordo com sua tese, funciona de forma simultânea e instantânea. A costa e as suas praias, ele as identificou como Surfúrbia; as montanhas de Santa Monica são Foothills; o vale central ganhou uma classificação freudiana e inesperada – As planícies do Id; e, finalmente, todo o sistema de freeways que corta e coloca em comunicação vertiginosa as outras três ecologias: a Autopia.
Ao utilizar o conceito de ecologia para identificar os quatro universos urbanos de sua análise, Banham permanece consistente com a sua tese. As quatro ecologias humanas que compõem o território urbanizado da Grande Los Angeles são demarcações que criam o roteiro da análise que, e isso é muito importante, estaria livre de determinações hierárquicas ou cronológicas. O mapeamento de cada uma das quatro ecologias garante, em si mesmo, a compreensão da dimensão territorial, espacial e cultural da grande Los Angeles. O resultado é a criação de um encaminhamento analítico que lhe permite abordar as quatro ecologias pari passu, preservando o princípio de simultaneidade e sincronismo entre elas.
A precedência da ecologia humana sobre a arquitetura precisa ser entendida dentro do escopo da cultura Pop, que é também um forte comprometimento intelectual do autor, pois, para ele a arquitetura, enquanto artefato humano, tem origem nas relações que se estabelecem entre o universo natural e o artificial. Cada uma de suas ecologias é percorrida, observada, narrada e registrada em imagens que Banham produz e encaminha como sínteses. Assim, em surfúrbia a prancha de surf é tão intrínseca ao modo de vida daquele lugar quanto uma gôndola que circula nos canais de Veneza. Deste mesmo modo, a presença simultânea de uma capela de Franck Lloyd Wright, da Casa Gamble, dos bangalôs californianos de Echo Park, das plataformas off-shore e dos píeres municipais, formam ao longo dos 110 quilômetros de praias de areia branca de surfúrbia um lugar único, um paraíso que todas as demais metrópoles de todo mundo poderiam invejar.
No entanto, antes de avançar para as suas outras ecologias Banham se deteve num tema abrangente e indispensável para seu método analítico: a estruturação urbana da bacia de Los Angeles. No capítulo “O palimpsesto do transporte” o leitor é levado, de acordo com o autor, a constatar o perigo de aceitar interpretações superficiais sobre a estruturação urbana das cidades e, em particular das metrópoles americanas. E, podemos, por extensão, pensar nas latino-americanas também, pois estas contêm muitos traços semelhantes à metrópole sul-californiana. A tese estabelecida para construir esse capítulo, que repercute fortemente em todo o livro é a seguinte:
“O espraiamento urbano de LA, tão singularmente homogêneo e esparso que foi capaz de absorver os monumentos do sistema de vias expressas sem sofrer grandes tensões, deve suas origens a meios de transporte anteriores e aos padrões fundiários que os acompanharam. O sistema de vias expressas é o terceiro ou quarto diagrama de transporte desenhado sobre um mapa que constitui um complexo palimpsesto de sistemas de movimento na bacia” (p. 53).
Sua argumentação se organiza em torno da evolução histórica da ocupação da bacia de LA, colocando em evidência a relação essencial entre o transporte público e a lógica dos negócios comerciais e, muito particularmente, dos interesses fundiários. A “pouca história” é aqui relativizada, pois sua narrativa parte das trilhas de terra batida percorridas pelos carros-de-boi que giravam em torno do pueblo na década de 1860, até a chegada dos trilhos da poderosa rede da Southern Pacific - SP, que 20 anos mais tarde lançou as bases da futura supermetrópole.
A chegada da South Pacific é um fato decisivo na relação entre a urbanização e o transporte público de massa. Um aspecto muito destacado pelo autor é a emergência de um modo de vida metropolitano que a forte presença dos dois mil quilômetros de trilhos criou na bacia de Los Angeles. A movimentação diária da população propiciada pela presença desse eficiente modo de transporte era intensa e com motivações muito variadas. Esse fenômeno antecipou uma forma de organização das atividades da sociedade descritas pelo conceito de vida urbana cotidiana de escala metropolitana.
Diante destes aspectos essenciais à organização metropolitana de LA, Banham avança para um ponto de vista crucial:
“o setor fundiário foi um dos dois fatores que puseram abaixo essa obra-prima [a rede da Pacific Eletric Railroad] do transporte urbano rápido” (p. 63).
Efetivamente, a intensa e especulativa comercialização das terras ao longo da rede ferroviária acabou por afetar de forma definitiva o seu funcionamento, gerando uma gradual piora na qualidade dos serviços. O excesso de cruzamentos, de passagens de nível, e até mesmo de pedestres, provocavam lentidão nas operações e acabou por comprometer o desempenho de todo o sistema. O caminho estava aberto para a alternativa que já havia começado a se apresentar de maneira insidiosa e, como bem sabemos, sem volta: a substituição de uma rede sobre trilhos, por outra sobre pneus. Nascia, naquela conjuntura, muito mais do que uma solução para Los Angeles, assim como para todas as metrópoles norte-americanas, incluindo ainda todo o continente sul-americano e, de forma decisiva a metrópole de São Paulo, um destino urbano traçado pela consolidação da chamada “era do automóvel”.
Da mesma forma como havia descrito e analisado o papel das ferrovias, sobretudo a Southtern Pacific (SP), na organização de LA, o arrebatamento de Banham com o novo sistema de vias expressas que substituiu o caminho dos trilhos é uma constante nas inúmeras críticas que recebeu. Ele afirma de forma destemida, como alguém sempre pronto a assimilar novas ideias, sobretudo daquelas que vinham com a chancela da inovação técnica, ter sido plenamente conquistado pelas amplas curvas do cruzamento das vias expressas:
“as amplas alças em curva do cruzamento o cruzamento das vias expressas de San Diego e Santa Monica, que imediatamente me convenceram de que o sistema de vias expressas de Los Angeles é de fato, uma das maiores conquistas da humanidade” (p. 68).
