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português
Memória, história, subjetividade, arte, imagem e etnografia são temas abordados nesta coleção de quatro livros resultantes do projeto “Experiências Metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea” e do evento Corpocidade 4.

english
Memory, subjectivity, art, image, ethnography are subjects addressed in this collection of four books resulted from the project “Methodological Experiences for the understanding of the complexity of the contemporary city” and from the event Corpocidade4.

español
Memoria, subjetividad, arte, imagen y etnografía son los temas abordados en esta colección de cuatro libros resultados del proyecto "Experiencias Metodológicas para la comprensión de la complejidad de la ciudad contemporánea" y del evento Cuerpo Ciudad 4.

how to quote

SILVA, Maria Angélica da. O jogo, o caleidoscópio, a montagem. Sobre Corpocidade, Paola Berenstein Jacques e Companhia. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 185.05, Vitruvius, maio 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/16.185/6543>.


Uma pequena caixa colorida coberta por imagens nuançadas. Dentro, quatro livros. Anuncia-se como uma coleção denominada Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Chega-nos como produto final de um projeto Pronem – Programa de apoio a Núcleos Emergentes – promovido pelo CNPq / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, desenvolvido pelo Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia. O projeto culminou com um evento ocorrido em Salvador, Corpocidade 4, em 2014. Alinha os volumes o fato de todos os autores dos capítulos terem sido membros da equipe da pesquisa.

Este anúncio, porém, está longe de dar conta do que nos espera dentro desta caixa. Não se encontrará ali, perfilados um após o outro, textos de autores que foram selecionados a apresentar suas contribuições num evento acadêmico. Nem sequer um encadeamento de artigos que corroboram argumentos entre si. Quem acompanha de alguma forma a trajetória do Laboratório Urbano, seja através de suas dissertações e teses, seja dos livros, das entradas nas redes virtuais, da revista Redobra e do evento Corpocidade, já aguardariam por uma contribuição desafiadora.

Seus trabalhos consolidam uma trajetória de reflexões que vem, há um longo tempo, nutrindo o pensamento acadêmico e não acadêmico. As ações do Laboratório Urbano se tornaram referência internacional a partir de um trabalho cuidadoso e criativo, na contramão das práticas tradicionais de pensar a cidade e o urbanismo, buscando aliar criação e ciência, técnica e arte. Suas ações teóricas fazem-se práticas e vice-versa. Numa saudável conversa universal, alia interlocutores de diversas outras universidades, que também colaboraram na escrita da coleção.

Considerando que no campo dos seus estudos a cidade é o grande lócus das experiências, os trabalhos do Laboratório e de seus parceiros possuem o mérito de terem se efetivado amalgamando o pensar sobre a cidade contemporânea com a imersão provocativa na mesma. A cidade de Salvador na sua prática cotidiana colocou-se como tema, motivação e lugar da produção do conhecimento acolhido pela coleção. O que não impediu, muito ao contrário, que outras cidades e seus outros “praticantes” (termo caro ao Laboratório Urbano) se juntassem à mesma.

Assim, a coleção trata de eventos que em grande parte se realizaram na cidade e com os seus praticantes.  E que se apresentam ali em diálogo com outros textos e com imagens, num grande caleidoscópio, que permite o gesto de mover as contribuições a partir de chaves de leitura à escolha do autor. Portanto, a ordem não é ordem.

Corpocidade, fórum que se pretende antiburocrático, sem crachás, pondo em xeque códigos de conduta acadêmica, privilegia o espaço fora da universidade e o formato de intervenção urbana. A Faculdade vira a cidade. Na sua versão de número 4, da qual vem a coleção, houve mudanças. A ida imediata às ruas foi substituída pela reunião prévia de grupos de estudo, adotando formatos que foram denominados seminários de articulação, seminários públicos e oficinas.  Mas sair às ruas e “dar espetáculo” permaneceram: intervenções provocativas estão no âmago do Corpocidade. E acolheu-se no Mastaba, o auditório-alma da FAU/UFBA, com gangorra entre ramos de um flamboyant,  não só acadêmicos, mas membros e representantes das comunidades locais.

