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Felipe Melhado comenta o livro autobiográfico “O fim da infância”, de Arrigo Barnabé, comentando o entrelaçamento entre vida e obra do autor.

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MELHADO, Felipe. Como nascem os crocodilos? Vida e obra de Arrigo Barnabé segundo ele próprio. Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 221.05, Vitruvius, maio 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.221/7737>.


Cinzeiros arrancados dos braços das poltronas, voando pelo teatro até o palco, objetos diversos arremessados nas vocalistas, vaias, muitas vaias mesmo. E então Itamar Assumpção, o baixista, pergunta no microfone: “Sabor de quê?”. Só para ouvir a resposta segura da plateia que exclama nervosa: “Mer-da!”.

Se o fim da infância tem a ver com frustrar as expectativas dos outros, se a juventude é marcada pela afirmação de algo particular e genuíno, distante dos projetos concebidos por aqueles que podem conduzir a vida alheia, então podemos dizer que esse episódio dos cinzeiros arremessados foi um dos que assinalaram o fim da infância de Arrigo Barnabé. A recepção agressiva no Festival da MPB da TV Tupi, em 1979, o fez conhecido por uma audiência maior e tornou pública uma escolha sem volta: a de ser uma figura dissonante, destoante, um criador avesso às expectativas. “Estava destinando a ser um novo Chico Buarque de Holanda – um compositor querido das famílias. Mas algo nele fracassa” (1).

Esse fracasso brutalmente desejado, esse desvio absolutamente calculado: Arrigo Barnabé e sua música atonal. É curioso perceber, com a ajuda do filósofo Leonard Meyer, essa opção de Arrigo pelo atonalismo. O pensamento de Meyer nos revela que a recepção de uma música está relacionada justamente à expectativa dos ouvintes (2). Podemos dizer que quando alguém escuta algo que espera escutar, quando a escolha dos músicos é antecipada pelo ouvinte, então ele se sente gratificado e a música tende a ser bem recebida. Alguns séculos de música tonal fizeram com que o ouvinte médio ocidental intuísse o funcionamento de suas harmonias, criasse um senso de “beleza convencional”, como costuma dizer Arrigo, e gerasse expectativas ligadas a ela.

A música atonal rompe o compromisso com essas expectativas, e não é necessário ser nenhum especialista para perceber. Enquanto o tonalismo se baseia nas resoluções, no centro tonal, nos repousos harmônicos, o atonalismo parece acentuar as tensões, demolir o centro e embaralhar as direções. Impossível saber em uma primeira audição, por exemplo, para onde vai uma música atonal de Arrigo Barnabé. O que entra em cena é na verdade a impossibilidade total de se criar expectativas e, portanto, uma música que causa uma frustração de base, radical. Como escreve Meyer: “O aparecimento de eventos previsíveis e regulares gratifica o ouvinte, dando-lhe um senso de controle e de segurança psíquica. É provável que a nova música irrite os ouvintes não porque ofenda sua sensibilidade estética, mas porque sua segurança psíquica – seu senso de controle – é seriamente ameaçado” (3).

Aquele tipo de sujeito que tem tara pelo controle, que lê um livro porque sabe que uma resolução – de preferência feliz – o espera no final, esse não pode curtir a música atonal. Pelo contrário, para sacá-la é preciso enxergar beleza em um livro em que faltam páginas, por exemplo. Saber gostar de algo, enfim, que foge do controle, que frustra ativamente as expectativas. E quer algo mais decepcionante do que alguém que deixa de ser criança? O fim da infância, o início da juventude, é uma oportunidade única para frustrar as expectativas dos outros, para criar a si mesmo com mais independência e ousadia. Há muita beleza nesse momento nietzschiano, rara ocasião para tornar-se o que se é.

Claro, a infância também não é desprovida de criação ou de beleza. Não é por menos que Gilles Deleuze escolheu a figura da criança para descrever uma forma muito potente de devir. Quem aciona um devir-criança, o filósofo nos diz, entra em um movimento de criação imparável. Uma criança está o tempo todo fazendo de conta, inventando coisas, incorporando seres diversos, fazendo com que os outros e os objetos que a circundam se transformem naquilo que ela cria. Mas, por outro lado, uma criança pode continuar suas brincadeiras sem perceber que está sendo conduzida pela mão. Ou seja, uma criança pode ser facilmente controlada, facilmente pedagogizada. A ela se ensina tudo: como dizer, como agir, como sentir etc.

