Paulinho da Viola e o elogio do amor (1) é uma reflexão sobre a lírica amorosa das composições de Paulinho, cujo eixo é a separação dos amantes. Neste livro, Eliete Negreiros reavê o mito fundador do amor romântico, formulado pela primeira vez no Banquete de Platão. De início, cada um era um ser por inteiro que, por uma punição divina, é dividido em duas partes. A nostalgia da fusão originária e a busca da unidade perdida constituem uma inquietação permanente, a procurar no Outro o que completa e dá vida.
Conhecido nos tratados médicos antigos como “mal de amor”, a poética de Paulinho, mostra Eliete, revela seus sintomas, suas causas, seus efeitos e remédios. Ou não: “meu mal é um mal de amor / não há remédio que cure a minha dor”. Se paixão é desejo e falta, ele é “intratável”. Tal como no amor proustiano, o amor é uma doença irremediável. Diferem o intratável e o incurável, pois se este é um mal de que ainda não se encontrou remédio e tratamento, o intratável é um mal sem medicação eficaz ou cura vislumbrada, invulnerável a tratamentos ou às luzes da razão.
Sendo metamórfico – eterno, passageiro, feliz e infeliz –, o amor é “doce-amargo”, é um ensinamento de viver porque também arte da liberdade: “Várias canções de Paulinho evocam a liberdade do outro. Ainda que desejando que o outro deseje o seu desejo ele sabe que o outro tem, assim como ele, o direito de sentir o que quer. A profunda percepção da instabilidade de si e do mundo, a constante mutação de tudo [expressam] o sentimento de si e do mundo, os estados interiores são desencadeados pela experiência do mundo e a constante transformação de tudo”.
Nas canções de Paulinho, Eliete acompanha a “genealogia” do amor, como ele nasce, como ele dura e como se rompem seus laços; e, para isso, refere-se a Stendhal em seu Do amor:
“Narrando o nascimento do amor, [Stendhal] fala dos passos de seu surgimento: admiração, prazer, esperança. A esperança faz nascer o amor, mas se ela vier a morrer, o amor, que já nasceu, continuará vivo. É neste descompasso entre esperança e amor que se insere a desilusão amorosa, o tormento do amante”.
Inscrevendo o amor de Paulinho no âmbito do sagrado, Eliete nos mostra que ele é um enigma do corpo e da alma, do espaço e do tempo. Para compreendê-lo, Eliete revisita a tradição do pensamento ocidental que de Safo a Baudelaire, de Aristóteles a Freud, de Ovídio a Paulinho enfrenta as dores do amor. Anômico, transgressivo, a tradição não foi desatenta às devastações que ele causa e se esforçou em conhecer o “homem interior”, seus desejos, impulsos e paixões. Por isso, médicos e moralistas antigos falam da luta entre a matéria e o espírito e da necessidade de compreendê-los a fim de os conter aquém da obra da “contra-natureza” que leva ao sofrimento e à tristeza. Indicando que o amor terminado é interminável, Eliete interpreta o samba Nada de Novo de Paulinho:
“A dor é um modo de perpetuar algo que já acabou, de torná-lo ainda vivo pela continuidade do sofrimento e, talvez por isso, o sofrimento seja tão caro aos corações amantes, pois é um culto àquele amor”.
A autora reconhece nas canções de Paulinho a dimensão de “empatia” que se encontra no amor, esse pathos comum que une o Eu e o Outro fazendo dele um outro nós-mesmos. Risco considerável, então, a possibilidade da perda. Talvez por isso – e porque o amor é experiência temporal – não possa existir amor feliz. Mas o trabalho de Eliete busca e encontra em Paulinho uma ars amatoria e uma arte-de-viver. Sentimento de plenitude e esperança de eternizar o instante, o amor, nos cantos de Paulinho, duradouro ou breve, toca delicadamente o absoluto.
notas
NE – O presente texto é prefácio do livro comentado: NEGREIROS, Eliete Eça. Paulinho da Viola e o elogio do amor. Prefácio de Olgária Matos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2016.
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Eliete Eça Negreiros fez doutorado em filosofia sobre as canções de Paulinho da Viola, base para o livro em questão: NEGREIROS, Eliete Eça. Paulinho da Viola e o elogio do amor. Tese de doutorado. Orientadora Olgária Chain Féres Matos. São Paulo, FFLCH USP, 2012.
sobre a autora
Olgária Chain Féres Matos é graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (FFLCH, 1970), mestre em Filosofia na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne, 1974) e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (FFLCH, 1985). Atualmente é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e professora titular no Departamento de Filosofia da EFLCH Unifesp, onde coordena a Cátedra Edward Saïd.