Sem título, Chicosta, 1978

Cada um dos quatro tomos que balizam a trajetória do Laboratório, abre-se pelo anúncio de um conjunto de palavras-chave motivados pelo Corpocidade 4. O primeiro – “Experiência, apreensão, urbanismo” – refere-se ao processo de pesquisa que sustentou o projeto. Os outros três seguintes correspondem às três mesas que compuseram o evento, tratando dos temas: “Subjetividade, corpo, arte”; “Alteridade, imagem, etnografia”; “Memória, narração, história”. Estas palavras inspiram textos e imagens que “brincam” como numa ciranda, sem deixar de serem compreendidas como um conjunto complexo de temas e abordagens que, de acordo com a vocação transdisciplinar do Laboratório, é composto a partir de diferentes e heterogêneas perspectivas.

Se por um lado o título anuncia o que o Laboratório realizou, por outro expande a atitude anunciada qual seja, o saber de laboratório experimentado. Caleidoscópio é a metáfora adotada para a coletânea como a expressão física que gera uma série de analogias sobre temas, métodos e formas de pensar a cidade e seus habitantes.  De fato, artigos e livros, fragmentos do evento e revistas já editadas, embora separados em tomos específicos, se mesclam e se misturam. Expressam, para além da exposição teórica, formas concretas de propor a cidade contemporânea. Portanto, de uma forma bastante flexível, trazem alternativas de instrumentalizar a ação acadêmica, institucional ou associativa dos que se debruçam em pensar, atuar e viver a cidade.

Caleidoscópio e montagem colocam-se como palavras da experiência construtiva do pensamento que conduz a feitura dos livros, mas também contamina a sua forma editorial. Presencia-se a um desmanche de conceitos preliminarmente postos para escritas e imagens movidas por detalhes, lampejos, fragmentos.  Cada elemento se constitui numa peça gráfica bem trabalhada onde, à linguagem escrita, se alia uma solução de forma e pode-se dizer, de estrutura, que desenham os volumes de forma quase escultórica. Em cada um deles, sumário e diagrama criam entradas e saídas para o livro, de forma a construir sínteses dos conteúdos, sempre interpretáveis.

Assim, a complexidade, o polifônico, o dissensual, enunciados como posturas, percorrem os discursos e atuam graficamente. Textos e imagens se apresentam escarificados, com pixels estourados, sujeitos a intervenções e borras. Entremeados ao próprio texto dos artigos, espiam pedacinhos da revista Redobra que, em tiras, traspassam o texto dobrando-se novamente e se somando às colagens de imagens e outras referências que vão surgindo. Conforme Paola Berenstein Jacques, um tear surrealista entretece os fios sem ordem rígida, alinhando experiências urbanas, registros de apreensão, campos disciplinares (1).

Entendendo os saberes múltiplos, nunca compartimentados, se aglutinando e se espalhando em fragmentos, arriscaria propor mais uma metáfora – a dança – como uma forma de perceber e mergulhar nas reflexões reunidas nos pequenos livros. Pois os temas trafegam, mais do que entre partículas como num caleidoscópio, através dos corpos moventes do sujeito “como aparição e precariedade” (2). As atenções se voltam para os denominados “praticantes ordinários”, “anônimos” ou “infames”, os “errantes”, os “ordinários”, os “sem nome”.

Eduardo Lima fala em espaço praticado (3). E é neste modo de produção de cidades – “cidade-resto”, “cidade nômade”, “cidade incomensurável”, “cidade sensual”, “cidade do infame”, “cidade da fábula” – onde se fixam os olhos, a curiosidade e os desejos dos pesquisadores do Laboratório Urbano” (4).

Quanto ao corpo, segundo Thais de Bhanthumchinda Portela, “é e se faz a cada instante, dependendo das conexões envolvidas. O corpo é conexão com o que o cerca e o que o cerca também perfaz o corpo” (5). A corpografia pensa o corpo em co-implicação. Não é por coincidência que o Laboratório Urbano implica em diálogo com saberes diversos, incluindo a dança.