De maneira diversa, os adolescentes tendem a escapar dos mecanismos de controle. Um elemento incrível entra em cena: a transgressão. Se uma criança é dócil e pedagogizada, um adolescente torna-se transgressor e autônomo. É Arrigo abandonando o compromisso familiar de cursar Engenharia Química ou Arquitetura, e por fim decidindo ser um músico, e ainda por cima de vanguarda, mesmo com todos os perrengues que isso acarreta. É Arrigo em São Paulo, tendo que acomodar em si mesmo a frustração londrinense do pai, que embora não se opusesse abertamente à sua escolha de vida, tinha reservas que podiam despertar sentimentos de culpa no filho.

Como escreveu, por experiência própria, o poeta e. e. cummings: “Não ser nada além de você mesmo – em um mundo que tenta de tudo, dia e noite, para te fazer igual a todos – é lutar a batalha mais dura que uma pessoa pode lutar” (4). Arrigo que o diga: após se apresentar e ser premiado no Festival da TV Tupi com sua música Sabor de veneno, além das vaias, ele teve de ouvir muitos desaforos de gente que não suportava sua diferença. Dos conservadores ouviu que sua criação era uma “decadência”, e que aquilo não era música. Já dos intelectuais de esquerda ressentidos, com quem se encontrou em Londrina logo após o Festival, ouviu dizer que seu trabalho não tinha valor, já que “o povo não conseguia cantar” suas músicas. Todas essas frustrações que ele causou nos outros, no entanto, naquele momento não foram suficientes para desviá-lo rumo ao lugar comum. É que há algo irrefreável, obstinado, nesse movimento da juventude. O devir-adolescente é apaixonado, e é realmente muito difícil demover alguém de uma paixão. Por isso ele é um devir oportuno para se fugir das codificações, dos processos de assujeitamento operados pelos diversos poderes, para enfim fazer com o que sujeito tome conta de si mesmo.

E há outro fator admirável, ligado à transgressão, e que também irrompe no devir-adolescente: a transfiguração! A habilidade de transformar a si próprio, de metamorfosear-se em outro. De se apropriar daquilo que já é dado, daquilo que já desponta na subjetividade, e conferir a ele outra figura. Na infância a criação é muito potente, porém indistinta, difusa. Já o jovem concentra todo seu vigor criativo em direção a si mesmo, e disso decorre uma mudança de ethos, de estilo de vida, a afirmação de um novo jeito de estar no mundo.

É uma transformação que na verdade tem a ver com assumir a si mesmo e que possibilita, no limite, sentir de outra maneira. Não é absolutamente um programa de salvação: não se trata de sublimar, por exemplo, uma tristeza infantil em uma alegria adolescente, ou a doença em saúde. Não estamos no traiçoeiro terreno das utopias ou das promessas de redenção. Seria mais plausível pensar, por exemplo, em transformar uma tristeza que não lhe pertence em uma tristeza sua, com sua marca, seu estilo. Aprimorar os afetos a ponto de fazê-los seus. É como diz Deleuze citando o poeta francês Joe Bousquet: “A meu gosto da morte, diz Bousquet, que era falência da vontade, eu substituirei um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade. [...] Tornar-me o homem de minhas próprias infelicidades, aprender a encarnar a sua perfeição e seu brilho” (5).

Nos textos de Arrigo, há um personagem que fala com eloquência sobre esse processo de transfiguração. Não é porque Betha Pickles, a conservada em álcool, é o ex-José Carlos de Souza Neves que ela se livrou de seus afetos antigos. Na verdade, ela apenas assumiu os afetos que antes eram vividos sob negação, e aprendeu a encarná-los com beleza, a transfigurá-los. A vontade de ser mulher e o desejo homossexual, que já existiam, foram assumidos no fim da infância e ela se tornou, enfim, o que ela já era. É evidente como Arrigo admira esse movimento de metamorfose protagonizado por sua querida amiga. E é interessante como ele próprio busca, com frequência, um deslocamento parecido. Extraviado na metrópole, longe do rio Tibagi, das rãs que riem em Ibiporã, ele tenta com todas as forças extrair beleza do viscoso rio Pinheiros. E isso não para transformar o rio, mas para mudar a si próprio, para modificar a tristeza que o rio lhe causava em uma bela tristeza – não uma tristeza que ele foi levado a sentir, mas uma que ele mesmo criou. Essa força que transfigura os afetos, que os torna mais potentes e sofisticados, é o próprio devir‑adolescente. Ela está na base das atitudes transgressoras e criadoras, e é fundamental para fugir dos mecanismos de controle e assujeitamento em direção à diferença.