E também:
“é uma obra de arte, quer como desenho no mapa, quer como monumento recortado contra o céu, quer como experiência cinética quando a percorremos em alta velocidade” (p. 68).
Não resta dúvida, o monumental sistema de vias expressas de LA seduziu o historiador e o crítico, mas também o engenheiro. E, num terceiro precioso diagrama do livro, é lançada mais uma camada do palimpsesto de LA. Fica claro neste ponto da sua análise que a geometria da rede de vias expressas jogou uma pá de cal definitiva nos tradicionais critérios funcionalistas de organização urbana.
É neste importante capítulo, no qual Banham sustenta com cuidadosas análises, mas também com opiniões categóricas, que foram geradas as mais fortes críticas ao seu livro. Sua adesão total ao padrão “automobilidade americana”, que associa a urbanização dispersa – sprawl – com dependência total do automóvel o isolou dos arquitetos e urbanistas, que na conjuntura dos anos de 1960 viam na expansão urbana de baixa densidade um dos mais graves problemas urbanos, um desvio a ser combatido através de planejamento em grande escala. Seus excelentes insights e sua capacidade analítica demonstrada em outros capítulos do livro de nada serviram para aplacar os ataques. Sua fina análise que aponta para a importante precedência dos trilhos na estruturação e organização espacial de LA ficou eclipsada diante do seu arrebatamento pelo poderoso sistema de vias expressas.
Por outro lado, é difícil explicar o fato de Reyner Banham ignorar ao longo do livro a onda de denúncias, com forte reação na imprensa norte-americana, de uma ação de muitas e duradouras consequências, que ficou conhecida como GM Streetcar Conspiracy. Tratava-se de uma holding comandada pela General Motors que incluía a Firestone Tires, a Standard Oil of California, a Phillips Petroleum e a Mack Trucks, cujo objetivo central era a substituição dos sistemas de transporte público sobre trilhos pelo transporte individual baseado no automóvel. A origem das denúncias foi a estratégica ação de compra e desmantelamento rápido e total dos sistemas de bondes e trens em pelo menos 25 cidades americanas, conduzindo as grandes cidades americanas para a total dependência do automóvel. As posições dos denunciantes ganharam muitos adeptos na sociedade, tanto na mídia como na academia, produzindo uma enorme onda de manifestos e artigos que permearam a literatura especializada, a partir da década de 1960 (5).
Assim como Los Angeles, outras importantes cidades norte-americanas, tais como Saint Louis, Baltimore e Oakland, viveram experiências similares. Cerca de 25 cidades americanas assistiram o desaparecimento rápido de extensos e eficientes sistemas de transporte sobre trilhos, bondes urbanos e trens suburbanos, para possibilitar o nascimento de sistemas de vias expressas voltados para o transporte individual. A GM Street Car Conspiracy visou incialmente as cidades americanas, para logo, a seguir, partir para novos alvos.
Um exemplo da extensão e força dessa ação foi a própria cidade de São Paulo, cuja prefeitura contratou em 1950 o pai da via expressa Robert Moses - para um estudo que resultou no denominado Plano Moses que àquela altura tinha se tornado um importante aliado da ação comandada pela GM. No caso paulistano, além de vias expressas nas quais se instalariam o transporte particular assegurado pelo automóvel, o plano coordenado por Moses, para a maior metrópole brasileira, propunha a compra imediata de 500 ônibus da GM (6).
Depois deste impactante capítulo Banham volta a caminhar na exploração das suas ecologias. No capítulo “Ecologia II: Encostas” encontram-se núcleos residenciais já plenamente consolidados: Hollywood, Beverly Hills, Bel Air, Palos Verdes, dentre outros. Sua percepção do tipo de urbanização que ali florescia é prontamente revelada:
“em qualquer mapa que indique a distribuição de renda da região: os contornos topográfico e financeiro mostram uma correspondência quase exata entre si. Quanto maior a altitude, maior a renda” (p. 78).
Diante de uma ecologia humana que lhe inspira um forte sentimento de “glória perdida”, mas ainda “imensamente desejável”, a narrativa do autor se faz a partir de sua experiência de cidadão que esteve sob a influência da cultura americana, de um way of life construído na encosta, exportado para todo o mundo pela indústria cinematográfica americana.
“Essa vida de conforto e deleite é bem conhecida mundo afora, em qualquer lugar onde a televisão reprise filmes antigos. É a vida real e fictícia, dos anos clássicos de Hollywood” (p. 79).
O universo dos condomínios residenciais fechados que ao longo do meio século que nos separa das observações feitas por Banham nos anos de 1960/1970 tornaram-se a principal tipologia residencial nas metrópoles de todo o mundo, estavam ali, plenamente concretizados nas encostas de Los Angeles e consistiam na quintessência do chamado sonho americano. E, já ostentavam todos os seus principais atributos: garantia de privacidade e conforto, distância das turbulentas áreas centrais, unidade socioeconômica a partir do topo da pirâmide e, finalmente, autonomia de movimentação assegurada pela dependência total do transporte individual.
É interessante lembrar que Banham, antes de dedicar-se ao livro, havia apresentado em 1968 uma série de quatro documentários radiofônicos para a BBC – BBC’s Third Programme, que logo depois foram publicados na forma de artigos pela revista Listener. Num desses programas as questões abordadas no que corresponde a este capítulo no livro, receberam um título mais crítico: “Bervely Hills, too, is a Guetto” (7). Embora o uso da palavra gueto tenha desaparecido do texto do livro, o seu sentido de universo segregado permaneceu:
“os Rolls-Royces ainda estão na frente da casa Blacker em Pasadena e as Ferraris ainda fazem as curvas fechadas de Palos Verdes como se tivessem sido criadas especialmente para isso; os Continentals ainda apresentam-se no pátio frontal do Hotel Bel Air e os cascos de puros-sangues ainda troteiam no Mandeville Canyon” (p. 83).
