O ano de 2020 será infelizmente lembrado pela pandemia que provocou, além da morte de milhares de pessoas, o isolamento social de milhões e pelas posturas fascistas e genocidas daqueles que desprezam a vida (não a própria, mas a dos que são socialmente vulneráveis) em nome do benefício particular e do lucro opressivo. Em meio ao caos sanitário; às intrigas internacionais e às idiotices nacionais, poucos irão lembrar que o ano também marcou o fim das revistas periódicas impressas de arquitetura no Brasil.
Sim. A Projeto – ou a revista Projeto Design, seu segundo nome por tantos anos –, última revista impressa com periodicidade regular dedicada à difusão de projetos de arquitetura no Brasil, encerrou a publicação das edições regulares depois de mais de quarenta anos de atividades e anunciou, em abril, uma “nova era”, com o lançamento de sua plataforma digital (1). A Monolito, que poderia ser citada como única sobrevivente, é uma “publicação monográfica de arquitetura”, não tem o alcance e a diversidade de uma revista, strictu sensu.
No Brasil há mais de 700 escolas de Arquitetura e Urbanismo e não há mais revistas impressas mensais, dedicadas à difusão e à crítica do projeto. A crítica, aliás, já havia desaparecido há mais tempo das páginas dos periódicos brasileiros.
Na Espanha, com 33 escolas, podem ser listadas pelo menos cinco revistas (entre periódicas e monográficas) de reconhecimento internacional: El croquis, TC Cuadernos, AV Monographs, Arquitectura Viva, En Blanco (2). Na Argentina são cerca de trinta escolas e uma tradição editorial que se mantém ao longo de décadas, com destaque para a revista Summa+ e, mais recentemente, a Plot.
Seria o desaparecimento das revistas no Brasil uma simples mudança de plataforma (do impresso ao digital) e de projeto editorial (da periodicidade crítica e seletiva ao fluxo contínuo irrestrito)? Ou se trata de uma crise do campo profissional, incluindo-se nesse contexto o ensino, a prática e o meio editorial?
Vale aqui relembrar algumas reflexões de importantes pesquisadores e críticos brasileiros, sobre o papel das revistas na formação da cultura arquitetônica.
Nelci Tinem, em artigo de 2010, lembra que as revistas de arquitetura publicadas em cada época são como registros “pré-canônicos”, situados entre o panfleto e o livro, em relativo equilíbrio entre a experimentação e a solidez:
“São documentos de época, anteriores à eleição de obras paradigmáticas, ainda não condicionados por uma trama hegemônica e marcados pelas questões específicas nas quais estavam envoltos os articulistas ou investigadores que ocupavam diferentes territórios geográficos, políticos e culturais. Por isso, oferecem um material rico em informações e alguma reflexão, que embora não muito profunda, apresentava o frescor das observações sem julgamentos prévios” (3).
Este fim não é uma morte abrupta, inesperada, acidental. Trata-se da “crônica de uma morte anunciada” (aqui peço licença a García Marquez). Ou, talvez, uma soma de mortes sucessivas. Hugo Segawa, em 1998, e Sylvia Ficher, em 2014, já haviam escrito sobre a primeira morte e sua relação com um contexto ditatorial que não parece distante do que vivemos hoje. Entre meados dos anos 1960 e início dos anos 1970 a repressão, assim como interrompeu a formação, a liberdade de proposição e de reflexão no meio acadêmico e profissional, foi determinante – seja direta ou indiretamente – para a “morte” das principais contribuições editoriais (e consequentemente críticas) no campo da arquitetura, que encerraram suas atividades entre 1965 e 1971:
“O ano de 1965 marca o fim de algumas revistas com os problemas políticos relacionados ao golpe militar de 1964. Nunca, em momento anterior ou posterior, os leitores estiveram tão servidos com publicações especializadas de arquitetura” (4).
Haviam sumido, naquele período, a Acrópole, a Habitat, a Arquitetura e Engenharia e a Módulo (que depois ressuscitou, em 1975, para morrer definitivamente em 1989). Sobre o período, Sylvia Ficher também destaca:
“1964 a 1985, período de triste memória para a política e toda a produção cultural nacional. [...] Veja-se como índice o movimento editorial. Até a década de sessenta tínhamos uma meia dúzia de revistas em circulação, anunciando um boom de publicações especializadas; na década seguinte, surgem outras tantas. Mas terão vida breve. Quando da Nova República em 1985 estavam reduzidas a três, a sobrevivente Módulo, a jovem Projeto e a então novíssima AU. Ficáramos órfãos da crítica” (5).
