Muitas são as possibilidades de reflexão sobre as bases comuns entre a arquitetura e o cinema que o filme Wandenkolk, que trata da obra do arquiteto pernambucano Wandenkolk Tinoco, nos fornece (1). O entendimento de que a principal destas bases é a essência das duas disciplinas, o espaço existencial vivido, é o ponto de partida que irá guiar a condução desta resenha, tanto do ponto de vista da "arquitetura inerente da expressão cinematográfica quanto da essência cinematográfica da experiência arquitetônica" (2). O filme constitui um importante registro de uma obra ainda pouco (re)conhecida para além das fronteiras do Nordeste ou por gerações mais novas.
Esse espaço existencial compartilhado entre o cinema e a arquitetura tanto é conteúdo quanto continente para a experiência humana. Assim, emerge o conceito de narrativa, tema em comum entre esses dois campos, que reúne na sua definição três variáveis essenciais para o entendimento dos entrelaçamentos entre as disciplinas: os conteúdos propriamente ditos, sua estrutura de apresentação e a interpretação pessoal daqueles que os experimentam, por meio da navegação entre cenas ou espaços, sendo a relação entre essas três variáveis o campo de interesse para a arquitetura e o cinema (3). Portanto, esta resenha nada mais é do que uma interpretação pessoal sobre um conteúdo, as obras de Wandenkolk, e sua estrutura de apresentação, a narrativa adotada pelo filme.
Sobre essa apresentação, o filme se desenvolve em uma estrutura linear, se compreendido do ponto de vista da ordem e formato de apresentação de suas seis obras principais, exploradas de maneiras distintas. Os primeiros frames mostram a Casa-atelier (2009), que, assim como várias casas que outros arquitetos fizeram para si mesmos, é uma espécie de laboratório que anuncia e sintetiza diversos temas de sua obra que serão tratados ao longo do filme, como a incorporação da paisagem natural, a transição exterior-interior, o trabalho com os níveis e o apuro espacial e volumétrico.
As obras que abrem e encerram o curta, a sede da Federação das Indústrias de Pernambuco (Fiepe, 1978) e a Casa em Aldeia (1990), são exibidas por meio de fotografias em preto e branco, além de cenas do arquiteto elaborando croquis em seu atelier. Da extensa produção de Wandenkolk (4), a Fiepe introduz a principal tipologia desenvolvida pelo arquiteto explorada pelo filme: o edifício em altura. Este início já evidencia o caráter didático de sua obra. Os croquis que explicam a Fiepe, através de uma síntese das ideias de modulação estrutural, articulação geométrica e volumetria recortada, são apresentados num breve esquema de planta baixa seguido de corte, recurso que se repete ao longo do filme para a discussão de outros temas.
A Casa de Aldeia (1990), antiga residência do arquiteto e obra que encerra o filme, é apresentada numa sequência de fotos em preto e branco lançadas sobre uma mesa a seguir a última fala do arquiteto, sobre o tema da perenidade na arquitetura contemporânea. Neste ponto, Wandenkolk relembra a fala de um de seus mestres, o professor Airton de Carvalho, ex-diretor do Iphan, quando dizia que certas arquiteturas não dão nem boas ruínas. As fotos, algumas com sua integridade comprometida pela passagem do tempo, mesmo processo pelo qual passa a casa e outras de suas obras, mostram a residência sutilmente situada em meio a natureza do sítio.
Estabelecidos estes limites, voltamos a compreensão da estrutura narrativa do filme por meio das obras situadas entre as duas anteriores, todas elas habitacionais, sendo: três edifícios verticais multifamiliares, Villa Cristina (1978), Villa Mariana (1976), Villa da Praia (1977), e uma residência unifamiliar, a Casa-atelier (2009).
Em geral, pode-se afirmar que as ideias contidas nestas obras são apresentadas progressivamente, em princípio ressaltando seus aspectos arquitetônicos enquanto objeto autônomo, seguidos de sua relação com a escala do usuário e suas características urbanas, até a dimensão da paisagem na qual se inserem e modificam. Apesar de não seguir a risca uma ordem cronológica, os edifícios da década de 1970 são exibidos em sequência, seguidos da atual residência do arquiteto. A escolha por apresentar estas quatro obras, diante da vasta produção do arquiteto, especialmente de edifícios em altura (5), permite que estas sejam apreciadas em um ritmo suave, dando ao espectador a chance de contemplar a arquitetura enquanto ouve as falas do próprio arquiteto, sobre a obra em questão, suas ideias de arquitetura, a trilha sonora composta sob medida para o filme, ou mesmo o silêncio total.
Alguns recursos próprios do cinema favoreceram a comunicação dos valores das obras retratadas, como é o caso dos movimentos de câmera. Esta que, ora desliza de modo horizontal e paralelo ao plano da fachada, e enfatiza a dimensão longitudinal dos edifícios, como nos primeiros frames do Villa Cristina, ora percorre o térreo dos edifícios, como um pedestre que o observa de baixo para cima, enfatizando a escala vertical dos mesmos, que muitas vezes é diluída em planos do tipo "vôo de pássaro" (6). Esta sensação de escala é reforçada pelas vigas em primeiro plano do pavimento vazado destes edifícios, fornecendo também contraste de luz e sombra. Este recurso de posicionamento da câmera em um ângulo vertiginoso em relação aos edifícios, possibilita também a comparação entre escala humana, do observador, e escala edilícia (7).