No entanto, apesar da importância dada por Banham à tipologia dos condomínios de luxo, é a destruição do ambiente natural das encostas o cerne de sua análise nesse capítulo. A profunda alteração do perfil das colinas pelo uso de sistemas radicais de terraplenagem foi regra na forma de ocupação da ecologia das encostas quando estas se tornaram mais populares. A ação denominada “corte de montanhas em grande escala”, descrita pelo autor no início da década de 1970 encontrou, quase três décadas mais tarde, no final dos anos de 1990, uma nova e pungente descrição no livro de Mike Davis, Ecologia do medo (8), no capítulo cujo título anuncia uma melancólica e poética exposição do processo predatório que se abateu sobre as colinas: “Como o Éden perdeu seu jardim”.
Apesar da forma pouco direta, neste capítulo dedicado às encostas, Banham aborda questões centrais do debate urbano que dominaram os anos de 1960. As causas e efeitos do processo de suburbanização vividos pelas grandes cidades tornou-se o nó górdio do planejamento urbano e do urbanismo. Nas décadas de 1950 e 1960, de acordo com os dados, a América viveu a sua maior expansão suburbana (9). Os problemas associados ao padrão de expansão urbana (sprawl), com destaque para o desperdício das terras urbanizáveis e a consequente elevação exponencial do preço da terra e dos serviços urbanos, o aumento do tempo de deslocamentos pendulares diários da população, a perda do sentido de comunidade e cidade nos ambientes monofuncionais, de baixa densidade e, elevada autonomia, tornaram-se muito presentes nas metrópoles americanas e, em todas as demais, nas quais esse modelo difundiu-se (10).
A incursão pelo território explorado sob o título “Arquitetura II – Fantasia” está diretamente associado a este conjunto de questões e, abriu para Banham, o crítico cultural, participante entusiasmado do movimento Pop, uma ótima oportunidade de observação e de síntese. Seu interesse pela expressão vernácula da arquitetura criou uma vertente de análise com muitos desdobramentos interessantes. Resvalando muitas vezes para a ironia, que no fundo também é um traço do Pop, sua atenção centrou-se na relação entre a racionalidade modernista e a fantasia da produção arquitetônica que ele encontrou na roadside. A denominada “civilização da margem da estrada” (roadside civilization) foi abordada a partir de um enquadramento teórico que se tornou um paradigma para inúmeros ensaios e livros de feição antimodernistas e que uma década mais tarde alimentaram as teorias pós-modernas.
Ao examinar as edificações e os anúncios que compunham a roadside civilization, Banham mostra-se especialmente inspirado. Nas suas descrições encontramos as sementes da discussão que opunha função à fantasia. As edificações simbólicas, sorte de arquitetura falante, que ele percorre ao longo das margens das vias expressas, são para ele o resultado do triunfo da fantasia sobre a funcionalidade. A surpreendente analogia que ele enxerga entre a distribuição das partes que compõem um “hambúrguer servido no prato” com a organização das edificações que compõem a civilização da margem da estrada é um ponto alto de sua disposição intelectual diante daquilo que ele considerou efetivamente novo:
“O modo pelo qual as partes simbólicas e funcionais do hambúrguer servido no prato foram discriminadas, separadas e exibidas é bastante análogo ao projeto da maioria dos edifícios nos quais esses hambúrgueres são vendidos. Nada dessa bobagem de projeto integrado; cada parte é concebida isoladamente e ressaltada: a arquitetura da montagem simbólica” (p. 93).
Na década de 1980, já sob a marca da arquitetura pós-moderna, a abordagem feita Banham nesse capítulo tornou-se uma referência, ganhou várias leituras e inspirou muitas formas de expressão artística. A forma como registrou e interpretou a arquitetura da margem forjou o surgimento de novas sensibilidades que ele propunha para a análise de cidades e metrópoles. Para citar apenas uma, talvez a mais célebre, tivemos o inovador Aprendendo com Las Vegas de Venturi, Scott-Brown e Izenour, publicado apenas cinco anos depois de Los Angeles – quatro ecologias, em 1976.
Despedindo-se da civilização da margem, onde ele exerceu largamente seu talento de escritor e verve crítica, Banham se debruça sobre a imensa e desafiante planície de Los Angeles. Mais um ótimo diagrama abre o capítulo para mostrar a conjugação entre os eixos de comunicação viária e os trechos planos da cidade. No título do capítulo ele busca enfatizar cruzamentos disciplinares: “Ecologia III: as planícies do ID!”.
Diante de um imenso território cortado por vias longuíssimas, nas quais a tipologia das construções e a morfologia urbana repetem-se sem muita variação, a imagem que Banham busca passar dessa sua terceira ecologia é seu aspecto ilimitado. Com uso da palavra-conceito id vinda do campo da psicanálise freudiana, o autor busca qualificar o processo histórico de parcelamento obstinado e voluntarista das terras da planície, dirigido à busca incessante do lucro individual. O que ele quer enfatizar é bem claro:
“É nessas planícies centrais que as mais abomináveis luxúrias e as mais fundamentais aspirações urbanas são criadas, manipuladas e, com sorte, satisfeitas. Se a história de Los Angeles é uma história de falta de escrúpulos e busca por lucros nos parcelamentos de terras, desde a repartição inicial dos títulos espanhóis até seu parcelamento final nos lotes ocupados atualmente, as planícies são o cenário mais espetacular desses acontecimentos, onde se elaboram as mais astutas técnicas de venda e onde as formas de apropriação territorial mais psicóticas (os ativistas armados de extrema direita do condado de Orange, dispostos a matar a tiros quaisquer sobreviventes de um ataque nuclear) mancham o sonho bonito da fazenda urbana sobre o qual a maior parte de Los Angeles se construiu” (p. 141).