No último número da revista Acrópole, em 1971, Eduardo Corona escreveu, no artigo “Morte e vida de uma revista”:
“Após 33 anos ininterruptos isto é melancólico: uma revista especializada de projeção internacional desaparecer simplesmente. [...]. Sua história diz bem de sua importância no campo da divulgação e da análise de nossa arquitetura contemporânea. Muita coisa, hoje, ao ser pesquisada com relação à evolução de nossa arquitetura, o terá que ser feita nas páginas da Acrópole e cada vez mais o será. [...] E assim, encerra-se mais uma página da história de nossa arquitetura” (6).
A revista Projeto foi lançada em 1977 em São Paulo e, posteriormente, a revista Arquitetura e Urbanismo – AU, lançada em 1985, também em São Paulo (que encerrou as publicações impressas em 2018). As duas revistas tiveram importante papel não apenas na difusão, mas na construção de uma cultura crítica sobre o projeto, em especial entre as décadas de 1980 e 1990.
O fato é que a primeira década do século 21 é marcada pela expansão da rede mundial de computadores e a disseminação de mídias portáteis e redes sociais. Por um lado, observa-se o acesso mais democrático às informações sobre Arquitetura. Por outro, observa-se um processo de redefinição editorial das revistas impressas, com a ascensão das páginas de internet dedicadas ao tema, com alcance global. Uma síntese das transformações ocorridas entre o final do século 20 e o início do atual é apresentada por Hugo Segawa, Adriana Crema e Maristela Gava, em artigo publicado em 2006:
“No Brasil, revistas como Habitat e Módulo dos anos 1950 e Acrópole dos anos 1960 (com menos rigor) aproximaram-se das linhas editoriais de tendência, como Arquitetura refletiu as posições da corporação nessa mesma década, até o fenecimento da imprensa de arquitetura no início dos anos 1970. O ressurgimento das publicações regulares nos anos 1980, com a Projeto (a partir de 1979) e AU (desde 1985), não marcou a retomada de ‘revistas de tendência’, mas refletiu as incertezas de um país no limiar da redemocratização, o atordoamento pós-moderno e a concordata da modernidade brasileira” (7).
Enfim, a facilidade de difusão de imagens em meio eletrônico, assim como a multiplicidade e a virtualização dos veículos reduziu a importância das revistas impressas como instrumentos de afirmação do capital simbólico na profissão, espaço ocupado cada vez mais pelos sites de arquitetura e mídias sociais na internet. Desse universo, destaca-se o portal Vitruvius, lançado em 2000, com revistas que se tornaram referência no meio, espaços importantes de convergência e debates, em especial no que se refere à difusão de pesquisas, à crítica e aos ensaios de Arquitetura e Urbanismo (8).
Aos que se sentem mais à vontade com as plataformas digitais, talvez se trate apenas de uma mudança de meio, que não afeta a essência. Pode-se argumentar que as revistas continuam, porém de outra maneira, agora como “plataformas digitais”. Folhear uma revista impressa talvez já tenha se tornado algo dispensável, como para muitos folhear um livro em papel seja algo já ultrapassado; como se ouviam os antiquados discos de vinil. Outros talvez acreditem que há mudanças relevantes também no conteúdo e na maneira como se estabelece a relação entre o que se publica e quem lê.
No momento em que escrevo este texto estou cumprindo, como milhões no Brasil e no mundo, a quarentena que ainda promete durar algumas semanas e cujas consequências ainda são desconhecidas. Conectado ao mundo pela internet, vejo que lá fora o sol se põe. Não vejo a hora de desligar o computador e encerrar o dia para fazer algo antiquado: escolher um disco de vinil (talvez Miles, Paco de Lucia ou Hamilton de Holanda); voltar à leitura do livro de Milton Hatoum que deixei sobre a mesa ou reler os versos de João Cabral de Melo Neto, do volume de obras completas que recebi pelos correios esta semana (livro de papel, não e-book); sentar no sofá ou deitar na rede e simplesmente folhear uma dessas revistas de arquitetura, que não se fazem mais por aqui.
notas
Nota da revista Projeto: O texto é impreciso e incita à crença de que a revista Projeto acabou, o que não é verdade. Nosso novo tripé editorial é: fluxo contínuo de publicações no meio digital; digitalização e disponibilização online de todas matérias previamente publicadas nas edições impressas, desde 1972; e edições especiais impressas, da qual a primeira - Anuário 2020 - foi publicada em março de 2020. Em carta encaminhada ao portal Vitruvius manifestamos nossa indignação com o artigo. Ver a carta em: MUNGIOLI, Fernando; GRUNOW, Evelise. Será mesmo o fim das revistas de arquitetura no Brasil? Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 221.04, Vitruvius, maio 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.221/7736>.
