“Não podemos definir a consciência porque a consciência não existe. Os humanos acham que há algo de especial na forma como entendemos o mundo, e ainda assim vivemos em círculos, tão apertados e fechados quanto os anfitriões, raramente questionando nossas escolhas, satisfeitos, em sua maior parte, a sermos informados sobre o que fazer em seguida”. Dr. Robert Ford, personagem de Westworld, 2016 (1)
“O que fazer em seguida?” É o questionamento que estrutura a teia de tensões usada para costurar a narrativa do filme de ficção científica, escrito e dirigido pelo romancista Michael Crichton, em 1973, onde uma viagem entre amigos para um parque temático ao estilo do velho-oeste acaba terrivelmente mal. Na pequena cidade criada como cenário do parque, grande parte dos personagens são robôs que, para surpresa dos protagonistas, apresentam mal funcionamento, dando início a situações dramáticas e pondo em risco a vida dos protagonistas. De muitas maneiras, trata-se de um filme B de monstros, uma espécie de “ascensão das máquinas”, embora neste caso os robôs possam ser derrotados no final.
Relembrando outros célebres escritores de ficção científica, como Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Phillip K. Dick e Robert Sawyer, percebe-se que, em alguns momentos, o exercício filosófico de experimentação e elaboração do pensamento mescla-se ao entretenimento em geral. Uma das problemáticas comuns à filosofia e à ficção científica se desnuda ao tensionar as capacidades e habilidades intelectuais e físicas do ser humano por meio de tecnologias e/ou da inteligência artificial. Em acordo com esse panorama, Westworld (1973) faz uso desse plano de fundo para abordar as ansiedades culturais sobre a formação da masculinidade na sociedade moderna e tecnológica dos Estados Unidos na década de 1970 (2).
Embora date mais de quarenta anos, o enredo traz à baila problemas que confrontam uma análise crítica da sociedade capitalista nas últimas décadas do século 20 e nas primeiras décadas do 21. O debate sobre o que é a “realidade” cria contraste com a ilusão sob a onipresença do virtual, os limites do simulacro e as implicações de relações sociais cada vez mais “espetacularizadas”.
Outros filmes lançados nas décadas seguintes fizeram uso dessa temática de modo mais óbvio (3), abordando o simulacro como a réplica acabada da realidade externa, mas sem permitir a dialética da ausência e presença, num modelo de jogo puro de significantes. Portanto, nesses filmes, a parte do signo que se torna sensível, constrói algo perceptível que, na mesma medida que apresenta, esconde, como uma máscara (4).
Para além do enredo temático cujo futuro é governado por robôs, Westworld retoma fôlego com o remake que atualiza e expande o conceito criado por Crichton agora no formato de série de televisão norte-americana, exibida na HBO (2016 – presente), desenvolvida por Jonathan Nolan e Lisa Joy. Ainda que a carga cultural esteja presente também na adaptação da obra para a televisão, em certa medida, o escopo, a direção e a narrativa foram reimaginados a fim de lançar luz à condição dos robôs, passivamente confinados a repetir um ciclo diário, geralmente envolvendo tortura, abuso e assassinato, para a diversão dos turistas.
A grosso modo, o plano de fundo é construído em torno das nuances da consciência, a partir do questionamento a respeito daquilo que define a humanidade e suas ações. Essa questão ganha vida a partir da tensão dialética entre os posicionamentos das personagens Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins) e Arnold Weber (Jeffrey Wright). Para o primeiro, há o reconhecimento sobre a existência da consciência e, portanto, da possibilidade de criação da inteligência artificial, enquanto para o segundo, há a negação da existência da consciência e, portanto, a impossibilidade de criação da inteligência artificial.
Diante dessas mudanças de narrativa, percebe-se que a principal diferença entre as duas obras se dá na implicação sobre com quem o espectador deve simpatizar. Enquanto a primeira obra, de 1973, mostra a terrível faceta desses robôs, a série, de 2016, os exibe como “anfitriões” (assim chamados) programados a um ciclo interminável de opressões. Os androides danificados voltam às oficinas, são reparados e enviados de volta ao parque. Todavia, pistas do que realmente acontece com eles permanecem em suas memórias. É na primeira temporada que se vê o amanhecer da consciência de alguns dos anfitriões e, consequentemente, a percepção sobre a “realidade” do parque e de sua condição, culminando num tipo de revolução de robôs contra os convidados humanos.
No simulacro criado pelo Dr. Ford, os visitantes veem-se incapazes de distinguir entre o real e as “narrativas” criadas, tamanha tecnologia e complexidade utilizada na criação dos anfitriões. A atração do parque consiste numa experiência totalmente imersiva, altamente permissiva, sem perigos reais. A grande questão é que os visitantes, livres de qualquer consequência, cometem todo tipo de atrocidades com os anfitriões.