No histórico da ocupação das terras-das-planícies, desde a repartição dos títulos de propriedade espanhóis quando LA era apenas um pueblo, até o parcelamento posterior quando a ferrovia acrescentou novos conteúdos à forma da urbanização, temos um relato bastante familiar. É em quase tudo semelhante aos processos de urbanização de muitas cidades americanas e sul-americanas, construídas sob uma forte pressão econômica especulativa.
A chegada da Pacific Eletric que possibilitou a vida urbana cotidiana em escala metropolitana e a sua posterior substituição pela rede de vias expressas a partir da década de 1960, muito bem sintetizada na expressão palimpsesto do transporte, ganha nesse capítulo um elemento fundamental. A permuta dos trilhos pelo asfalto introduziu, de acordo com a observação de Banham, uma questão central para o urbanismo: se por um lado o formidável sistema de trilhos adaptou-se e tirou proveito das planícies, a rede de vias expressas impôs sua lógica técnica e construtiva às superfícies, promovendo imensos movimentos de terra, redesenhando a topografia de acordo com as suas necessidades. Esse é um aspecto muito relevante do processo e, leva o autor a reafirmar sua enorme admiração pelo novo sistema e a observar que a rede de vias expressas ao atravessar as planícies se tornou “o maior artefato humano” visível. Exatamente por isso era despropositado esperar que Banham apresentasse o novo sistema em tom condenatório, como esperavam alguns de seus críticos. Ele enxergou assim a relação entre as planícies do Id e a rede de vias expressas que as cruzam:
“em vez de seguir a paisagem, elas começaram a criar paisagem. Por quilômetros a fio, nas planícies, as vias expressas são visivelmente o maior artefato humano, a única perturbação na superfície envolvendo movimentos de terra” (p. 154).
Contemplando , num dia claro, a metrópole a partir de num terraço do Observatório do Griffith Park, de onde Los Angeles se expõe ao observador como um eloquente espetáculo urbano, Banham lança seu olhar sobre um lugar e um tema que não poderiam deixar de comparecer no seu livro. Observando o lado sul da metrópole ele é categórico ao afirmar que se trata de “um dos grandes panoramas urbanos do mundo – e um dos mais assustadores”, composto pelo imenso tabuleiro de avenidas paralelas e intermináveis, uma geometria lançada sobre os fundos de vale de riachos drenados. A partir dali ele testemunha a existência da dimensão física e social do que denomina o “verdadeiro território do Id”:
“Suas dimensões cabais e a cabal ausência de qualidade da maioria dos ambientes humanos que atravessa, o definem quase inevitavelmente como uma região de problemas como Watts, que fica a poucos quilômetros a leste do ponto médio do eixo da Normandie Avenue” (p. 149).
E ainda:
“Uma das razões pelas quais as grandes Planícies do Id são tão assustadoras é que é nelas que Los Angeles mais se assemelha às outras cidades: qualquer lugar/lugar nenhum” (p. 152).
Os problemas sociais deste setor da metrópole eram evidentes desde 1965 e já pertenciam à história da violência urbana: os Tumultos de Watts – Watts Riots. Durante cinco dias aquele qualquer lugar/lugar nenhum ardeu em chamas acompanhado da voz insurgente de seus moradores: “burn, baby, burn”.
Não por acaso, dentre as oito epígrafes selecionadas por Banham para seu livro, este grito de guerra lá está. Mas, é a perspicaz interpretação dos fatos, a análise do processo de segregação urbana vivido por este distrito tão emblemático, o que mais o interessa no olhar do autor de quem tanto se cobrou uma postura mais crítica daquela funesta metrópole. Sem lançar mão de análises sociológicas, muito influentes nas décadas de 1960 e 1970, Banham, que em mais de uma passagem do livro as censura de forma muito dura, buscou uma abordagem claramente urbanística, isto é, utilizando elementos da organização funcional e territorial, para apresentar a sua interpretação para o sombrio destino do distrito de Watts.
Voltando ao palimpsesto do transporte, lá no quarto capítulo, Banham descreve, de forma muito clara, o percurso histórico do distrito de Watts a partir de sua privilegiada posição no contexto urbano, quando o sistema ferroviário se instalou nas planícies de LA, a partir de 1870. Retomando o mapa da rede da Pacific Eletric Railroad (p. 62; ver mapa n. 30), constata-se que Watts ocupava uma posição estratégica dentro da malha ferroviária e funcionava como um dos mais importantes entroncamentos de todo o sistema, urbano e interurbano. De acordo com sua descrição, seria difícil imaginar um lugar tão privilegiado em termos de mobilidade e acessibilidade quanto aquele ocupado por Watts. Ele reconhece a presença de algumas desvantagens ecológicas, como por exemplo, a falta de água. Mas, como é sabido, esta era uma desvantagem muito bem distribuída em todo o território metropolitano de LA.
Para Banham, a substituição da rede ferroviária pelo sistema de vias expressas atendeu imperativos distintos, tanto de ordem técnica como urbana. Enquanto a definição da malha ferroviária, instalada paulatinamente desde o século 19, tinha como objetivo estabelecer uma interligação em rede entre o centro, as encostas e as praias, buscando promover um “todo único e compreensível”, a lógica dos percursos das vias expressas tinha outro princípio: ela buscava conectar lugares distantes, porém sem preocupação com a unificação dos diversos setores urbanos por ela atravessados. A análise de Banham mostra que o destino de Watts foi traçado ao mesmo tempo em que se desativavam as últimas conexões da rede ferroviária, a partir do início da década de 1950. Efetivamente, em sua opinião, nenhum lugar em toda Los Angeles estava – estrategicamente – tão mal situado depois da chegada das vias expressas distribuídas pela planície quanto Watts. E ele lamenta:
“Quaisquer que sejam os outros males de Watts – hoje, um ponto negro em qualquer mapa de desvantagens –, seu isolamento em relação às redes de transporte certamente contribui para sua infelicidade” (p. 153).
