O Jornal Nacional de segunda-feira (14/5/2018) dedicou um minuto e onze segundos à morte de 58 palestinos num protesto contra o reconhecimento americano de Jerusalém como capital de Israel. A entrevista ao vivo com o técnico da seleção brasileira Tite durou onze minutos e oito segundos. A desproporção já permitiria inferir a escala de valores ($$$) da Globo. Mas tem mais. Logo depois da abertura do telejornal, como se grande furo fosse, a apresentadora Renata Vasconcellos disse: “O Jornal Nacional teve acesso a conversas gravadas em que a coordenadora de um prédio invadido no centro de São Paulo cobrou dinheiro dos moradores, e com ameaças”.
Os flagelados do incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida ainda jazem ao relento na praça da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ao pé de uma escultura dramática, que mostra uma mulher negra, seminua, oferecendo o peito farto de leite ao bebê branco. Os cadáveres dos gêmeos Wendel e Werner, de apenas 10 anos, negros filhos da auxiliar de limpeza Selma Almeida da Silva, negra também, desaparecida nos escombros, ainda nem foram enterrados, e o Jornal Nacional já se assanha. Em vez de responsabilizar o poder público, que ignorou laudos e mais laudos atestando que o prédio do Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, estava condenado, lança-se contra o movimento que luta por moradia. Culpa as vítimas pela sua tragédia.
O principal telejornal da Globo de Ali Kamel, diretor geral de Jornalismo e Esportes, autor do livro “Não Somos Racistas” (aham, só que não!), promoveu o passe de mágica que fez desaparecer os flagelados, os mortos, os desaparecidos do prédio sinistrado no dia 1º de Maio (não mereceram nenhuma fração de segundo do telejornal). Talvez porque, se continuasse a falar sobre o assunto, teria, inevitavelmente, de mostrar as fotos em que o chefão do edifício que desabou, Ananias Pereira, aparecia, alegre e sorridente, há um ano, ao lado do ex-prefeito e pré-candidato a governador de São Paulo pelo PSDB, João Doria Jr., durante comemoração do aniversário do atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), que também posou com ele.
Ananias Pereira é dirigente do autodenominado Movimento de Luta Social por Moradia – MLSM, responsável por sete ocupações de prédios no centro de São Paulo, uma delas sendo a do prédio que ruiu. Afoito como sempre, o ex-prefeito João Doria Jr., fez-se de esquecido sobre a festa de aniversário de Covas e sentenciou: “O prédio foi invadido e parte desta invasão financiada é ocupada por uma facção criminosa”. Ananias, ressalte-se, foi à festa de Covas como convidado, e não como penetra.
A fala de Doria visava a esconder as responsabilidades da Prefeitura na tragédia.
Doria, o gestor das mil e uma fantasias, precisava mesmo achar um bode expiatório. Documento da Secretaria Municipal de Licenciamento, datado de 26 de janeiro de 2017, gestão Doria, apontava os seguintes problemas no prédio Wilton Paes de Almeida:
- ausência de extintores;
- sistema de hidrantes inoperante;
- ausência de mangueiras;
- ausência de luzes de emergências;
- ausência de sistema de alarme;
- instalações elétricas irregulares: fios sem isolamento adequado e expostos, além da entrada de energia improvisada;
- elevadores inoperantes e fechados por tapumes;
- ausência de corrimão nas escadas;
- instalações do sistema de para-raios não puderam ser avaliadas, porque o acesso estava bloqueado.
Depois de apontar tantas falhas, o documento concluía: “A edificação não reúne condições mínimas de segurança contra incêndio”. Mesmo assim, o poder público não tomou providência alguma para atender as famílias que se encontravam sob risco de tragédia iminente e que de lá não saíram por absoluta falta de opção. Ou alguém acha que é melhor dormir na rua?
