Em tempos de pandemia, muito se tem falado sobre aglomeração. A palavra tornou-se bastante popular nos meios de comunicação. Se antes estar aglomerado já criava um mal-estar para alguns, com o tempo, perceber-se em aglomerações passou a ser sinônimo de risco, uma situação a ser evitada a qualquer custo porque amplia as condições de contágio por coronavírus. Mas o que significa aglomeração? E como esse conceito se relaciona com o espaço construído e as percepções de seus usuários, principalmente no espaço público, que costuma ser coletivo e compartilhado? A Psicologia Ambiental, como ciência que estuda as interdependências entre as ações instrumentais dos indivíduos e os locais onde elas acontecem, pode fornecer subsídios à Arquitetura para pensar a aglomeração a partir da pandemia.
A interação pessoa-ambiente
A relação recíproca entre pessoa e ambiente é a base da Psicologia Ambiental. A análise da vida em seu cotidiano vem sendo o foco dos estudos do comportamento socioespacial humano desde a década de 1960. Interação é a palavra chave da Psicologia Ambiental, que enxerga o comportamento como resultado de uma força interna (presente na pessoa executora da ação) e de uma força externa (ambiental) que afetariam o comportamento por meio das percepções. Para proceder seus estudos experimentais, grande parte deles in loco, a Psicologia Ambiental logo reconheceu a interdisciplinaridade como comunhão necessária ao campo de atuação, estabelecendo conexões entre diversas áreas, inclusive entre a Arquitetura e a Psicologia.
Qualquer interação social ocorre em um espaço. Quando tais interações se dão nos espaços públicos, repletos de diversidade e, em geral, sem qualquer barreira de acesso, a possibilidade de aglomeração se torna mais premente. Na base dessa costura social, encontram-se as convenções, os modos de agir em público e a flexibilidade de opiniões, atributos do espaço compartilhado que estão sendo transformados devido às restrições impostas pela pandemia de covid-19. Mediada pelo espaço construído, a aglomeração como conceito de importância nos dias atuais, nos convida a refletir sobre mecanismos de regulação espacial, tanto entre as pessoas, quanto entre elas e o ambiente circundante.
Uma condição peculiar da conduta espacial é que, em geral, ela se dá sem verbalizações, ou seja, por meio de comportamentos que envolvem expressões faciais, olhares, gestos, postura corporal e distância física. A autorregulação espacial também se dá de forma simbólica, por meio de vestimentas que podem identificar grupos e locais de desenvolvimento de atividades específicas, acessórios e mesmo características físicas dos indivíduos. Tudo isso pode acontecer sem que a pessoa se dê conta de seu comportamento dentro do espaço. São convenções naturalizadas e reproduzidas sem muita reflexão, mas que coordenam o uso dos espaços compartilhados. De modo geral, os estudos do comportamento socioespacial humano propõem a análise de alguns conceitos-chave na área, dentre os quais considera-se indispensável a aglomeração.
Sentir-se observado
A aglomeração, como conceito do comportamento socioespacial humano, é o mesmo que ajuntamento, superpovoamento e apinhamento. É um conceito subjetivo e, como tal, cada um se sente aglomerado sob circunstâncias diferentes. Para o geógrafo Yi-Fu Tuan, estar numa situação de aglomeração subentende que o indivíduo se sente observado. É bastante subjetivo, tendo em vista que sentir-se observado em uma noite escura, numa rua deserta, é diferente de sentir-se observado numa praia, rodeado de amigos (1).
Aglomerar, portanto, refere-se a um estado psicológico que provoca algum tipo de estresse e que pode motivar a pessoa a se retirar de uma situação percebida como simbolicamente densa. Para fins de estudo do comportamento socioespacial humano, a aglomeração causa desconforto. Quando em aglomeração, o indivíduo percebe que suas necessidades de espaço ultrapassam a quantidade de espaço efetivamente disponível para o exercício de alguma função, mesmo que seja de permanecer em pé. A aglomeração não necessariamente é entendida como equivalente da alta densidade física (número de pessoas por unidade de espaço), pois refere-se a uma conjuntura particular e subjetiva.
Algumas situações de aglomeração já se mostravam indesejadas antes da pandemia. Fomos habituados a tolerar a proximidade física com outras pessoas enquanto compartilhávamos ônibus lotados, salas de espera, elevadores pequenos e longas filas, por exemplo. Entre os mecanismos comportamentais automaticamente desenvolvidos para tolerarmos esses “avanços territoriais” e preservarmos nossa privacidade está o conhecido “olhar de paisagem”. Não encarar as pessoas que estão em grande proximidade conosco nos ambientes “coisifica” tais pessoas, ou seja, os transforma em objetos por um determinado tempo, suficiente para suportar o inconveniente da aglomeração. Pensar aglomeração, portanto, também é refletir sobre o lugar da nossa privacidade no ambiente compartilhado e do espaço pessoal que desejamos preservar ao lidar com o outro.