Ser retirado do fluxo de comunicação significou para o distrito de Watts, na interpretação de Banham, um banimento territorial no interior da metrópole da combustão interna.
Intercalando, às vezes de forma bem brusca, os capítulos dedicados às suas quatro ecologias com outros voltados de forma mais específica aos temas da arquitetura, sem se preocupar em estabelecer uma continuidade muito clara, Banham faz na sequência um balanço historiográfico da chegada do modernismo arquitetônico no sul da Califórnia em “Arquitetura III: os Exilados”. História e estórias se cruzam enfatizando a predisposição cultural da Califórnia em assimilar a vertente europeia das vanguardas modernistas. Vindos diretamente, embora por caminhos ligeiramente distintos, da experiência arquitetônica desenvolvida em Viena e na Wagnerschule, ele destaca dois arquitetos como os mais decisivos: Rudolf Schindler e Richard Neutra.
Schindler trazia na sua bagagem anos de estudo na Academia de Viena conduzido pelo respeitadíssimo Otto Wagner. Já Neutra chegou depois de ter passado uma temporada em Berlim trabalhando com Eric Mendelsohn. Partindo de tão ilustres experiências profissionais, ambos são, na avaliação do autor, responsáveis pela criação da linguagem arquitetônica de Los Angeles. Mesmo depois de produzir casas espetaculares, um bom exemplo da adaptação de Neutra à cultura do sul da Califórnia é o inusitado projeto da Igreja drive-in de Garden Grove de 1962.
Para fechar o capítulo e reforçar o caráter da arquitetura modernista de Los Angeles, Banham enquanto crítico de arte foi buscar na obra do artista plástico David Hockney uma interpretação visual do que denominou “o vernáculo local”. As casas brancas de geometria regular, os cubos básicos rebocados, as piscinas de um azul solar, marcam a atmosfera dos quadros de Hockney tonando-se a marca da arquitetura doméstica de Los Angeles. E, da mesma forma, mas em outra escala, Banham aponta a obra do artista Edward Rucha como interpretação visual das paisagens e da experiência urbana de Los Angeles.
Num novo salto desconcertante na sequência dos temas de seus capítulos, Banham volta à metrópole e dedica um curto capítulo ao seu centro. Nele ele deixa bem claro que inclui o tema da centralidade para negá-lo. Com uma frase impertinente ele esclarece no título do capítulo: “Uma nota sobre o centro”, à qual emenda “porque é só isso que ele merece”. É claro que se trata de mais uma provocação do autor. Mas, na verdade, na sua tese sobre Los Angeles não há lugar para o que é formalmente designado como centro da metrópole, pois não poderia ser assumido como ponto de partida da expansão urbana da metrópole.
Apesar do pouco interesse demonstrado pelo centro, Banham cria um desdobramento interessante da tese defendida por ele no livro. Para ele Los Angeles é uma metrópole ao mesmo tempo dispersa e coesa à medida que todo o seu território, composto pelas três ecologias humanas, é enlaçado pelo sistema de vias expressas, ela mesma a quarta ecologia. As suas partes – encosta, planícies, litoral e freeways – desenvolveram-se simultaneamente – com o padrão de organização em rede. E, é justamente essa simultaneidade de desenvolvimento das suas partes/ecologias que retira do centro os atributos de centralidade, eliminando dali quaisquer funções urbanas que poderiam participar da estruturação da metrópole. Ele contesta, de maneira bem enfática, todos os historiadores urbanos, definidos por ele como pueblocêntricos, que conduzem, reiteradamente, suas análises do desenvolvimento urbano de diferentes cidades e metrópoles como processos de urbanização cuja origem é o centro mais antigo e cuja expansão vai gradualmente rumando para áreas mais distantes e formando anéis concêntricos. De forma bem dura ele assevera:
“No que se refere à vida cotidiana atual dessa metrópole de 180 quilômetros quadrados, a maior parte do que está contido no paralelogramo central definido pelas vias expressas [...] poderia desaparecer da noite para o dia, sem que a maioria de seus cidadãos nem sequer percebesse” (p. 186).
Deixando o centro entregue à sua insignificância urbana Banham parte para a sua quarta e última ecologia. Para abordá-la ele amplia o vocabulário específico do livro criando um novo vocábulo para designar o modo de vida que se desenvolve no universo das vias expressas: autopia! A fusão das palavras automóvel e utopia estão aí para indicar o lugar onde os moradores de LA – a Cidade da Combustão Interna – passam a maior parte de seu tempo, onde estão as suas referências espaciais, onde são calculadas as distâncias que separam as partes da metrópole, lugar por excelência da experiência da cultura metropolitana:
“Esse sacrifício cotidiano no altar do transporte é o destino comum de todos os cidadãos metropolitanos” (p. 190).
“Juntos, o automóvel particular e a via expressa pública proporcionam uma versão ideal – para não dizer idealizada – do transporte urbano democrático: o deslocamento direto de porta a porta no momento desejado, em alta velocidade e cobrindo uma extensa área” (p. 193).
Para marcar o profundo sentido da autopia como ecologia humana, o autor cita uma peça de ficção, exibida inicialmente como uma reportagem da importante revista Cry California onde é descrito o cotidiano de uma família que se organizou para viver num trailer que rolava incessantemente pelas vias expressas de LA. A simulada reportagem foi, na verdade, uma antecipação de um modo de vida identificável que iria ganhar muitos adeptos (11).