A escolha dos ângulos e horários para as filmagens também ressaltou a tessitura que compõe os planos das fachadas dos edifícios. Além de evidenciar o jogo de reentrâncias e saliências resultante da manipulação engenhosa entre aberturas, varanda, armários e jardineiras, sistema que o arquiteto explica por meio de croquis e compara a uma composição musical. A luz também ressalta o brilho das pastilhas cerâmicas, características dos edifícios dessa época. Este cuidado com a interface interior x exterior dos apartamentos é resultado das preocupações em debate no seu contexto de formação, sobre a transição da casa térrea para o morar em altura.
Ao longo do curta, observa-se o cuidado ao enquadrar os edifícios em manter certos alinhamentos com a tela, prática comum na arquitetura, que, frequentemente em suas representações tridimensionais, preserva alinhamentos horizontais e/ou verticais entre o desenho e seu suporte, para que não se perca sua verdadeira grandeza por completo. Nos três casos, os edifícios só são mostrados por inteiro ao término da descrição de cada um, em enquadramentos que os retratam ainda enquanto objetos isolados, acompanhados de seu nome e ano escritos na tela, marcando a transição entre obras e temas, um virar de página no desenrolar da história.
Adentrando na dimensão urbana das obras, se nas primeiras o tema é anunciado em apenas alguns frames, como na cena do Villa Cristina em que a câmera, em um ponto fixo, varre angularmente o espaço, mostrando as sutis camadas de transição exterior-interior (gradil, passeio, jardim e torre), desde a rua até o edifício. Este tema fica ainda mais evidente na primeira cena do Villa da Praia, no percurso em que a pedestre faz desde o portão da rua lateral de acesso até a escadaria de entrada. Embora os pontos de partida e chegada do percurso da pedestre sejam também o início e o final da cena, a câmera aproveita esse tempo de deslocamento para descrever uma trajetória oposta àquela percorrida pela mulher, varrendo o espaço do jardim e enfatizando a sua permeabilidade com a rua.
Na Casa-atelier, a câmera acompanha o percurso de entrada pelos espaços externos da casa desde o portão, diluído em meio ao verde do jardim e da mata, e nos faz lembrar que "a maçaneta da porta é o aperto de mãos do prédio" (8). Apesar de não ser um tema explorado pelo filme, o viés artístico do arquiteto e escultor, já aparente na plasticidade de seus edifícios, é percebido na composição destes espaços, onde arquitetura, arte e paisagem convergem (9). É com esta obra que a dimensão da paisagem fica evidente na narrativa do filme. A Casa-atelier é um ponto de viragem, que conduz o filme ao seu argumento final, tanto pela mudança tipológica, quanto pelas críticas que sua vista para a paisagem verticalizada do Recife ao fundo permite tecer, situando com mais apuro no tempo e no espaço os edifícios mostrados anteriormente.
A partir da vista que se tem da casa, desde a mata da Várzea, diversos frames de paisagem são mostrados em uma sequência com quatro tipos de enquadramentos distintos: paisagem natural em primeiro plano e skyline distante ao fundo; skyline mais próximo em primeiro plano e paisagem natural (rio, mar, céu) ao fundo; câmera próxima dos arranha-céus, que preenchem toda a tela; câmera distante dos arranha-céus, mostrando os três edifícios desta vez inseridos em seu contexto.
Este jogo de aproximação e distanciamento da paisagem permite perceber como os projetos do filme se diferenciam da arquitetura contemporânea corrente da cidade, seja em termos de volumetria, implantação no lote, relação interior-exterior ou composição de fachadas e gabarito (10). As mudanças nos parâmetros das legislações das décadas seguintes são tanto resposta quanto estímulo ao endurecimento das regras do mercado imobiliário, aumento do número de veículos individuais, mudanças no processo de projeto e perfil dos construtores e incorporação de valores de outras culturas. Sobre essa incorporação de valores externos, as peles de vidro contemporâneas ilustram bem o argumento colocado pelo arquiteto, de que num clima tropical as edificações deveriam ser adequadas a este e de que os recursos para realizar essa arquitetura climaticamente adaptada são menos onerosos do que certas sofisticações distantes do espírito de época e lugar.
Este debate nos leva a refletir sobre perenidade e efemeridade na arquitetura, assim como os frames que mostram parte de seu escritório, tanto na Casa-ateliê, concluído em 2016, quanto na Casa de Aldeia, de 1990. As semelhanças entre esses dois espaços não residem apenas no mobiliário que os preenche, mas sobretudo na configuração espacial e nas qualidades semânticas que os dois ambientes revelam. Essa comparação nos fornece uma síntese dos valores essenciais de sua arquitetura, como a relação com o verde, o enquadramento da paisagem e a fluidez interior x exterior, presentes tanto em seus edifícios em altura, quanto nas diversas casas que projetou (11).