NE – A divulgação nas redes sociais foi suspensa, pois os editores do portal Vitruvius entenderam que a chamada, título e subtítulo não expressavam corretamente o conteúdo do artigo, dando margem à alegação dos editores da revista Projeto sobre o sensacionalismo presente na divulgação, que seguramente não foi nossa intenção. Nós publicamente nos desculpamos pelo ocorrido e avisamos aos leitores que houve a seguinte mudança do título e subtítulo, visando maior precisão em relação ao conteúdo: “O fim das revistas de arquitetura no Brasil. A Projeto Design encerra suas edições impressas” (original); “O fim das revistas periódicas impressas de arquitetura no Brasil”. Salientamos que nas suas duas décadas de existência, o portal sempre trafegou ao largo de interesses imediatos do jornalismo tradicional – “furos” e “reverberação imediata” –, afinal, o que pauta nosso trabalho paciencioso é o legado para o futuro. Demos espaço ao artigo de Fabiano Sobreira, muito respeitoso e elogioso ao papel da revista Projeto, pois compartilhamos do mesmo juízo do autor. Assim, ao entender que, no calor da hora, ele foi mal interpretado, mantivemos o artigo publicado no ar e tornamos nossa a frase que nos foi encaminhada pelo autor: “Meu texto é um elogio à importância da revista, e não o contrário. Trata-se do registro de um leitor, talvez saudosista (mas não desrespeitoso, pelo contrário), que lamenta o fim das revistas impressas periódicas”. A revista Projeto tem sido um canal de difusão da arquitetura de enorme importância ao longo das décadas e temos a certeza que seu corpo editorial conseguirá dar conta do novo desafio.
1
MUNGIOLI, Fernando. A nova era da revista Projeto. São Paulo, Projeto, 13 abr. 2020 <https://revistaprojeto.com.br/noticias/a-nova-era-da-revista-projeto/>.
2
Informações sobre as revistas na Espanha passadas por Paulo V. B. Ribeiro, na troca de mensagens que instigou este desabafo em forma de crônica.
3
TINEM, Nelci. As revistas de arquitetura como documentos pré-canônicos. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Enanparq. Rio de Janeiro, Anparq, 2010, p. 4 <www.anparq.org.br/dvd-enanparq/simposios/169/169-678-1-SP.pdf>.
4
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo, Edusp, 1998, p. 130.
5
FICHER, Sylvia. Censura e autocensura. Arquitetura brasileira durante a ditadura militar. Drops, São Paulo, ano 14, n. 080.09, Vitruvius, maio 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.080/5192>.
6
CORONA, Eduardo. Vida e morte de uma revista. Acrópole, São Paulo, n. 390, nov. 1971, p. 6. <www.acropole.fau.usp.br/edicao/307>.
7
SEGAWA, Hugo; CREMA, Adriana; GAVA, Maristela. Revistas de arquitetura, urbanismo, paisagismo e design: a divergência de perspectivas. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 057.10, Vitruvius, fev. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.057/506>.
8
O portal Vitruvius conta com sete revistas: Arquitextos, Arquiteturismo, Drops, Minha Cidade, Entrevista, Projetos e Resenhas Online. A revista acadêmico-científica Arquitextos (ISSN 1809-6298)conta avaliação A2 no Qualis Capes.
sobre o autor
Fabiano José Arcadio Sobreira é arquiteto e urbanista (UFPE, 1996), mestre (PPG FAU UnB, 2018). doutor em Desenvolvimento Urbano (UFPE / University College London), pós-doutorado (École d’Architecture, Université de Montréal, 2009). Chefe da Seção de Projetos e Sustentabilidade da Câmara dos Deputados. Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Pesquisador associado do LEAP – Laboratoire d’Étude de L´architecture Potentielle (Université de Montréal). Editor do portal e revista concursosdeprojeto.org.