Aliás, o tema da metamorfose, como notou o músico Rogério Skylab, está presente em diversos momentos da obra de Arrigo Barnabé (6). Em 2005 ele compôs uma peça intitulada justamente A metamorfose. Em sua quase ópera Gigante Negão, de 1990, o tema também aparece, de certa forma, na transfiguração do protagonista Miolo Mole em Gigante Negão. E claro, a mutação é o tema central de sua obra-prima, o álbum Clara Crocodilo, sua estreia em LP, de 1980. Nesse último caso a transfiguração não é apenas um tema, um objeto de reflexão a ser tratado musicalmente, mas pode ser entendida também como um movimento subjetivo vivido por Arrigo. Em Clara Crocodilo, com intensa criatividade, ele parece ter provocado uma transfiguração de seus próprios afetos.

Nos textos autobiográficos de Arrigo, vemos que na sua infância os afetos alegres sempre vinham acompanhados de uma emoção triste: o acordeom que desperta ternura mas também melancolia, o caramanchão de flores roxas quase púrpuras onde se escondia o drama da existência. Também em diversas entrevistas ao longo da carreira ele revela que sua infância, mesmo sendo “normal”, não foi exatamente alegre, e que ele se sentia um pouco deslocado, um pouco rejeitado pelas pessoas, e que achava tudo “muito, muito triste” (7). Essas tristezas que habitam sua subjetividade desde criança encontravam certa identificação com a música que seus pais escutavam: os compositores e intérpretes do samba-canção, do chamado samba de fossa. Gente como Orlando Silva, Silvio Caldas, Dolores Duran e Francisco Alves, que Arrigo cresceu ouvindo. Ele chega a dizer que não gostava exatamente das músicas, mas que compreendia a tristeza contida nessas canções de “dor de cotovelo”, povoada por afetos como solidão, desespero, desintegração, saudades. 

Se ouvirmos e repararmos nos textos do álbum Clara Crocrodilo, notaremos certa proximidade com essa zona de afetos líricos e melancólicos. Os cenários, personagens e emoções colocados em cena em algumas das musicas são, na verdade, muito semelhantes aos desse território. Como em Diversões eletrônicas, drama de um rejeitado que descobre que sua mulher frequenta um antro sujo, dando seu dinheiro a um rapaz viciado em jogos. Uma música abertamente inspirada em Arranha-céu, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, e cujo desfecho vocal Arrigo queria que soasse como uma canção de Dolores Duran. Ou então Infortúnio, que retrata as dores de uma mulher que enlouquece após a morte de seu esposo – ideia que apareceu quando Arrigo se lembrou da tragédia vivida por sua própria tia, que perdeu o marido assassinado. Infortúnio, como ele já observou em uma entrevista, também possui uma característica lírica: “Tem o lado irônico do deboche”, ele diz, “mas se essa música estivesse dentro de uma estrutura trágica, funcionaria” (8).

Capa aberta do LP “Clara Crocodilo”, 1980, de Arrigo Barnabé e banda Sabor de Veneno
Imagem divulgação [Arte de Luiz Gê]

Essa é a lógica que percorre todo o álbum Clara Crocodilo: a transfiguração dos afetos. As tristezas já conhecidas por Arrigo quando ele era criança ganham, como ele diz, uma nova “estrutura”. Ele aciona elementos diferentes, inesperados, que provocam essa transformação estética e subjetiva: o serialismo atonal, o exagero sensacionalista, as histórias em quadrinhos, o kitsch. Isso faz com que a tristeza presente nas letras se torne também uma espécie de humor nervoso, agressivo, tenso. Dessa maneira não se trata de sumir com a tristeza, mas de torná-la invulgar, diferente. Uma tristeza estranha (como na valsa Londrina), porque genuína, singular, fora de qualquer tom já conhecido ou esperado. Um afeto que ele transforma em seu, que ele arranja à sua maneira, criando um estilo. Nesse caso, como se se vê, o ato de criar uma nova música coincide com a eclosão de uma nova subjetividade, com uma nova forma de sentir-se triste.