Manutenção da privacidade
O incômodo gerado pela percepção de aglomeração pode provocar uma necessidade de privacidade. A pesquisadora Patricia Brierley Newell define privacidade como a regulação da separação física, psicológica, informacional e funcional entre os indivíduos (2). Trata-se de um controle seletivo do acesso a si mesmo ou ao seu grupo. A percepção de privacidade também se acirrou durante a pandemia, pois a regulação das fronteiras interpessoais ficou ainda mais demarcada. Os limites entre o privado e o público ganharam contornos mais delineados e, com o cerceamento da vida pública, os espaços compartilhados se esvaziaram, principalmente com o crescimento dos casos de Covid-19 em todo o país.
Tal percepção foi ainda mais acentuada pelo fato de a doença ter tomado proporções logo após o Carnaval, período com maior aglomeração no Brasil. A folia dos abraços e do ajuntamento humano deu lugar rapidamente ao distanciamento, com a intenção de equilibrar o nível de privacidade. Com a pandemia, os dois metros adotados pela Organização Mundial de Saúde como o mínimo necessário para um distanciamento seguro deram literalmente nova dimensão a essa percepção de aglomeração e, portanto, de privacidade. Todos os espaços construídos reformularam sua legibilidade a partir dessa tônica. As intrusões ou ameaças ao espaço pessoal passaram a ser constantemente vigiadas pelo risco de prejuízo à saúde.
Espaço defensável
Defender um território significa experimentar um sentimento de posse e exclusividade no uso de um espaço delimitado por cercas, muros ou mesmo objetos pertencentes ao indivíduo. Já o conceito de espaço pessoal, que nos interessa aqui como espaço defensável em uma pandemia, se refere ao condicionamento de uma área portátil em torno do próprio corpo, com limites invisíveis, que acompanha o indivíduo em todas as situações, mesmo quando ele está em movimento. O espaço pessoal se assemelha a uma bolha de sabão em torno do corpo. Ao longo da vida, ela pode se alterar. Quando a mulher está grávida, por exemplo, o cuidado pode ser redobrado na parte frontal do corpo, para preservar o contato da barriga com superfícies e outras pessoas que eventualmente possam esbarrar. Crianças pequenas, em geral, possuem um espaço espacial maior, pois deslocam-se com maior velocidade e se movem de forma imprevisível sem real dimensão dos riscos em volta.
Trata-se, portanto, de uma zona emocionalmente carregada que ajuda a regular o espaçamento entre os indivíduos. Com a pandemia, talvez o espaço pessoal tenha sido adaptado aos dois metros de distanciamento necessário e haja uma maior atenção à região da cabeça do que ao restante do corpo, devido ao contágio da covid-19 se dar por via respiratória. Isso porque o tamanho e a forma que o espaço pessoal assume se organiza conforme as necessidades e estão relacionados à história individual, às condições socioculturais e à função que o indivíduo desempenha no ambiente. Mas sua função sempre foi de autoproteção e regulação da intimidade.
Reciprocidade
Quando alguém diz que vai “pensar” um espaço para alguma função ou situação, na realidade está se referindo a buscar condições para possibilitar um comportamento humano harmonioso. Nesse sentido, a Psicologia Ambiental se fundamenta no entendimento de que, do mesmo modo que modificamos o espaço à nossa volta, ele também influencia o modo como agimos dentro dele. Ou seja, o ambiente é elemento das ações humanas. Não é um mero coadjuvante das situações, mas um elemento que a integra e participa contínua e ativamente das mesmas.
Percepção ambiental é um processo psicológico que integra, em unidades significativas, determinados conjuntos de informações sensoriais, permitindo a aquisição de conhecimento a partir dessa vivência. Nem todas as pessoas possuem a mesma percepção sobre as coisas, estando tais diferenças associadas a filtros pessoais (como gênero, nível de educação, treinamento profissional, familiaridade com o local), culturais (como valores da sociedade, ambiente onde se vive) e físicos (relacionados às características corporais do indivíduo delimitando suas possibilidades de decodificar o meio e usufruir de suas potencialidades).
Pensar um espaço, para nós, arquitetos, a partir do contexto de pandemia, deve levar em consideração como as noções de privacidade e espaço pessoal interferem no conceito de aglomeração. Essas percepções do espaço, que sempre foram atualizadas conjuntamente com as modificações sociais, sofreram rápidas transformações diante da emergência sanitária com a Covid-19. E as providências vão além do aumento no espaçamento entre mesas de um restaurante ou da largura do balcão de atendimento. É preciso refletir como o usuário se percebe naquele lugar projetado para transmitir segurança. Por isso, pensar a aglomeração, nesse contexto, é mais do que nunca um desafio para quem projeta espaços.
notas
1
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983, p. 69.
2
NEWELL, Patricia Brierley. A Systems Model of Privacy. Journal of Environmental Psychology, vol. 14, n. 1, mar. 1994, p. 65-78.
sobre a autora
Lis Vilaça é arquiteta e urbanista, terapeuta junguiana e mestre em Psicologia pela UFRN.