“A arquitetura existe, assim como o cinema, nas dimensões do tempo e movimento. Um edifício é concebido e lido em termos de sequências. Erguer um edifício é prever e buscar efeitos de contraste e relação por onde as pessoas passam... Na contínua sequência de shots que é um edifício, o arquiteto trabalha com cortes e edições, enquadramentos e aberturas... Gosto de trabalhar com uma profundidade de campo, lendo o espaço em termos de sua espessura, a superimposição de diferentes telas, planos legíveis a partir de junções obrigatórias de passagem que podem ser encontradas em todos os meus edifícios”.
Jean Nouvel (12)
notas
1
O documentário Wandenkolk foi escrito e dirigido por Bruno Firmino, arquiteto e urbanista pela UFPE e mestrando pela mesma instituição, e viabilizado através do edital público pernambucano Funcultura Audiovisual. Estreou em 2015 no Festival de Curtas de Pernambuco – FestCine, quando circulou por outros eventos e festivais, incluindo a Mostra Docomomo Brasil (UFPE/Recife), o Arquiteturas Film Festival (Lisboa, Portugal) e o Architecture Film Festival Rotterdam (Holanda), e foi disponibilizado para o público via internet em fevereiro de 2018, em português, inglês e espanhol, em: https://vimeo.com/user43114626. Wandenkolk (curta, 17min59), direção de Bruno Firmino. Recife, Aeroplanos, 2015
2
Tradução própria da autora e argumento central do livro The Architecture of Image: Existential Space in Cinema (2001), de Juhani Pallasmaa, que examina filmes de realizadores bastante conhecidos por suas narrativas intimamente ligadas ao espaço arquitetônico, como Alfred Hitchcock (Rope e The Rear Window), Andrei Tartovsky (Nostalgia), Stanley Kubrick (The Shining), Michelangelo Antonioni (The Passenger).
3
Em linhas gerais, Sophia Psarra, autora do livro Architecture and Narrative: The formation of space and cultural meaning (2009), utiliza o conceito de narrativa para examinar como o significado é construído nos edifícios e comunicado aos seus usuários, a partir das noções de espaço concebido, percebido e social. No livro, a autora analisa com este olhar alguns edifícios clássicos da arquitetura, como o Parthenon, alguns museus e o Pavilhão de Barcelona, e aplica estes conceitos também a clássicos da literatura, buscando compreender a estrutura e morfologia de suas narrativas, mais especificamente na obra de Jose Luis Borges. Embora ainda não utilizadas para este fim, suas ideias podem fornecer um território bastante profícuo para análises de narrativas cinematográficas.
4
Formado em 1958 pela então Escola de Belas Artes de Pernambuco, da qual se tornou professor anos mais tarde, como Faculdade de Arquitetura do Recife, curso que posteriormente passou a integrar a Universidade Federal de Pernambuco.
5
Termo utilizado para designar as perspectivas (cônicas ou paralelas) que adotam o observador muito acima da linha do horizonte, frequentemente utilizada para representar cenas com um enquadramento mais amplo, espaços urbanos ou paisagens.
6
Esta produção foi objeto do seguinte artigo: MOREIRA, Fernando Diniz; FREIRE, Ana Carolina de Mello. O Edifício-quintal de Wandenkolk Tinoco. Reflexões sobre a moradia em altura nos anos 1970. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 129.04, Vitruvius, fev. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.129/3749>.
7
Este tema, da posição da câmera em relação ao espaço/objeto filmado, nos faz lembrar de outros exemplos que adotam estratégia semelhante, como The Shining (Stanley Kubrick, 1980), na cena em que a criança percorre os interiores do hotel num triciclo e a câmera segue sua trajetória na mesma altura e velocidade, enfatizando a diferença de escalas humana e arquitetônica; ou como em O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), cena onde crianças brincam num playground de edifício que adota estratégia semelhante.
8
Novamente, Juhani Pallasmaa, em Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (2011).
9
Nas entrevistas para a realização do filme, Wandenkolk chegou inclusive a declarar que nos tempos atuais tem preferido ser escultor, atividade que lhe permite maior liberdade e controle sobre suas criações. Este cansaço da arquitetura, tema recorrente entre os arquitetos, foi tema de conversa publicada em fevereiro de 2018 entre Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura, intitulada "O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitectura" ( https://www.publico.pt/2018/02/25/culturaipsilon/entrevista/o-bonito-o-feio-o-janota-e-o-efeito-miles-davis-na-arquitectura-1804242).
10
O tema da verticalização, especulação imobiliária e espaço urbano no Recife vem sendo alvo de críticas contundentes tecidas por filmes de cineastas locais, como Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro, o já citado O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, e de festivais, como o Janela Internacional de Cinema.
11
Todas as imagens utilizadas neste texto são frames extraídos do filme Wandenkolk.
12
Tradução livre da autora de citação de Jean Nouvel presente na introdução do livro The Architecture of Image: Existential Space in Cinema (2001), de Juhani Pallasmaa.
sobre a autora
Lívia Morais Nóbrega, arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPE, foi uma das pesquisadoras do filme Wandenkolk.