Agora, que há mortos, feridos, desaparecidos, a TV Globo opera para ocultar a responsabilidades do poder público (de Doria principalmente, porque era o prefeito até o dia 06 de abril de 2018, cargo ao qual renunciou para disputar o governo do Estado de São Paulo pelo PSDB). Para isso, lança mão de acusações falsas e infundadas contra movimentos sociais. A primeira e mais surrada acusação é a de que os movimentos por moradia são associados à facção criminosa Primeiro Comando da Capital – foi isso o que fez João Doria. Para dar foros de realidade a essa acusação, o procedimento tem sido denunciar a cobrança de taxas de contribuição nas ocupações. (ninguém explica o que tem a ver uma coisa com a outra, mas serve para lançar um tsunami de suspeitas sobre todos os movimentos de moradia).
O alvo da denúncia, entretanto, não foi Ananias, o “amigo de Doria e Covas”, que mantinha famílias em situação de extrema vulnerabilidade dentro de um prédio bagunçado, com fios desencapados, sem extintores, sem mangueiras de incêndio, com áreas inteiras inundadas, como atestado pela própria Prefeitura.
Foi Carmen da Silva Ferreira, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro – MSTC, líder da luta por moradia e pela Reforma Urbana na cidade de São Paulo, cérebro das iniciativas mais criativas, inclusivas e inovadoras de requalificação de áreas degradadas da megalópole, e responsável pela conquista da moradia pelos sem-teto que ocuparam o antigo Hotel Cambridge, localizado no centro de São Paulo. O prédio, agora desocupado, passará por uma reforma e será então entregue aos pobres que lutaram por ele. A experiência foi tão bem-sucedida que se tornou base do roteiro do premiado filme Era o Hotel Cambridge, da diretora Eliane Caffé, de 2016 (1).
A trajetória do Hotel Cambridge é exemplar das forças mais terríveis e das mais generosas que atuam sobre o espaço urbano. Fincado em prédio de estilo modernista na avenida Nove de Julho, o Hotel Cambridge foi inaugurado em 1951. Era famoso pelo bar elegante com poltronas vermelhas, onde se apresentou, em 1959, o músico Nat King Cole, quando ele veio ao Brasil. Stardust, a canção que fala sobre os encantos do amor que passou, embalou a noite. Poeira estelar.
Daqueles brilhos, o Cambridge desabou no buraco negro da decadência tão logo o centro econômico e financeiro da cidade deslocou-se para a região da avenida Paulista e, depois, para a Faria Lima e Berrini. Hotéis com nomes chiques e estrangeiros, como o próprio Cambridge, o Othon Palace, o Hilton, o Paris e o Cad’oro, entre outros, viveram em agonia, até o apagar definitivo das suas luzes.
Carmen da Silva Ferreira, 58 anos, foi quem reacendeu as luzes do prédio de 17 andares e 120 apartamentos. Em vez dos engravatados de antes, ela capitaneou um exército de pobres miseráveis, gente que não tinha nem sequer um teto pra dormir em paz… e eles ocuparam o Hotel Cambridge, então tomado por ratos, baratas, escorpiões, lixo, entulho. Toneladas de dejetos foram retirados dos andares.
Detalhe: As centenas de edifícios abandonados do centro da cidade são como tumbas de histórias e recordações. Como tumbas, os proprietários lacram-lhes portas e janelas com tijolos e cimento. É para evitar a invasão de animais ou de quem queira questionar a posse do imóvel — o prédio sufoca sem ar e nem luz.
Felizmente, não é nada que algumas marretadas não resolvam.