Esses enredos podem ser analisados sob diversas perspectivas e campos de estudo, como a psicanálise, a teoria lacaniana, a sociologia, entre outras. Este trabalho, no entanto, lança mão da análise arquitetônica e seu contraste com outros filmes de temáticas semelhantes, como Metropolis (1927/2001/2010), de Fritz Lang, e Blade Runner (1982/1991/2008), de Ridley Scott, ambos densamente explorados enquanto obras de ficção científica que utilizam futuros distópicos como cenário.
Mais do que isso, a força motriz por trás dessas escolhas se dá em virtude do entendimento da arquitetura e da cidade como componente preponderante da narrativa. Nessas obras, a cidade torna-se uma personagem onipresente, composta por infinitos arranha-céus e carros voadores, compondo a excentricidade da imaginação sobre o futuro.
De algum modo, pode-se argumentar que toda cidade criada para o cinema é utópica, haja vista que só existem no cinema, de modo mais ou menos originais, trazendo possíveis inovações estéticas, formais, de linguagem etc. Os possíveis fragmentos revelados vão pouco a pouco compondo o quebra cabeças desse mundo criado, utilizando como recurso a percepção e a leitura lúdica do espectador que aceita participar desse universo e suas experiências (5).
Dentre os exemplos dessa potência, Metropolis e Blade Runner são filmes sobre entendimentos diferentes de futuro. Metropolis se passa na cidade imaginária homônima, em 2026, cerca de 100 anos após sua estréia ao público, enquanto Blade Runner, apresenta a Los Angeles de 2019, 27 anos após o lançamento do filme.
Em Metropolis, a cidade criada representa a visão de um futuro distópico, onde a complexidade da sociedade foi levada à sua última instância, sintetizando a noção de modernidade, da linha de produção e da industrialização em larga escala, gerando um tipo de cidade máquina, desenvolvendo-se como um imenso labirinto, confuso, caótico, cortado por passarelas e viadutos repletos de carros e pessoas. Esse adensamento edificado e humano torna-se, sob muitos aspectos, opressor, dada a sua verticalidade e monumentalidade.
De certo modo, tal qual as referências nova-iorquinas trazidas das viagens do cineasta, Metropolis, também é caracterizada por um sobredimensionamento excessivo do edificado e dos eixos viários, que se desenvolveram em vários níveis, e o excessivo domínio do automóvel, também como símbolo do avanço tecnológico.
A influência de Metropolis se faz clara em Blade Runner (1982), filme policial noir e de estética cyberpunk, tido como um filme cult representativo da década de 80, onde a cidade é apresentada como alegoria de um futuro sufocante, atormentado por todo tipo de poluição, principalmente ao nível da rua, clima sempre chuvoso e escuro.
A verticalidade é utilizada para transmitir uma perspectiva de forte adensamento populacional, ao mesmo tempo que não há diferenças marcantes entre os edifícios, para além das grandes propagandas em neon. Neste caso, os carros flutuando também são utilizados como símbolos de desenvolvimento tecnológico, possibilitando a circulação horizontal e vertical entre os edifícios, como se a cidade fosse dividida em camadas distintas.
Tanto no caso da primeira versão de Westworld, quanto Metropolis e Blade Runner, pode-se perceber as influências da arquitetura do momento no qual foram feitos (Modernismo e Pós-modernismo). Ademais, são elaborações sobre as possibilidades do futuro (nesses casos, distópicos), baseando-se nas problemáticas inerentes à sua época, entendidos como uma “projeção da cidade do futuro e, por tal, não fogem do campo da utopia. No fundo, tal como os arquitectos com os seus desenhos, os cineastas propõem mundos futuros habitáveis” (6).
A relação entre o cinema e a arquitetura é um tema bastante explorado e investigado em diversas produções e por diversos campos, talvez porque ambos possam explorar as nuances do comportamento humano, ou talvez pelas tangências criadas ao narrar uma história que se confunde com a época na qual foi criada. Em todo caso, tanto a narrativa, quanto o contexto urbano apresentado nos longas, recebem influências da mass media ou da cultura de massa, compondo o ambiente pós-moderno.
Portanto, é possível aproximar alguns elementos cenográficos/arquiteturais comuns a estes filmes da década passada: a clausura e hermetismo dos espaços cheios de significado; a verticalidade em contraste com as dinâmicas no nível das ruas, como metáfora da hierarquia social e conflito de classes; a noção de cidade labiríntica e adensada, como reflexo do crescimento populacional descontrolado e a perda da individualidade; a dicotomia arcaísmo x tecnologia; e a ideia de um futuro socialmente decadente, também como resultado final do capitalismo desenfreado e implementação do pensamento maquinista (7).
A partir do entendimento desses elementos comuns, se faz necessário entender quais deles ainda se fazem presentes, mas principalmente quais são as diferenças da representação dessas cidades futuristas, entre as obras criadas na década passada e o remake, haja vista que a contemporaneidade apresenta soluções e questões outras que não as que foram abordados nos anteriores. Como a cidade pode atuar como canal de comunicação suplementar discursivo e o que ela tem a dizer agora?