Sem título, Chicosta, 1978

Xico Costa afirma que Corpocidade “tem como fundamento o fortalecimento de uma ideia de cidade caracterizada pela sua diversidade, complexidade e simultaneidade, que demanda uma necessária e inevitável superação da compartimentação de olhares. [...]. Façamos silêncio, vamos escutar. A Cidade é quem deve falar. Depois, recolhidos num dos abrigos que ela nos permite, vamos refletir e escrever sobre um pequeno experimento imerso nesta inabarcável ideia que é a Cidade” (6).

Além do caleidoscópio, com seus vidros, movimento e cor, outra ideia que perpassa os livros é a noção de montagem. Novamente, fragmentos, dissipação de certezas. Na apresentação do conceito de montagem como método de conhecimento, criação, de exposição de ideias, menciona-se as vanguardas modernas. Bataille, Brecht, Eisenstein, Aragon, Breton. Mas também Benjamin e as passagens, Warburg e seu atlas somados às interpelações contemporâneas de Didi-Huberman. Para Paola Berenstein Jacques,

“A ideia de montagem está diretamente ligada a uma lógica fragmentária, da incompletude e da efemeridade, muitas vezes entendida como um tipo de ‘desordem’ que o próprio Benjamin já tinha citado como ‘desordem produtiva’ ou ‘desordem criadora’ ao comentar e citar um fragmento do livro Em busca do tempo perdido, de Proust” (7).

Pensar os estudos sobre cidades e urbanismo neste ponto de vista, nos leva a considerar as próprias cidades vistas como montagens complexas. Montagem seria método, seria maneira de contemplar não só a própria cidade mas  o tempo, a memória involuntária, os sonhos, as formas de agir.

“A montagem urbana seria uma “ciência nômade”, pois está em variação contínua, no infindável processo de montagem-remontagem-desmontagem, quando colocamos diferentes imagens, detalhes, fragmentos numa mesa/prancha podemos modificar suas posições criando várias configurações, ao reconfigurar (desmontar e remontar) a ordem da seleção, ou seja, ao fazer com que os fragmentos mudem de posição, criamos outras composições ou constelações, novos nexos e relações. “podemos buscar apreender, narrar e conhecer uma cidade, um espaço urbano específico, pela montagem de fragmentos de diferentes narrativas sobre suas experiências urbanas mais diversas, de tipos, campos e também de tempos distintos (agoras e outroras)” (8).

Os conceitos de caleidoscópio e de montagem se aproximam. Vê-se passando como uma miragem o historiador trapeiro de Benjamin, a recolher restos, resíduos e farrapos, os pequenos fragmentos coloridos do caleidoscópio, também restos...

“Pela prática da montagem seria possível mostrar outras relações escondidas nesses minúsculos rastros de vida, breves frestas de resistências e potências, poeiras de diferentes experiências urbanas, que ainda sobrevivem entre nós, fragmentos (rastros mnemônicos de vivências, experiências da cidade) que se insinuam em nossa própria tessitura histórica e provocam outras constelações de narrativas” (9).

Mas ao final, como fica a posição de quem resenha um tipo de livro como esses? Pode-se ouvir opiniões que se extraem da própria obra, como a de Janaina Chavier:

“Faço de conta que estou lá naquela sala e depois na cabeça e depois a cachaça e depois o corpo do Gabriel e depois a varanda e depois embaixo da árvores e depois a lua [...]. Parece, no fundo, que tudo é a mesma coisa; que eu ter que falar de uma experiência é também eu ter a experiência de novo e depois e agora não são a mesma experiência; parece  que a gente para fazer o outro compreender um pouco disso tem que fazer ele não compreender para também passar pelo que a gente não compreende” (10).

Em busca de outras formas de conhecer, há o desmontar de tempos e cronologias. Acolher a multiplicidade de narrativas, de incongruências, leva à busca de uma compreensão complexa, mas nem por isso arbitrária, da cidade e do urbanismo. Sua resenha, portanto, só pode se constituir também ela mesma como montagem caleidoscópica, como já o são os livros que se engajam neste nicho metodológico. Passar os limiares espaciais, as zonas de fronteira das cidades.  Atravessar também, no processo de montagem, as partições disciplinares, que não flutuariam, mas se friccionariam, em interpelações as mais diversas, num caleidoscópio, numa montagem, no movimento dos corpos. Nos gestos. Na cidade que dança.