Jornalistas Livres acompanham desde abril de 2015 algumas ocupações coordenadas por Carmen, desde os seus instantes iniciais. Trata-se de uma mulher forte, dotada de determinação e coragem ímpares. É ela que está no centro de uma possante organização que restaura vidas, acolhe os derrotados da cidade, os idosos, as mulheres espancadas, as pessoas que perderam tudo e as que sempre ganharam muito pouco ou quase nada (os trabalhadores informais, os camelôs, cuidadores de enfermos, faxineiros, garis, pedreiros, eletricistas, operários da construção civil, balconistas, cozinheiros, seguranças, operadores de telemarketing, artesãos, auxiliares de enfermagem, protéticos etc. etc. etc.). Carmen gosta de dizer que as pessoas vão ao movimento em busca de direitos (o direito à moradia está impresso na Constituição de 1988), e aprendem que direitos vêm junto com deveres.
Vida cármica
Baiana, mãe de oito filhos, Carmen nasceu na Cidade Baixa de Salvador, filha de empregada doméstica e de militar. Foi o pai que a criou e é indelével a marca deixada pela disciplina da caserna no espírito da mulher. Os prédios sob coordenação dela rebrilham de limpeza, fruto de mutirões bem-organizados. Não se consomem drogas, respeita-se o horário de descanso, funcionam projetos profissionalizantes, crianças não podem ser deixadas sozinhas nos apartamentos, homem não bate em mulher nem com uma flor. E por aí vai.
Tudo isso é fruto de uma sólida hierarquia, resultante de assembleias e reuniões com quórum e representatividade de mais de 80% dos moradores. Começa pelos coordenadores de andares, que atuam como mediadores de conflitos, pelos líderes de projetos comunitários, passa pela Linha de Frente (os fiéis escudeiros da ocupação), e chega até a liderança incontestável de Carmen – a Dona Carmen, como é respeitosamente chamada. Depois das 22h, é tudo silêncio.
Neste caso, trata-se de autoridade conquistada. Carmen casou-se aos 17 anos e conheceu a violência doméstica, espancada que era pelo marido truculento e cheio de ciúmes. Com 16 anos de união, 8 filhos, ela jogou tudo para o ar e fugiu para São Paulo. Sem teto, conheceu a dura rotina e a solidariedade das ruas. Morou em albergues, um administrado pela Igreja Universal do Reino de Deus, e outro, público, sob o viaduto Pedroso, que atravessa a avenida 23 de Maio, no centro da cidade.
Rotina dura. No albergue, um humano é só corpo que precisa de pouso e banho. Tem de sair tão logo o dia nasce. E voltar assim que a noite cai, senão não entra. Carmen lembra-se de passar horas e horas, esperando o tempo passar, dentro do templo da Universal na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Andou muito, conheceu todas as entidades que serviam comida, em busca de emprego, as quebradas. Virou cozinheira, mas achou pouco…
A rua é cruel e louca. Ela resistiu ao desespero porque seu único objetivo era trazer todos os filhos para viver sob suas asas (conseguiu). Já viu muita gente forte desabar ante o peso da própria dor.
Carmen iniciou-se no movimento dos sem-teto quando morou, por seis anos, num antigo prédio do INSS, na avenida Nove de Julho. De lá para cá, participou de dezenas de ocupações. Hoje, é uma profunda conhecedora da cidade que escolheu para viver. Quem está devendo IPTUs milionários, quem são os maiores latifundiários urbanos, quantos imóveis possuem, quem são os habitantes tradicionais de cada bairro. É respeitada na Prefeitura, acaba de ser convidada a lecionar em uma grande Escola de Arquitetura. Urbanista prática, discute altivamente com autoridades dos setores público, privado e acadêmico. Recentemente, foi uma das organizadoras de duas rodas de conversa dentro do Ministério Público de São Paulo, com a presença do próprio Procurador-Geral de Justiça do Estado, Gianpaolo Poggio Smanio, sobre políticas públicas voltadas para Moradia Social e Gênero.