A análise da autopia é feita com certa ambiguidade. Por um lado, ele parece compartilhar o fascínio dos moradores/motoristas pela experiência de transitar nas vias expressas, pelo que isso exige de concentração e habilidade, o que acaba por se tornar “um modo de estar vivo”. Por outro, registra os desmedidos engarrafamento e frequência com que viu destroços de grandes colisões. Mas, a verdade é que ele vê na conjugação entre o automóvel particular e a via expressa pública uma versão idealizada do transporte urbano democrático.
O fechamento do livro é feito em dois curtos capítulos. Mais do que o itinerário acidental dos temas tratados nos capítulos, visto como confuso por muitos críticos, os dois capítulos ecoam como prolongamentos e não como fechamentos. No primeiro deles “Arquitetura IV: o estilo que quase...” Banham retoma a questão da especificidade da arquitetura de LA. Aponta, de saída, a importância assumida pela Casa Eames de 1949, propondo um tema interessante a partir da associação do projeto residencial com o da cadeira de aço e compensado, ambos de Charles Eames. Ele viu nessa associação e, sobretudo, no grande sucesso que as duas obras alcançaram, uma manifestação importante de um reconhecimento, em nível internacional, do estilo produzido em Los Angeles. E, sendo ele mesmo editor de uma revista especializada, considerou que a importância assumida pelos projetos de Charles Eames fora do país não advinha apenas de suas óbvias qualidades. Para ele a divulgação das duas obras na conceituada revista Arts and Architecture (1945/1967) sob a direção editorial de John Entenza, teve um papel decisivo no sucesso de Eames.
Ao introduzir a revista e seu editor, Banham estava buscando valorizar a iniciativa que criou um episódio breve e muito fecundo da história da arquitetura do século 20. Tratava-se do Case Study Program proposto pela Arts and Architecture através do seu editor John Entenza em 1945. A meta era organizar o pensamento arquitetônico do imediato pós-guerra tendo como programa a casa do segundo pós-guerra. Estava implícito que se tratava de casas alinhadas com o futuro da arquitetura residencial americana. Segundo o balanço feito por Banham, os projetos designados como experimentais criaram um sentido contemporâneo para o Case Study Program.
Seus comentários são consistentes com suas teses já divulgadas no seu primeiro livro Teoria e design na primeira era da máquina” (12), onde defende que o verdadeiro impulso renovador da arquitetura se realiza através da associação do desenvolvimento industrial e tecnológico em proveito de um caráter menos formal e mais substancial dos projetos:
“O Programa, a Revista, Entenza e um punhado de arquitetos realmente deram a impressão de que Los Angeles estava a ponto de oferecer ao mundo não somente obras avulsas de gênios da arquitetura, mas um estilo inteiramente consistente” (p. 204).
Para ele o estilo consistente se caracteriza pela predominância do uso de materiais industrializados, com destaque para o vidro e o aço.
E, como nada neste livro é muito convencional, no seu último capítulo não devemos esperar uma conclusão. Ali o leitor se depara com uma defesa ardorosa da escolha e pertinência de seu objeto de análise – a Grande Los Angeles – assim como de seu método de trabalho. O autor se diz convicto de que a metrópole do sul da Califórnia possui atributos generalizáveis que devem ser analisados e trabalhados para que outras, na verdade quase todas as metrópoles do mundo, sejam igualmente descritas e analisadas. Num parágrafo bastante veemente, ele enfatiza seu ponto de vista que parece ter destino certo, isto é, todos os autores que com suas obras buscaram denegrir a maior metrópole californiana:
“Los Angeles ameaça a inércia intelectual e o ganha-pão de inúmeros arquitetos, artistas, urbanistas e ambientalistas, porque transgride as regras do projeto urbano que eles promulgam com suas obras e textos e que ensinam a seus alunos” (p. 214).
Ao introduzir a questão das densidades urbanas e suas correspondentes formas de estruturação, Banham combate diretamente Le Corbusier, citando também Jane Jacobs e Sibyl Moholy-Nagy, sem deixar de mencionar todo o Team Ten. Sem meias palavras, condena todos que viam na densidade urbana um risco ao bom funcionamento das cidades e metrópoles. Em sua opinião, estavam todos equivocados nas suas teorias sobre os ingredientes que garantem qualidade urbana. É interessante observar que no grupo citado por Banham não há um consenso sobre a forma e a organização ideal das cidades. Nessa lista, como sabemos, prevalece uma grande heterogeneidade de pontos de vista. Teses bastante distintas e, até mesmo conflitantes são colocadas lado a lado.
A questão da densidade urbana, que nestas primeiras décadas do século 21 volta a ser um tema dominante para o urbanismo e para o planejamento urbano, foi colocada nas páginas finais do livro de forma bem interessante. Pois, se desde a última década do século 20 o conceito de cidade densa vem ganhando adeptos fervorosos, em contraponto à condenação das baixas densidades, vista como dispersão urbana, representada pelo urban sprawl, é preciso reconhecer que na análise da grande Los Angeles feita por Banham as baixas densidades não se apresentaram de forma isolada ou negativa. A grande ênfase dada por ele ao decisivo papel das infraestruturas na organização urbana aponta para um aspecto essencial: em LA são suas quatro ecologias, coexistindo numa relação de sistemas indissolúveis, as responsáveis pela criação de uma organização urbana de tipo pós-metropolitano, que é essencialmente pouco denso.
“para produzir um paraíso instantâneo, é preciso acrescentar água – e continuar acrescentando. Uma vez aproveitados, desperdiçados e esgotados os parcos recursos locais, a política de recursos hídricos se tornou uma preocupação premente e até mesmo um fator decisivo na definição das fronteiras políticas de Los Angeles” (p. 11).
