A cidade dos ricos e a cidade dos pobres é o último título da extensa bibliografia de Bernardo Secchi, renomado urbanista italiano, falecido em 2014. A edição brasileira saiu pela editora Âyiné apenas em 2019, seis anos após o lançamento do original, mas ainda a tempo de contribuir com o pertinente debate sobre desigualdade social, considerada pelo autor como o aspecto central da nova questão urbana, conceito elaborado por Secchi para descrever os desafios enfrentados pelas cidades diante da atual crise do capitalismo e suas consequências, como a injustiça espacial e a escassez de recursos ambientais. O livro se diferencia da vasta literatura sobre desigualdade social por abordá-la a partir do ponto de vista da urbanística, levantando a hipótese de que o projeto da cidade, assim como pode e tem contribuído para o agravamento das injustiças sócio espaciais, pode também desempenhar um importante papel no enfrentamento a essas problemáticas.
O entendimento sobre segregação urbana começa pela análise dos conceitos de riqueza e pobreza, resultantes de intrincados fatores políticos, históricos e institucionais. Tais conceitos são comumente associados ao acúmulo ou à escassez de diversos tipos de capital, seja econômico, cultural, social ou espacial; sendo esse último especialmente importante para a urbanística, uma vez que dispor de um patrimônio espacial adequado é sinônimo de “viver em lugares da cidade e do território dotados de requisitos que facilitam a inclusão na vida social, cultural, profissional e política”. A diferença entre quem dispõe ou não desses requisitos, ou seja, a diferença entre ricos e pobres já foi, historicamente, mais rígida do que é atualmente, o que significa certa mobilidade entre esses grupos: a passagem ao grupo dos pobres é uma ameaça constante enquanto a passagem ao grupo dos ricos é uma possibilidade, ainda que remota. O autor defende que os ricos, enquanto classe dominante e interessados em manter tal posição, se utilizam de dispositivos para manter à distância aqueles que não fazem parte do grupo, fazendo assim refletir no tecido urbano a segregação econômica.
No capítulo intitulado “Estratégias de exclusão”, Secchi identifica dois desses dispositivos: a retórica da segurança e as políticas de cidade levadas a cabo por planejadores e gestores urbanos. A retórica da segurança surge como resposta ao medo do diferente, fenômeno que apesar de muito atual não chega a ser inédito na história: o medo de invasões e de agressões por inimigos levou, por parte das classes dominantes, à ocupação de locais inacessíveis, à construção de muralhas e ao refúgio em fortalezas impenetráveis. Atualmente, essa mesma lógica está presente na utilização de câmeras de vigilância, no uso irrestrito de muros, grades e de outros tantos dispositivos de proteção que, em última análise, também podem ser compreendidos como dispositivos de exclusão. Quanto à influência do desenho e gestão urbanos na segregação entre ricos e pobres, Secchi aponta a “redistribuição virtuosa ou perversa do bem-estar e a construção de uma ideia compartilhada de segurança” como sendo de responsabilidade das políticas urbanas e de seus agentes, cabendo a esses reproduzir ou atenuar, no tecido urbano, as disparidades socioeconômicas historicamente construídas.
Os capítulos seguintes, intitulados respectivamente “Ricos” e “Pobres”, aprofundam a análise da influência de tais grupos sobre as dinâmicas urbanas. No primeiro deles, Secchi cita a Paris haussmaniana e a Londres vitoriana como representações plásticas de valores burgueses como domesticidade, privacidade, conforto e decoro. Ainda segundo o autor, é possível traçar um paralelo entre os processos higienistas empreendidos nessas cidades e o atual fenômeno de proliferação de condomínios fechados na América do Sul e de Gated Communities ao norte, ambos reflexos da política de distinção e da retórica da segurança. A partir de tais processos, entende-se distinção e exclusão social como dois lados de uma mesma moeda, de modo que os condomínios de luxo e as favelas são resultados opostos de um mesmo projeto de cidade, no qual a diferença entre ricos e pobres é expressa também espacialmente. A seguir, Secchi caracteriza os espaços ocupado pelos pobres: geralmente vulneráveis ambientalmente, escassamente infraestruturados, mal servidos pelo transporte público e distantes do centro da cidade. Nesse ponto do livro, a abordagem, especificamente voltada para a urbanística europeia, se distancia da realidade brasileira, uma vez que historicamente os subúrbios europeus foram ocupados pela elite interessada em afastar-se da classe média e dos imigrantes que, por sua vez, ocuparam os centros decadentes. Apesar do movimento oposto ao verificado localmente, onde as parcelas da população que não podem arcar com os custos do solo urbano se espraiam pelas franjas da cidade, a solução apontada pelo autor parece responder bem a ambos os cenários de exclusão: estimular a porosidade dos tecidos urbanos através da implantação de espaços públicos nas áreas mais pobres da cidade, de modo a tornar o uso dessas estruturas atrativo para todos os habitantes, ricos ou pobres.
A complexidade da atuação dos profissionais envolvidos no desenho e gestão urbanos diante da multiplicidade de atores e interesses envolvidos na definição das dinâmicas urbanas, é abordada no capítulo “Um mundo melhor é possível”, no qual o autor defende a necessidade de articular as diferenças econômicas, étnicas, religiosas, de idade, de gênero e de uso do espaço a fim de que tais diferenças não sejam automaticamente convertidas em exclusão, tampouco sejam ignoradas em processos homogeneizantes como a urbanística praticada durante o Welfare State europeu, que ao tentar distribuir bem-estar de forma igualitária acabou reprimindo as diferenças entre grupos sociais e abdicando da participação dos indivíduos na construção da cidade.
A análise da tradição urbanística europeia, abordada em capítulo homônimo, é útil ao leitor brasileiro pois expõe as fragilidades do modelo de desenvolvimento urbano adotado nas Américas. Ainda que passível de críticas, o Welfare State foi um modelo de desenvolvimento urbano muito mais justo do que aquele verificado do lado de cá do Atlântico. Enquanto aquele “representava no espaço os ideais democráticos da sociedade europeia”, este é a “expressão da exclusão e alienação social”. Num tom pessimista, Secchi supõe que no futuro a Europa — depois do declínio do Welfare State e das inúmeras falhas do subsequente urbanismo moderno — poderia vir assemelhar-se às cidades socialmente desiguais e espacialmente excludentes da América do Sul.
No capítulo final deste breve mas esclarecedor livro, Bernardo Secchi reafirma sua tese segundo a qual “toda vez que a estrutura da sociedade e da economia muda, a questão urbana volta ao primeiro plano”, impulsionando uma reorganização da cidade de modo a torná-la mais coerente com os novos cenários, conflitos e sujeitos. A leitura de “A cidade dos ricos e a cidade dos pobres” se mostra muito útil aos profissionais que enfrentam os desafios da atual crise urbana, caracterizada pela desigualdade social e pelo agravamento dos problemas ambientais e de mobilidade. Segundo o autor, a atuação desses profissionais deve estar baseada no entendimento do espaço não apenas como produto, mas também como agente das transformações sociais; desse modo, torna-se possível atuar em prol da redução das desigualdades sócio espaciais através da qualificação da ocupação do território, da sua infraestruturação e da garantia de acessibilidade e sustentabilidade.
nota
NE – Publicação original da resenha: Revista e-metropolis, n. 44, mar. 2021, p. 57-59 <https://bit.ly/3bD0dEt>.
sobre a autora
Viviane Barros Amorim Costa é graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Piauí. Departamento de Construção Civil e Arquitetura, Laboratório Espaços Urbanos. Teresina, PI, Brasil.