A hora H
Junta gente de todos os jeitos na hora de ocupar. A velhinha louca que perdeu tudo na jogatina, a jovem crente desempregada, o dependente de drogas, o estudante de medicina que foi expulso de casa porque o pai descobriu que ele é gay, o pastor, a sambista, o poeta, o militante, o refugiado palestino, sírio e congolês, sobreviventes de tragédias humanitárias, os imigrantes bolivianos, haitianos, a prostituta. Um dos grandes insights do movimento de moradia deu a liga entre todos esses espécimes da grande biodiversidade humana que viceja no centro elétrico da metrópole:
“Somos todos refugiados: os estrangeiros aos quais a própria pátria tornou-se ameaçadora; e os nacionais, aos quais o brasil dos privilégios virou as costas”, conforme epifania de Carmen”.
Nem precisa dizer que é difícil alinhar na vida intensamente coletiva da ocupação as pirações individuais de pessoas tão diversas. Mas, avessos aos vitimismos, embora motivos não faltem, os sem-teto cultivam mesmo é a solidariedade. É o que permite a elaboração coletiva de uma poesia lavrada na esperança de dias melhores.
Movimento de pobres, de pretos, de pardos, a luta pela moradia no centro de São Paulo é intensa na construção de novíssimos quilombos, dirigidos e habitados em sua maioria por mulheres tão fortes quanto delicadas, capazes de enfrentar as maiores violências enquanto cuidam dos mais fracos e desamparados. É preciso entendê-las, porque elas resgatam para a cidadania aqueles a quem o poder público fecha a cara e os cofres.
Manipulação escancarada e tombo no Mc Donald’s
A TV Globo, que nunca simpatizou com as ocupações de imóveis abandonados, feitas por pobres sem teto, não hesitou em invadir um terreno público (2) para instalar seus estúdios de São Paulo (3), às margens da Marginal Pinheiros. Mas disso, obviamente, os telejornais sob o comando de Ali Kamel não falam. O que lhe importa é operar, com o concurso sempre ativo de promotores inquisitoriais, e com a Polícia Civil, a transmutação da verdade em farsa:
Uma reportagem do SP2, também da Globo, veiculada no mesmo dia 14 afirmou o seguinte:
“Depois que o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, desabou, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar a cobrança das taxas nessas ocupações. Até agora identificou três núcleos que agem de forma parecida em ocupações diferentes: uma comandada por Carmen [da Silva Ferreira], outro por Ednalva Franco e uma terceira, por Ananias Pereira dos Santos, apontado por moradores como coordenador da ocupação do prédio que desabou. A reportagem não conseguiu falar com Ednalva Franco nem com Ananias Pereira”.
É Fake News em estado puro.
O repórter Bruno Tavares, autor do texto, sabe que são ocupações distintas, lideradas por pessoas absolutamente diferentes, oriundas de movimentos que mantêm autonomia entre si. Seria o mesmo que dizer que todo o jornalismo do planeta é ruim porque o que o Bruno Tavares faz é um lixo.
Sim, há diferenças gritantes entre as ocupações.
Em sua “reportagem”, Bruno Tavares cita investigação do Ministério Público, iniciada em 2016, a partir da denúncia de uma ex-moradora do Hotel Cambridge. Essa moradora disse que já pagava R$ 200 pelas despesas de manutenção do prédio e que estava sendo “vítima de extorsão”, a exemplo dos outros moradores, para desembolsar mais R$ 20, referentes a uma multa por ligação de água clandestina, dividida entre as famílias.
Apesar do segredo de Justiça em que corre o processo, a Globo “teve acesso” ao processo (claro! de novo, são os tais vazamentos a que a emissora dos Marinho sempre “tem acesso”). Pois deveria ter aproveitado o tal “acesso” privilegiado para informar aos telespectadores que no Cambridge havia 120 famílias, que decidiam coletivamente em assembleias qual o valor das taxas e contribuições que caberiam a cada uma.
O repórter disse ainda que “ao falar com os promotores, a coordenadora da ocupação não apresentou documentos para comprovar que o dinheiro arrecadado era gasto com a manutenção do prédio”. Engraçado! Em entrevista coletiva no último dia 11, da qual participou uma equipe da Globo News, Carmen apresentou documentos e comprovantes de despesas das ocupações que coordena. Mas isso não interessou ao Jornal Nacional.