E ainda:
“porém, um solo fértil e irrigado não serve para nada se não for acessível; o transporte foi o principal fator a moldar Los Angeles, depois da terra e da água” (p. 14).
A citação acima, que caberia perfeitamente num compêndio de planejamento urbano, está longe de lembrar que o próprio autor, pouco tempo antes de mergulhar na grande Los Angeles, participou ativamente da publicação denominada Non Plan. Tratava-se de uma forte reação ao planejamento urbano praticado na Inglaterra no pós-guerra que, em sua opinião, “estendia um manto de restrições sobre todo o universo construído” (13).
O texto Non Plan possui todos os ingredientes de um manifesto em favor de uma forte desregulamentação das leis e normas que regiam o planejamento urbano, visto pelos seus autores como uma ação em descompasso com as possibilidades científicas e técnicas que já se encontravam presentes na sociedade. O pensamento expresso no Non-Plan continha uma relação clara com os pontos apresentados no Manifesto Futurista: “casas durarão menos do que nós. Cada geração terá de construir sua própria cidade” (14).
Fazendo um paralelo entre Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias com algumas premissas do Non Plan, fica claro que não seria possível para o autor propor a substituição de um modelo por outro. No Non Plan a proposta é abrir caminho para informações e necessidades que vinham da vida cotidiana, para a potencialidade de incluir as transformações tecnológicas que impactavam a vida na metrópole, e não apenas propor novas configurações territoriais. Vale lembrar que a publicação da Revista New Society onde foi divulgado o ponto de vista do grupo em 1969, estampava o seguinte título “Non Plan: An Experiment in Freedom”.
Há hoje há quem aponte incomodas convergências entre os pontos defendidos no Non Plan com posturas liberais em relação às cidades e metrópoles. As ações governamentais que conduziram os projetos de renovação urbana, que se multiplicaram nas décadas de 1970 e 1980, foram vistas como um intenso e preocupante avanço do laissez-faire urbano (15). A citação feita por Banham de um trecho do relatório A Regional Urban Design for the West Coast, de Herb Rosenthal, lança mais água no moinho das convergências ao apontar que “à medida que crescem as cidades estrangeiras tendem a parecer cada vez mais com as cidades norte-americanas, especialmente com Los Angeles” (p. 216). Tal similaridade é atribuída por Rosenthal, naquele relatório, ao modo de vida baseado no automóvel. Mas, Banham foi buscar a citação para nega-la, considerando esta opinião simplista, mecanicista e errônea. Porém, ao longo de todo o livro os leitores dificilmente deixam de identificar em Los Angeles traços de todas as grandes metrópoles do capitalismo contemporâneo. A forte negação do autor, apoiado no processo histórico do desenvolvimento de Los Angeles, não afasta a percepção que muitas metrópoles em todo mundo, desenvolvido ou não, de São Paulo à Lagos ou de Tóquio à Cidade do México, podem também ser nomeadas metrópoles do movimento, ou, cidades da combustão interna.
Por outro lado, é preciso reconhecer que poucos, dentre os inúmeros autores que analisaram a metrópole sul-californiana, se debruçaram sobre ela de forma mais determinada. Aprender a guiar um automóvel, como fez Banham, para conhecer a essência de seu modo-de-vida, se sentindo “como um literato que aprende italiano para ler Dante no original”, é uma indiscutível demonstração de dedicação intelectual. Tal disposição, entretanto, não o redime de ter deixado de tratar de forma explícita que a implantação do fantástico sistema de vias expressas foi fruto de um poderoso planejamento estatal, totalmente centralizado, de abrangência nacional e internacional. Apesar do processo de instalação das freeways ter se iniciado nos anos 20, foi na década de 1950 que ganhou enorme impulso, multiplicando em quatro vezes a sua extensão no território americano. O programa Federal-Aid Highway (1956) levou Los Angeles a se consolidar como um arquétipo de cidade do movimento, de cidade da combustão permanente e, de cidade como freeway, na ótima designação de Peter Hall (16).
Estes são os aspectos tratados no livro “Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias” que teve a ambição de forjar uma sensibilidade nova, como afirma Anthony Vidler (17), para a análise de metrópoles cuja história foi traçada no século 20 e que tem papel de destaque no século 21. Entretanto, é preciso apontar outros aspectos que emergem do livro, passadas mais de quatro décadas da observação e da análise feitas por Banham.
Nessa perspectiva, tomando como termo de comparação a metrópole de São Paulo, encontramos alguns paralelos. Em Los Angeles assim como em São Paulo o percurso histórico da expansão territorial urbana possui relação direta com uma profunda mudança no modo de transporte público. Nos dois casos, num intervalo de tempo também bem próximo, foram substituídos de forma radical pelos seus respectivos órgãos governamentais responsáveis pelo transporte público, sistemas de mobilidade baseado nos trilhos por um modo assentado sobre pneus. Esse é um fato indispensável para o entendimento da história urbana dessas duas metrópoles situadas em pontos bem distantes do quadro geral do capitalismo contemporâneo.
