A grande imprensa, ou ao menos uma parte dela, parece convencida de que para levar adiante o golpe social e econômico contra a população pobre e trabalhadora não precisa mais de Bolsonaro.
Mais do que isso, parece convencida que o espetáculo diário das “bizarrices” e o relato do “isolamento” do presidente ajudam a acelerar o que ainda falta de desmonte possível das políticas públicas e da venda acelerada dos restos do patrimônio nacional.
O desmonte das políticas públicas é constante e diário, tanto pela asfixia orçamentária das instituições quanto pelo seu aparelhamento com a indicação de milhares de cargos de confiança outorgados a civis e militares que têm em comum a adesão (interessada ou não) ao terraplanismo oficial e a absoluta incompetência técnica para os cargos que ocupam.
A entrega acelerada ao grande capital – e a esta altura talvez somente bresseristas renitentes ainda creiam numa distinção entre capital nacional e internacional – do patrimônio construído ao longo de gerações pela poupança forçada da população brasileira segue impávida, colossal e disfarçada.
Quem vê televisão descobriu que existe uma nova marca no mercado das ilusões de consumo, a Vibra Energia (está sentindo, leitor, as boas vibrações?), mas que curiosamente usa o logo da BR distribuidora. Mas não recebe a informação, ao menos em peso equivalente, de que mais esse pedaço do patrimônio nacional foi entregue aos amigos.
Resta o consolo de escolher, entre expressões igualmente anacrônicas, se foi “a preço de banana” o “na bacia das almas”.
Mas cuidado com a tentação de dizer que foi na base da negociata ou da propina, porque aí está o atual e provável futuro acusador geral da república para denunciar criminalmente qualquer crítica. Que o digam nosso colega da USP Conrado Hubner Mendes ou outra centena de jornalistas e acadêmicos país afora.
Por falar em anacronismo parece curioso que a expressão Belindia tenha desaparecido do repertório dos analistas monocórdios. Talvez porque não haja mais 10 milhões de brasileiros com renda equivalente à população belga ou talvez porque o presente e o futuro desenhado para os 95% mais pobres do país já não possa ser comparado com a Índia.
Parecemos mais estar condenados por alguma Moira ao destino de destruição sobre destruição do Haiti ou aos horrores do Afeganistão.
Na sucessão de tragédias abatidas sobre a população haitiana tivemos uma parte de responsabilidade quando, a serviço da ONU e da nossa ingenuidade, tropas comandadas por nossos bravos generais, massacraram civis favelados numa espécie de ensaio geral para a intervenção no Rio de Janeiro.
E do Afeganistão, abandonando o ridículo debate de “vitória ou derrota do imperialismo”, conviria aprender que a diferença entre o Talibã e nossos fundamentalistas talvez seja apenas de escala.
E sobretudo agradecer a sinceridade de Joe Biden ao admitir publicamente que “o objetivo dos EUA no Afganistão nunca foi construir um país”.
Talvez ele pudesse convencer seu antecessor democrata, aquele fino e de família elegante, a confessar que seu objetivo em relação ao Brasil também nunca foi permitir a construção de um país.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos. Tem idade bastante para ter acreditado que o Brasil poderia deixar de ser apenas um país do futuro.