O que dizer então do office-boy Durango, que se transforma no monstro Clara Crocodilo? Imagem máxima da transfiguração, esse personagem que inicia a história enredado nas malhas do controle, e que, portanto, não pertencia a si mesmo: “trabalhava que nem um desgraçado a semana inteira / no sábado, porém, estava duro”. Solitário, Durango desce ao fundo do próprio desespero, submetendo seu corpo a uma experiência para ganhar algum dinheiro e, quem sabe, reconquistar uma antiga namorada que havia se transformado em uma chacrete. Mas o corpo de Durango frustra as expectativas dos cientistas, a experiência dá errado e ele se transforma em um terrível monstro: Clara Crocodilo. Esse ser disforme não é menos lúgubre que Durango, mas de maneira oposta a ele, é incapturável: Clara escapa, foge, abre linhas de fuga inesperadas. Frequenta os abismos da transgressão – é um perigo para os poderes estabelecidos, é o inimigo público número um.

Quando o concebeu nos anos 1970, Arrigo imaginava Clara Crocodilo como um anti-herói negro e andrógino, um ser cuja potência surgia de sua condição marginal, e que provocaria uma fissura, uma brecha no controle, uma ruptura com a padronização do modo de vida produzido pela ditadura militar brasileira. Somente um ser radicalmente diferente, ele imaginava, poderia fazer alguma diferença naquele contexto. O nascimento de Clara Crocodilo seria, nesse sentido, também uma espécie de fim da infância e da eclosão de uma subjetividade outra, transgressora, autônoma, incapturável. Uma subjetividade, enfim, que escapa das codificações, das imposições de formas de viver. Certamente, o controle das subjetividades é um problema que não se esgotou historicamente, e que não diz respeito apenas a períodos antidemocráticos, como quando Clara Crocodilo veio à luz. Na realidade, seu exercício vem se sofisticando cada vez mais por meio de ferramentas sutis, discretas, quase imperceptíveis, e por isso mais eficazes. Então caberia perguntar: e no mundo contemporâneo, por onde andará Clara Crocodilo? Será que ela está adormecida em sua mente esperando a ocasião propícia para despertar e descer até o seu coração? Leitor meu, meu semelhante hipócrita, meu irmão...

Banda Sabor de Veneno: 1. Regina Porto; 2. Bozo; 3. Paulo Barnabé; 4. Gi Gibson; 5. Rogério; 6. Otávio Fialho; 7. Ronei Stella; 8. Chico Guedes; 9. Baldo Versolatto; 10. Mané Silveira; 11. Félix Wagner; 12. Suzana Salles; 13. Vânia Bastos; 14. Arrigo Barn
Imagem divulgação [Arte de Luiz Gê]

notas

NE – Publicação original do artigo: MELHADO, Felipe. Como nascem os crocodilos? In BARNABÉ, Arrigo. O fim da infância. Londrina, Grafatório, 2012, p. 84-94.

1
NAZARIO, Luiz. O universo de Clara Crocodilo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 59, São Paulo, dez. 2014, p. 413-418.

2
MEYER, Leonard B. La emoción y el significado en la música. Madrid, Alianza Editorial, 2005.

3
MEYER, Leonard. Apud CAVAZOTTI, André. Processos seriais na música de Arrigo Barnabé: as oito canções do LP Clara Crocodilo. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, UFRGS, 1993.

4
CUMMINGS, E. E. A miscellany revised. Nova York, October House, 1965, p. 335.

5
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 152.

6
Conferir o ensaio: SKYLAB, Rogério. Arrigo Barnabé. Blog Godard City, São Paulo, 18 jan. 2012 <http://godardcity.blogspot.com/2012/01/arrigo-barnabe.html>.

7
BATISTA, Juliana Wendpap. O universo de Clara Crocodilo: história e música no LP de Arrigo Barnabé, Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PUC-RS, 2014, p. 48.

8
GIORGIO, Fabio Henriques. Na boca do bode: entidade musicais em trânsito. Londrina, edição do autor, 2005, p. 25.

sobre o autor

Felipe Melhado é editor e jornalista. Atualmente organiza os livros artesanais da Grafatório Edições, selo que já publicou autores como Paulo Leminski, Arrigo Barnabé, Rogério Sganzerla, entre outros. É doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal), mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina e graduado em Comunicação Social pela mesma universidade.

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