Não faz muito tempo, fui assistir a uma ópera. Era As Bodas de Fígaro, de Mozart. Lá para o final, o personagem mais importante, Fígaro, faz um retrato cruel das mulheres. Diz: “Abram um pouco os olhos, homens incautos e bobos. Olhem essas mulheres, olhem o que elas são”.
Segue enumerando: “São bruxas que enfeitiçam para nos deixar sofrendo, sereias que cantam para nos afogar... São rosas espinhosas, raposas maliciosas, mestras de engano e de angústias, que fingem e mentem, que amor não sentem, não sentem piedade”. Conclui: “O resto do que são capazes não digo: cada um já sabe”. E Mozart, com seu humor malicioso, faz então soarem as trompas: o nome do instrumento em italiano é “corno”.
No século 18, quando As Bodas de Fígaro foi composta, a sala toda ficava iluminada. Não se deixava o público no escuro, como hoje. Os cantores podiam então interpelar diretamente a assistência. Na montagem que vi, o diretor de cena teve a ideia de acender as luzes da sala durante a ária de Fígaro, que saiu do palco e dirigiu-se aos homens presentes.
Eu estava na extremidade da fileira, ao lado do corredor por onde ele passava. Logo atrás de mim, na segunda fila, uma senhora furiosa levantou-se. Fez o sinal de “não” nas fuças do pobre cantor e retirou-se protestando em voz alta. De início, pensei que fosse parte do espetáculo — hoje em dia, com as montagens modernas, tudo é possível. Mas não, era uma feminista embravecida.
Pensei que ela poderia ter prestado mais atenção. O tema nuclear de As Bodas de Fígaro é atual: trata-se de desmascarar, denunciar e punir um poderoso aristocrata que é violento predador sexual.
A peça da qual a ópera foi extraída é de um francês, Beaumarchais. Pareceu subversiva e foi proibida. Nela, a velha Marcelina proclama, de maneira eloquente, a tirania masculina.
Diz, entre outras coisas: “Mesmo na sociedade mais elevada, as mulheres obtêm dos homens apenas uma consideração irrisória... Somos mantidas numa real submissão, tratadas como menores de idade no que se refere aos nossos bens, mas como maiores quando devemos ser punidas”. Mozart excluiu esse trecho para evitar a censura, mas, ainda assim, fez uma clara acusação antimachista.
Aquela senhora furiosa não deu tempo para a conclusão da ópera, não viu a condenação do conde brutal e revoltou-se antes do tempo. Tal suscetibilidade, irritada pela situação inferior em que, do modo mais injusto, as mulheres são mantidas em nossas sociedades, é compreensível. Levou-a a partir antes que as acusações de Fígaro contra o gênero feminino fossem desmentidas. Indignou-se cedo demais.
Indignação: eis o problema. Nunca tive simpatia por essa palavra. Pressupõe cólera e desprezo. Quando estamos sozinhos, a indignação nos embriaga como se fosse uma droga. Arrebata a alma, enfurece as vísceras, dilata os pulmões e nos faz acreditar na veemência do nosso ódio. Viramos heróis justiceiros diante de nós mesmos.
A solidão indignada faz grandes discursos interiores contra aquilo que erigimos como inimigo. Serve para dar boa consciência. É autossatisfatória. Um prazer solitário. Exaltados, arquitetamos vinganças e reparações. Depois, o balão murcha, sobrando apenas nossa miserável impotência. Talvez tenha sido Stendhal o escritor que melhor caracterizou esses estados irritados, ineficazes e inócuos.
Ao se manifestar na presença de outra pessoa, ou de duas, ou num pequeno grupo, a indignação leva ao descontrole. Nervosos, falamos alto e dizemos coisas que, na calma, jamais pronunciaríamos.
Quando um de seus heróis se deixa levar pelos discursos coléricos, Homero faz alguém sempre repreender: “Que palavras ultrapassaram a barreira de teus dentes!”. Porque não somos mais nós que falamos, mas algo que está em nós e que ocupou nosso corpo esvaziado de qualquer poder reflexivo: a indignação. Assim também ocorre com os jorros furibundos de palavras que inundam as redes sociais.
A multidão indignada é, por sua vez, uma catástrofe. Tomada por um furacão de pulsões, ela atropela, esmaga, lincha.
A indignação trava as forças racionais. Alimentada pelas paixões, usa uma aparência de razão como fole para soprar nas brasas. Está claro, aceita só argumentos que servem a reforçar e ampliar seu domínio. É feita de radicalismos.
Assim, anula todas as complexidades e nuanças, bloqueia qualquer compreensão que não seja inteira e simplificada. Anula também o outro, como ser humano, se ele não compartilhar de nossa própria indignação.
nota
NE – Publicação original do artigo: COLI, Jorge. Um prazer solitário. Folha de S. Paulo, caderno Ilustríssima, São Paulo, 4 fev. 2018.
sobre o autor
Jorge Coli é professor titular de história da arte na Unicamp e autor de O Corpo da Liberdade (Cosac Naify).