A reportagem mencionou taxas de R$ 200 mensais, e uma taxa extraordinária única de R$ 20, para pagar multa da Sabesp. Vinte Reais. Isso é muito ou é pouco? A reportagem maliciosa não diz. Se fizesse bom jornalismo, Bruno Tavares teria investigado a contabilidade do condomínio. Ou alguém acha o Hotel Cambridge estava “pronto pra morar”, como aqueles apartamentos dos folders e dos anúncios imobiliários que forram as páginas dos jornais impressos?
Sem água, sem luz (muitos andares tiveram toda a fiação roubada), os encanamentos entupidos ou simplesmente arrancados, sem elevadores, sem extintores ou mangueiras de incêndio, repletos de lixo (só do antigo hotel Cambridge foram retirados 15 mil quilos de entulho!), os prédios dos sem-teto eram sucatas podres antes de serem – aos poucos - revitalizados pelo movimento social.
E quem paga por isso? O poder público é que não é. A iniciativa privada é que não é. Muito menos a TV Globo. Então, sobra para os ocupantes, na forma das taxas de contribuição. Aliás, a reportagem de Bruno, se não estivesse atrás de escândalos inexistentes, poderia investigar como as novas tecnologias sociais estão ajudando a baratear os custos de manutenção dos edifícios ocupados. Exemplos? No Hotel Cambridge, os moradores fizeram parceria com a Escola da Cidade e desenvolveram uma horta comunitária para ocupar toda a cobertura com verduras e legumes sem agrotóxicos. Foi da mesma parceria que se originou o lindo e inovador mobiliário que decorava as áreas comuns do prédio — creche, biblioteca e oficinas de costura e maquiagem feitas com material de reciclagem. Dessa parceria também vem a ideia de ressuscitar um antigo poço artesiano abandonado no subsolo do prédio, a fim de utilizar a água para lavagem do chão e descarga das privadas.
Mas não.
Em vez da inteligência coletiva do movimento, a reportagem preferiu contemplar, como se verdadeira fosse, a denúncia de uma ex-moradora do Cambridge, apresentada como “testemunha Alfa”, que disse ter sido ameaçada por Carmen. O repórter Bruno Tavares teve acesso inclusive aos vídeos que a tal “testemnha Alfa” gravou com as supostas ameaças. Aliás, esses vídeos também constam no processo que corre em Segredo de Justiça (segredo de Polichinelo…)
Eis a transcrição das tais ameaças:
Carmen: A senhora que vai na Sabesp fazer o acordo porque não pagou aqui.
Alfa: Eu? Tanto dinheiro que você pega dos outros.
Carmen: O que foi que a senhora falou?
Alfa: Sai de cima de mim, sai de cima de mim que eu te coloco atrás das grades.
Carmen: Sem vergonha, caloteira.
Carmen: A sra. vai sair por bem ou mal. Por bem eu já tomei a providência, agora, se a senhora quiser por mal, vai por mal também.
Carmen: Contestam porque pagam contribuição. Vocês acham que vão morar de graça na Avenida Nove de Julho?
Carmen: Daqui a pouco vem a conta de luz aí é outra briga para pagar.
Leia bem e se quiser veja os vídeos no site da Globo. O que se vê? O que se entende?
O Cambridge era uma ocupação organizada e legal, reconhecida pela Prefeitura. Pagava a conta de água. Pagava a conta de luz. Como é que se pagava isso? Com a colaboração dos moradores, decidida em assembleia. Quando Carmen afirma que Alfa terá de sair “por bem ou por mal”, refere-se ao cumprimento de decisão da assembleia dos moradores, que não acharam justo pagarem por alguém que queria folgada e graciosamente usufruir a água da Sabesp custeada pelo alheio. Foram os moradores que decidiram pela exclusão de Alfa da ocupação. E caso ela se recusasse a sair, a polícia seria chamada.