Estudo Urbano Um, Chicosta, 1981

Neste jogo de cacos, de refrações, de discursos que rebatem em outros discursos, um atravessamento teórico ocorreu quando o tema da tradução, temática central da fala de Aléssia de Biase, apresentado no livro 3. Se tradução é traição – como quer Osnildo Adão Wan-Dall Júnior (11) –, esta narrativa que toma aqui o nome de resenha, sobreposta às narrativas organizadas nos livros, que por sua vez buscaram “traduzir” um evento, ou melhor, uma trajetória de ações, pensamentos e atos, deixa questão: “Como eu narro o outro, essa alteridade quase inacessível?” (12).

Margareth da Silva Pereira afirma: “é como se todo o dito conduzisse a um inominável, a um silêncio” (13). Participante da sessão de encerramento, o testemunho de Xico Costa vai nesse sentido:

“Afinal, não seria aquele próprio Corpocidade mesmo o objeto da nossa experiência? Então como descrevê-lo deste dentro? [...] E é a partir desta perspectiva que podemos considerar o Corpocidade 4 objeto e campo de experiência. Portanto, uma síntese narrativa no âmbito da própria experiência é ela mesma também objeto e experiência” (14).

Se “o que se produz é antes de tudo uma retórica, um discurso simbólico que sem ser regra ou exceção é um ícone distante da língua de Adão”, como diz Margareth da Silva Pereira (15), a resenha faz-se o relato impossível. Costura sobre costura. Interpelação ao outro para que também venha fazer parte da roda.

notas

1
Cf. JACQUES, Paola Berenstein; DRUMMOND, Washington. Caleidoscópio: processo pesquisa. in JACQUES, Paola Berenstein; DRUMMOND, Washington (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo I – Experiência, apreensão, urbanismo. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 14.

2
Idem, ibidem, p. 21.

3
LIMA, Eduardo. Laboratório: desdobramentos defendidos. In JACQUES, Paola Berenstein; DRUMMOND, Washington (Orgs.). Op. cit., p. 161.

4
Idem, ibidem, p. 164.

5
PORTELA, Thais de Bhanthumchinda. No corpo e na cidade: o que enfim há de se propor sem cair na armadilha do pensamento único? In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo II – Subjetividade, corpo, arte. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 66.

6
COSTA, Xico. Relato de uma escrita possível. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo III – Alteridade, imagem, etnografia. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 112.

7
JACQUES, Paola Berenstein. Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo IV – Memória, narração, história. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 51.

8
Idem, ibidem, p. 79.

9
Idem, ibidem, p. 82.

10
CHAVIER, Janaina. Piloia-sete-virtudes-refrigério da filosofia-esquenta-por-dentro: sopros de uma experiência compartilhada. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo III – Alteridade, imagem, etnografia. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 116.

11
Cf. Wan-Dall Júnior, remetendo-se a Umberto Eco. WAN-DALL JUNIOR, Osnildo Adão. Somos todos outros. Tradução, recepção e traição da experiência – anotações de uma articulação entre memória, narração e história. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo IV – Memória, narração, história. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 158.

12
Idem, ibidem, p. 156.

13
PEREIRA, Margareth da Silva. Inocência e reflexividade: ou notas sobre as construções narrativas da história da arquitetura e do urbanismo. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Orgs.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo IV – Memória, narração, história. Salvador, EDUFBA, 2015, p. 42.

14
COSTA, Xico. Op. cit., p. 92.

15
PEREIRA, Margareth da Silva. Op. cit., p. 44.

sobre a autora

Maria Angélica da Silva é arquiteta (UFMG), mestre em História Social da Cultura (PUC-Rio), doutora em História (UFF, 1998), com bolsa sanduíche cursada na Architectural Association School, Londres, e estágio de pós-doutoramento (Universidade de Évora, 2006-2009). É professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFAL, onde foi coordenadora do Programa de Pós-graduação. É membro da Associação Ibero-americana de História Urbana, coordena o Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem e bolsista de produtividade do CNPq. Em 2015, recebeu a Comenda do Mérito da FAPEAL (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas).

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