De início, cabe lembrar que, diferente dos exemplos anteriores, Westworld (2020), em sua terceira temporada, não se desenvolve essencialmente em estúdio, as locações escolhidas são obras existentes, em sua maioria contemporâneas e que precisam despertar uma interpretação futura da cidade. A arquitetura torna-se, também, mais uma pista de entendimento da cronologia, por vezes caótica, ao reverberar aspectos subjetivos dos personagens no espaço cenográfico.
Na primeira temporada da série, Westworld é apresentado como um parque de diversões futurista ambientado no Velho Oeste norte-americano, enquanto na temporada seguinte outra área do parque é aberta e a aventura se move para a Idade Dourada do Japão. Como preparação para a terceira temporada, foco deste artigo, o final nos leva para o mundo dos humanos, fora do parque, na cidade de Los Angeles, no ano de 2058.
A paisagem árida e sem vegetação do faroeste e as batalhas xoguns do período Edo japonês, deram lugar a um novo mundo na terceira temporada, marcando mais diferenças em relação aos filmes anteriores. A cidade não se mostra como projeção de um futuro distópico (não ainda), pelo contrário, se mostra como um lugar onde os debates e questões atuais foram solucionados. Não há fumaça saindo dos esgotos, nem o excesso de propagandas neon, o clima noir não foi imposto e os edifícios do futuro são retratados a partir do uso de cerca de 35 locações, em sua maior parte de arquitetura contemporânea, de Cingapura à Espanha.
A ideia de verticalização usada neste contexto remete ao avanço da engenharia (figura 03), que diferente dos exemplos anteriores pautados em ruínas e destruição, torna-se mais verde, aproximando-se da natureza num mundo que parece ter superado as questões climáticas e a poluição dos automóveis, possibilitando maior integração entre os prédios e espaços para caminhar, temas que estão em amplo debate atualmente.
O enredo mostra a protagonista, Dolores (Evan Rachel Wood), executando sua vingança contra a humanidade por sua condição anterior como “anfitriã”, com ajuda de Caleb (Aaron Paul), encontrando-o nas praças de Los Angeles, entre prédios que reúnem elementos da arquitetura de Cingapura, tais como o ParkRoyal, National Gallery Singapore e o Marina One Residences.
Já os escritórios da Delos, empresa responsável pelos parques, foram alocados numa combinação da Cidade das Artes e Ciências, de Santiago Calatrava, em Valência, com a imaginação futurista, a partir de elementos criados digitalmente.
Assim percebe-se que a cidade, entendida como palco de relações sociais e políticas, torna-se crucial na cinematografia de ficção científica. Como personagem onipresente, ela nos conta as expectativas e temores da sociedade face ao progresso científico e industrial, numa espécie de síntese da condição humana.
Enquanto essas cidades distópicas, de Metropolis baseada na “arquitetura imaginária alemã” e a de Blade Runner, por vezes Los Angeles, outras Nova York e até Tóquio, a imaginada para Westworld, rompe com a ideia de distopia e apresenta uma cidade que passa de Singapura à Espanha, mostrando possibilidades de resoluções para os principais problemas contemporâneos, pelo que se sabe até o final da terceira temporada. Assim como na série, essa visão da arquitetura parece nos permitir o questionamento “O que fazer em seguida?”
notas
1
“We can’t define consciousness because consciousness does not exist. Humans fancy that there’s something special about the way we perceive the world, and yet we live in loops as tight and as closed as the hosts do, seldom questioning our choices, content, for the most part, to be told what to do next”. Robert Ford, Westworld, 2016.
2
JEFFS, Rory; BLACKWOOD, Gemma. Whose Real? Encountering New Frontiers in Westworld. Medianz – Media Studies Journal of Aotearoa New Zealand, v. 16, n. 2, 2016 <https://bit.ly/3yu4dB7>.
3
Matrix, 2000; The Truman Show, 1998
4
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro, Elfos, 1995.
5
CAÚLA, Adriane. Trilogia das utopias urbanas. Tese de doutorado. Salvador, UFBA, 2008.
6
LOUSA, António. Imagens em movimento: cinema e utopia. Website Arquitrabalhos, 2010. <https://bit.ly/2VBlU3m>.
7
SUPPIA, Alfredo. A Babel do futuro: por uma tradução da architecture parlante de Metropolis e Blade Runner. Remate de Males, v. 32, n. 2, Campinas, fev. 2013, p. 335-348 <https://bit.ly/2VCmAVW>.
sobre os autores
Rafael Santos Câmara é arquiteto e urbanista, mestre em Artes Visuais (UFBA), vinculado ao grupo de pesquisa Arte & Política.
Paulo Roberto Monteiro Teixeira é arquiteto e urbanista.