“É que sou um herético na pintura de hoje. Reivindico o direito à herança acumulada no ofício e o de construir a partir dela. Por isso trabalho”.
Sérgio Ferro, A liberdade na arte (1)
Há nas obras de Atalie uma serenidade nas cores que, por vezes, desmancha a geometria precisa, emprestando uma sensação ambígua e inquietante de leveza e densidade. Ambas, leveza e densidade, são atributos que, certamente, podemos verificar em outros artistas, mas em Atalie a sua permanência ao longo dos anos, perpassando vários temas e técnicas distintas, aproxima suas pinturas conferindo identidade e consistência à sua produção. Há qualidades específicas em cada um dos seus quadros, mas há, sobretudo, uma comunicação entre eles, um diálogo pictórico que enriquece a noção imediata de evolução; os detalhes e elementos revigoram-se e refinam-se a cada obra.
Visualizar uma série extensa de um artista permite identificar seus percursos, os caminhos que explora e desvenda, as perguntas e escolhas que faz, as rupturas que realiza e as linhas que persegue e prolonga. A coerência da produção de Atalie, a relação que estabelece entre suas obras e destas com as encruzilhadas da pintura, é sua maior riqueza. Isto não subtrai as qualidades individuais de cada peça, pelo contrário, alça-as a um plano mais elevado, a de um movimento pessoal que persegue valores perenes, ao mesmo tempo em que experimenta o sabor das invenções.
Percebemos, com um pouco de atenção, diante de dois quadros dos trabalhadores “bóias-frias” de séries distintas, a primeira de 1983 e a segunda datada de 2005, que os mesmos sentimentos nos envolvem, porque são objetos de reflexão contínua. As pinturas conversam e revelam o território de referências de Atalie, o da vanguarda moderna brasileira que ao agregar os procedimentos artísticos da vanguarda européia, liberou a criatividade dos cânones então vigentes, permitindo que a realidade e a cultura local fossem visitadas, e não mais expiadas ou desdenhadas. A latitude de seu olhar é frontal diante dos arcaísmos e de suas reminiscências que se eternizam. A sua pintura lembra que o primitivo e o arcaico social, não representam uma outra realidade, mas a essência da matriz social brasileira, e distanciando-se de uma fatura panfletária, investiga as suas manifestações como fontes de pesquisa formal, ampliadoras do repertório artístico. É pela subjetividade artística, conferindo às figuras dos trabalhadores à humanidade que lhes é retirada dia-a-dia, que Atalie se insere no contexto social. A sua atitude, de mesma extração dos modernos, é a de trabalhar e pensar a realidade perturbadora. Nega a sua omissão, inquirindo-a plasticamente.
Sua pintura figurativa caminha entre operários, ambulantes, bóias-frias. O domínio da aquarela, ora transparente, ora densa, aponta novas referências mais atuais e complementares ao circuito pictórico do modernismo. Mas essas referências guardam certa complexidade e articulá-las exige muita propriedade. A pintura, como todas as manifestações artísticas, não possui mais a força social que detinha décadas atrás quando a arte brasileira conheceu debates acalorados. A ortodoxia realista, a inovação concreta, a crise do objeto e do suporte, o experimentalismo, a introdução da nova figuração e da linguagem pop, dividiam artistas, adquiriam conotações políticas e engendravam manifestos e coligações. A pintura após esse período perdeu parte de suas convicções e retraiu-se, cada pincelada parece buscar um discurso que a legitime, ora restrito ao campo da pintura, ora ampliando o mesmo campo para além dos marcos da própria pintura, articulando sua linguagem a da impressão gráfica, da fotografia, do cinema, da televisão e de toda sorte de dispositivos da indústria cultural.
Iniciando a sua produção na década de 1970, tendo esses episódios, além do primeiro modernismo, como herança e ultrapassando os seus limites com pleno domínio técnico, Atalie sonda os novos significados plásticos daquelas manifestações, alimentando-se da ampliação do campo disciplinar e criando sua linguagem. Dela emerge, de forma pouco usual nas pinturas de trabalhadores, a massa de tinta homogênea da resolução gráfica que a art-pop explorou. Já em outros quadros traz nova dualidade, expressa entre o céu geométrico abstrato e a materialidade da alvenaria das residências urbanas do café na cidade de Franca, das igrejas barrocas das Minas Gerais e das estações de trem de várias cidades do interior. As experimentações são várias. A geometria, por vezes, se vale da própria história, como no caso das edificações de São Luís, onde a abstração surge a partir das estampas que propiciam vida aos azulejos portugueses, problematizando e invertendo a compreensão linear de geometria moderna e realismo primitivo.
Esses procedimentos revelam a sua poética, a relação com os percursos da cultura e da pintura, na construção de uma síntese de tempos, entre a história e a inovação, entre o moderno formador e a figuração contemporânea. Nas primeiras explorações é o arcaísmo do trabalho, que através da linguagem urbana e pop, revela-se atual e no segundo grupo de obras, é o lirismo cromático que cerze a dualidade entre abstração geométrica e densidade de um lugar, carregado de significados.
Nas pinturas de Atalie não há julgamentos explícitos, há sentimentos invisíveis que as pinturas despertam no observador. Sentimentos fortes propiciados pela leveza do seu olhar e a densidade das mãos no jogo de resgates e inovações, como nas pequenas séries de gravuras. As poucas peças fazem meia parede com a precisão econômica da linguagem, alinhando-se, aqui também, a episódios da mais refinada arte social brasileira, como a saudada por Mário Pedrosa em artistas como Lívio Abramo.
Nas séries de pinturas de trabalhadores urbanos e rurais, nos quadros de edificações urbanas, nas telas de pássaros e em toda a sua produção, se somos conectados à realidade brasileira, somos também conduzidos ao ofício da pintura. A opção de Atalie é clara, trabalha as linguagens artísticas contemporâneas, explorando a herança do ofício em suas várias dimensões.
nota
1
FERRO, Sérgio. A liberdade na arte. Futuro anterior, São Paulo, Nobel, 1989, p. 69-73.
sobre o autor
Miguel Antonio Buzzar é professor do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Carlos.