Trata-se de uma analogia que conduz a outros aspectos das duas realidades nacionais nas quais as duas metrópoles estão inseridas. Se por um lado o ponto de partida, tanto no caso de Los Angeles como São Paulo, é a opção pelo sistema de transportes sobre pneus, o processo de substituição tem estreita relação com a localização de ambas no campo da economia capitalista mundial. Enquanto em Los Angeles a substituição se deu no próprio modo de transporte público, pois se promoveu a passagem de um transporte público de massa para o transporte individual, baseado no automóvel privado, foi uma deliberada ação do governo central de equipar o território, em grande escala e com alto padrão de eficiência técnica, da infraestrutura física indispensável – o poderoso sistema de vias expressas. O projeto nacional Federal-Aid Highway criou as condições para assegurar a realização da infraestrutura fixa, tanto na escala urbana com as freeways, como na escala interestadual com as highways – para todo o território americano. Já em São Paulo, a substituição ocorreu a partir de uma ação comandada pelo poder público que por um lado manteve o compromisso com o transporte público de massa, baseado numa extensa rede de ônibus, mas por outro, o realizou de forma muito contingente e incompleta. A principal conveniência apresentada pelo novo modo foi a rapidez e o baixo custo de sua implantação, sobretudo, quando comparada aos investimentos e tempo necessários para que a expansão territorial fosse conjugada com um sistema sobre trilhos. E, tendo em vista a relação já mencionada antes de expansão do território urbano, em São Paulo foi decisiva a sua capacidade de acomodar-se a topografias menos favoráveis, notadamente as íngremes.
No caso de Los Angeles a expansão territorial associada ao padrão designado como sprawl conjugada com o sistema de vias expressas, gerador do subúrbio (suburb) de classe média, é distinta em quase todos os aspectos, do social ao físico, do tipológico ao morfológico, mas, acima de tudo, no que diz respeito às infraestruturas básicas , daquela produzida em São Paulo responsável pela desastrosa urbanização periférica e todos os seus desdobramentos.
Ao escolher Los Angeles como seu objeto de estudo, Banham acreditou ter encontrado, já plenamente realizada, a metrópole radical. Reconheceu na paradigmática metrópole do sul da Califórnia, os atributos enunciados até então de forma teórica. Essa escolha foi decisiva, pois encobriu as teorias e proposições imagéticas do grupo Archigram, e as propostas da Plug-in City e da Instant City, difundidas na década de 1960, aliás com seu importante aporte conceitual, animado pelo combate ao pensamento urbano que ele via como rígido e inadequado. Mas, para ele a dimensão Pop dessas propostas não chegaram a se tornar verdadeiras alternativas para as questões urbanas da década de 1960. Seu pensamento sobre as questões urbanas se traduziu na máxima: “é necessário buscar alternativas radicais para enfrentar as ortodoxias ainda presentes no ideário urbano”(18).
O conceito de metrópole radical está associado na obra de Reyner Banham à noção de processo, no seu sentido mais largo, naquilo que ele acreditava ser um real expanded field, que se traduz pela permanente apropriação de territórios urbanos através do emprego de técnicas e tecnologias já conquistadas ou que estão ainda em gestação. Da palavra apropriação se desdobram duas outras, transformação e adaptação, ambas indicando a relação da sociedade com os territórios cujos processos de urbanização almejam criar ambientes adequados para as atividades humanas. A visão da metrópole como uma construção permanente, como agente e produto do processo histórico, é bastante perturbadora para os que acreditam na possibilidade de domar o crescimento urbano através apenas de regulações, normas e dogmas, tal simplificação pode conduzir à inércia intelectual que Banham denuncia de forma veemente no seu livro.
notas
NE – Publicação original: MEYER, Regina. Revista Pós, v. 23, n. 41, São Paulo, USP, 2016.
1
“Queime, baby, queime”. Slogan dos revoltosos do distrito de Watts em 1965. Epígrafe do livro “Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias”. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2013.
2
Primeira edição: Banham, Reyner. Los Angeles – the architecture of four ecologies. Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1971. Edição brasileira: “Los Angeles – a arquitetura de quatro ecologias”. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2013.
3
Banham, Reyner. Sant’Elia and Futurist manifesto. Architectural Review, 1955.
4
Valery, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. São Paulo, Editora 34, 1996.
5
Snell, Bradford. The Streetcar Conspiracy. How General Motors Deliberately Destroyed Public Transit. Disponível em: <http://www.tompaine.com/history/2001/09/10/index.html>; Snell, Bradford. The truth about "American Ground Transport" – a reply by General Motors. United States. Congress. Senate. Committee on the Judiciary. Subcommittee on Antitrust and Monopoly. Washington, D.C.], [U.S. Govt. Print. Off.], 1974.
6
Meyer, Regina Maria Prosperi. Metrópole e urbanismo. São Paulo nos anos 50. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1991.
7
Norton, Pat. Psychogeography and the end of planning. Londres, Blackwell London, 2006, p. 7.
8
Davis, Mike. Ecology of Fear. Nova York, Metropolitan Books, 1998.
9
Hall, Peter. Cities of Tomorrow. Londres, Blackwell Publishers, 1993, p. 294.
10
Idem, ibidem, p. 297.
11
Em 2012, de acordo com estatísticas, 20 mil americanos viviam em trailers. Hoje, passados 40 anos, os trailers ganharam estacionamentos públicos e privados devidamente equipados, nos quais a designação de mobile homes foi mantida.
12
Primeira edição: BANHAM, Reyner. Theory and Design in the First Machine Age. Londres, London Architectural Press, 1960. Edição brasileira: BANHAM, Reyner. Teoria e desenho na primeira era da máquina. Coleção Debates, n. 113. São Paulo, Perspectiva, 1975.
13
Cf. FONTENOT, Anthony. Notes Toward a History of Non Planning. Places Journal, January 2015.
14
Cf. Manifesto Futurista (1914).
15
Cf. FONTENOT, Anthony. Op. cit.
16
Hall, Peter. Op. cit., p. 831.
17
Cf. Antony Vidler em seu prefácio para a edição de 2000 e também na edição brasileira de 2013.
18
Whiteley, Nigel. Reyner Banham – historian of the immediate future. Cambridge MA, MIT Press, 2002.
sobre a autora
Regina Maria Prosperi Meyer é arquiteta (FAU UNB, 1974), especialista em Urban Design And Urban Planning (Architectural Association School Of Architecture, 1977), mestre em Arquitetura (University of London, 1978), doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 1991) e professora titular da Universidade de São Paulo.