Onde está a ilegalidade? Quem quer que já tenha tido de lidar com condôminos inadimplentes em um prédio de classe média sabe muito bem o que é ter de pagar taxas maiores porque alguns simplesmente se recusam a cumprir suas obrigações com o coletivo.
É incrível o ministério público se meter numa briga entre vizinhos. É incrível uma briga entre vizinhos ocupar o lugar de uma real investigação sobre as causas do incêndio, desabamento e mortes do edifício Wilton Paes de Almeida. Mas o mais incrível é a TV Globo prestar-se a tal jogo ilusionista, baseando-se na denúncia da “testemunha Alfa”, tristemente famosa na ocupação do Hotel Cambridge por ter tentado – sem sucesso, diga-se – aplicar o golpe do “escorrego” no Mc Donald’s.
Sim! A mulher que acusa Carmen de cobrança indevida de uma taxa que visava unicamente cobrir as despesas de manutenção do Edifício Cambridge, tentou garfar indenização de 200 salários mínimos (R$ 190.800 em valores atualizados) por um tombo que diz ter sido causado por falta de corrimão em uma loja do Mc Donald’s. Só que o corrimão estava lá! Então, em 25 de junho de 2014, a 5ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou o pedido de Alfa.
É claro que os movimentos de moradia incluem alguns oportunistas e exploradores (categoria de que, aliás, o meio jornalístico está cheio). Isso poderia ser uma boa pauta. Mas a preguiça e a desonestidade levaram a “reportagem” de Bruno Tavares a transformar a pauta em texto final e a suspeita em tese.
Incrivelmente, a grande mídia que está em busca de culpados de araque esquece-se todo o tempo de mencionar a existência de 290 mil imóveis não-habitados na cidade de São Paulo, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Habitação, a partir de dados do Censo de 2010. São imóveis deixados vazios para a especulação. O movimento exige que eles tenham função social. Mas isso não tem importância para os empresários, empreiteiros e especuladores. E nem para os seus serviçais dentro da grande mídia, que não hesitam em jogar no lixo os principais fundamentos do jornalismo para atacar uma das mais generosas e preparadas lideranças do movimento social no Brasil: a mulher negra Carmen da Silva Ferreira.
notas
NE – publicação original do texto: CAPRIGLIONE, Laura. Jornal Nacional (sempre ele) manipula contra os movimentos de moradia. A quem interessa a reportagem da TV Globo que ataca Carmen da Silva Ferreira? Jornalistas Livres, São Paulo, 16 mai. 2018 <https://jornalistaslivres.org/2018/05/jornal-nacional-contra-os-movimentos-de-moradia/>.
1
Veja o trailer do filme Era o hotel Cambridge, de Eliane Caffé <https://www.youtube.com/watch?v=a5EQUG-RMI8>.
2
AMORIM, Paulo Henrique. Serra encobre trampa da Globo com terreno invadido. Conversa Fiada, São Paulo, 29 mar. 2010 <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/2010/03/29/serra-encobre-trampa-da-globo-com-terreno-invadido>.
3
REDAÇÃO (com Adnews). Record denuncia: Globo invade terreno e governo de SP se omite. Portal Vermelho, São Paulo, 29 mar. 2010 <www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=6&id_noticia=126745>.
sobre a autora
Laura Capriglione participa da Rede Jornalistas Livres, focada na cobertura de Direitos Humanos e Sociais. Trabalhou como repórter especial do jornal Folha de S.Paulo entre 2004 e 2013. Foi diretora de novos projetos na Editora Abril, onde também exerceu o cargo de editora-executiva da revista Veja. Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande mudança no Brasil”, produzida para a Veja em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Dirigiu o Núcleo de Revistas Femininas da Editora Globo, respondendo pelas revistas Marie Claire, Criativa, Casa & Jardim e Crescer.